Atualizado em: 30/09/2021.
A cura existe em contrapartida à dor, à doença, à moléstia. Do Meu Coração Nu foi concebido por Zé Manoel em um processo análogo: um disco acolhedor, sensível e emocionante que nasce do acúmulo de tristeza e raiva perante às dinâmicas de opressão, adoecimento, violência e morte que os povos indígenas e negros passam aqui no Brasil.
Lançado no final de outubro pelo selo Joia Moderna, o álbum postula entre os melhores discos de 2020. Com produção musical de Luisão Pereira e direção artística de Gil Alves, Do Meu Coração Nu conta com parcerias de Luedji Luna, Gabriela Riley, Bell Puã, Letieres Leite, Grupo Bongar, e sample de Beatriz Nascimento em uma de suas falas mais icônicas presentes no documentário Negro, Da Senzala ao Soul (1977) de Gabriel Priolli Netto e Armando Figueiredo Neto. O piano de Zé, agora afastado da tradição da valsa, alcança uma roupagem contemporânea e ancestral capaz de envolver as cicatrizes, feridas abertas e novas peles que nascem no processo secular de existência e resistência de negros, de indígenas e de populações periféricas brasileiras que seguem sendo alvo do perverso projeto racista.
Mas Zé quer viver e, neste angustiante 2020, seu álbum é sopro que cura a ardência que surge enquanto o remédio age no joelho ralado. Seu registro é tecnologia ancestral e articula as ferramentas e referências que os sujeitos não brancos dispõem nos tempos de hoje, ao mesmo tempo que atualiza os relatos das violências e barreiras a serem dribladas por esses corpos e mentes. Se “História Antiga” é uma prece que se distancia do presente em busca de um futuro menos angustiante, “Adupé Obaluaê” é a receita do xarope que cura qualquer moléstia. Seu disco é um relicário onde cada faixa é artigo de proteção, fortalecimento, afeto e potência.
Da casa da sua mãe em Petrolina, no sertão pernambucano, Zé entrou na chamada, ligou a câmera e bateu um papo com a NOIZE sobre o processo de Do Meu Coração Nu, as rotulações de “música negra” que algumas produções recebem e a raiva enquanto substância para a criação artística. Confira:
Zé, fiquei com a sensação de que os assuntos em torno da negritude, tanto sobre ancestralidade quanto sobre violências, fermentaram dentro de você por muito tempo, até o ponto de você precisar “colocá-los” para fora. Mas isso é uma hipótese. Como surgiu esse desejo de construir o álbum a partir dessa temática, que ganha esse destaque na sua discografia pela primeira vez?
De fato, teve um processo, realmente. Os meus discos falam muito sobre o meu momento atual. Neste, o processo foi exatamente como o dos outros, apesar dele soar diferente e também vir com outros assuntos. Mas são assuntos que sempre me atravessaram, sempre estiveram ao meu redor, mas que acho que pelo fato de eu estar morando em São Paulo, vivendo uma vida muito mais urbana, sem esses subterfúgios que eu tinha em outros tempos de poder ir para um rio, para uma praia, me deixaram muito mais em contato com esses assuntos do que no interior, ou até mesmo em Recife. Acabou sendo um assunto natural nas canções só que, ao mesmo tempo, isso levou alguns anos porque, além da necessidade de abordar esses assuntos, eu também queria abordá-los com a minha linguagem, eu tinha que achar essa forma de se fazer. Foi um processo também para achá-la, teve muita paciência mesmo até chegar nesse resultado de construção, né? Ao mesmo tempo, eu também queria me sentir seguro o suficiente para falar desses assuntos depois do lançamento do disco, porque eu sabia que seria questionado, que não é só fazer a música, mas também precisaria dissertar sobre o que eu estava falando. Teve todo esse processo de maturação até chegar nesse lugar onde eu pudesse me sentir inteiro e ali.
Além da necessidade de encontrar a sua linguagem, você me comenta sobre esse sentimento de responsabilidade sobre ter um discurso robusto para dar conta de “bancar a temática” do álbum e as perguntas que você receberia da mídia e da crítica. Você sente que isso é um tipo de preocupação que você tem também pela crítica e imprensa musical brasileira serem bastante brancas?
É, é isso também. Eu sabia que isso ia acontecer, e que teria que ter uma preocupação por ser um cara preto, vindo de uma família inter-racial, de não ter 100% a vivência de um cara preto retinto de uma família preta retinta, sabe? Eu tive uma preocupação redobrada exatamente para não soar dúbio em momento nenhum. Inclusive, eu já tive situações muito sutis de entrevista em que fui levado para um outro lado, para um outro significado. Então, precisava me sentir seguro o suficiente para lidar com essas situações que a gente tem que lidar no dia a dia. Sou mais um “estudioso de internet”, vejo muita coisa, leio muita coisa, aprendo muito com os meus amigos. Queria falar com a mesma nitidez que falo no disco.
Ao longo da preparação do disco ou no lançamento, você sentiu receio ou até percebeu estar sendo tratado de uma forma um pouco mais nichada? Se viu sendo enquadrado em outras nomenclaturas que, com o trabalho dos álbuns anteriores, você não era enquadrado, tipo “música negra” ou entrando em playlist de consciência negra?
[Risos] Sim, tá rolando muito isso! Tem inclusive uma fala de Letieres Leite que eu coloquei propositalmente no disco, em que ele tá falando sobre a raiz da música brasileira, mas também falando da minha música. Ao mesmo tempo que as pessoas comparavam muito o que eu fazia antes, não de forma explícita, com aquela música que vinha do piano e tal, e que era uma música branca. E não, a raiz daquilo que eu faço sempre foi preta, e isso sempre foi muito nítido pra mim. Talvez agora, com um discurso alinhado, as pessoas em vez me verem de uma forma mais abrangente, comecem simplesmente a me colocar em outras caixas. A música brasileira é preta, independente dos assuntos que estejam sendo abordados nela ou não.
Você sente que essas rotulações de música preta por curadorias, playlists de streaming, imprensa e críticos dizem respeito mais a uma performance específica que se espera do artista negro do que sobre uma produção musical negra?
Talvez eu não saiba te dissertar tão bem sobre isso, mas o que eu observo é que o mercado da música se apropriou das pautas. Aí ele cria a “música LGBTQIA+”, ele cria a “música preta”, como formas de mercantilizar aquilo. O que Liniker faz é música, não é música LGBTQIA+, mas é uma forma de você colocar em caixas e vender aquele discurso. Isso, de certa forma, acaba sendo um pouco ruim. Ao mesmo tempo que ele projeta uma artista trans, quantas cantoras trans com projeção a gente tem? Isso projeta, mas também limita, tipo, “já temos essas cantoras aqui, isso já tá representado”. Se você é um artista que é um homem e branco cis, que faça um som meio pop, meio mpb, você estará em todas as playlists do tipo “MPB”, “Relax”. Mas Xenia? Por que entra só nas de música preta? É sempre algo restrito, sempre o pensamento da cota. Tenho um ranço com o termo MPB, esse termo classista, metido à besta, por que o que é MPB? Música Popular Brasileira! Então, é o Brega Funk. MPB é o que tá sendo produzido nas periferias, consumido em massa pelo povo. Mas continua com essa ideia de eugenização de que MPB é só Chico Buarque e Tom Jobim.
Zé, você me disse que foi nesse disco que você sente ter encontrado uma linguagem sua. Isso conversa com a capa do disco, em que você está em evidência. E ela também evoca a fisicalidade do corpo negro, que também tá representada no clipe de “Adupé Obaluaê”. Como rolou essa decisão imagética?
Isso da fisicalidade foi proposto pelo Gil Alves, que dança no clipe e também assina a direção artística do disco. Então, tudo que tem de imagem no disco é pensado por ele, que é bailarino. Ele queria trazer a minha imagem em movimento. Toda essa estética tá sendo pensada por ele, que fez a direção do clipe também, é um cara multitalentoso.
Em Do Meu Coração Nu, você deixa mais de lado os choros, os tangos e as valsas. Além disso, apesar de você trabalhar temáticas urgentes e tristes, como a esposa que perde seu marido por causa do racismo e da violência policial, seu disco tem uma aura de acolhimento e sensibilidade, e também faz uso de depoimentos, como a clássica fala da historiadora, roteirista, poeta e ativista Beatriz Nascimento em “Escuta Beatriz Nascimento”. Como foi o desenvolvimento do arranjo musical desse disco?
Vou partir falando de “História Antiga” que é uma das mais tristes do disco, a que mais toca em feridas, e feridas que atingem de forma diferente uma pessoa branca e uma pessoa negra, indígena ou periférica, essas que estão mais na linha daquela violência. Essa música era um grande lamento. Mas num dado momento, eu pensei “pô, eu não quero mais causar tristeza, nós vivemos sempre constantemente atacados por tanta tristeza, eu preciso dar um jeito nisso, preciso criar algo que também conforte as pessoas”. E foi aí que eu criei a outra parte, pensando “de onde eu tô contando essa história? Do futuro… como é esse lugar? É um lugar regido por Xangô, um lugar de justiça social, lugar que foi sonhado pelos nossos pais e pelos nossos ancestrais”. Essa foi uma preocupação que tá no disco inteiro, porque é um disco dedicado ao povo preto e indígena, é de irmão pra irmão, então, eu também tive a preocupação em ser carinhoso. A fala de Beatriz Nascimento é firme, com propriedade, mas na voz, ela é mansa, quase como uma voz de mãe. Isso dialoga com todo o álbum, foi um dos primeiros elementos que pensei pro disco e também me inspirou a buscar essa forma de falar o que deve ser dito, mas de um jeito amoroso e que cause empatia. Depois vem “No Rio das Lembranças”, que vem propositalmente depois daquela música mais pesada, mais densa, chega como um convite a ir tomar banho de rio, dar uma lavada, começar a depurar isso, mas também um movimento de busca dessa história. Aí vem Beatriz Nascimento que contextualiza tudo isso de forma mais objetiva, historicamente falando. Tem também a música com Luedji, que fala sobre afeto e amor preto, sobre aceitação, esse acolhimento de um para o outro. A poesia de Bell Puã traz a preocupação com os amigos ao estarem na rua, sujeitos à violência. Tem a canção de despedida com “Canto pra Subir“, a fala de Letieres Leite que contextualiza muito musicalmente o álbum e critica a cultura de embranquecimento do Brasil. Termino com “Adupé Obaluaê” que é como um agradecimento por esse processo de curas dessas dores.
Em uma entrevista que você concedeu sobre o álbum, você disse que “é muito difícil transformar raiva e tristeza em música”. Qual a potência pessoal e artística que você vê nesse processo de ter transformado esses sentimentos no disco que estamos ouvindo?
Essa pergunta me fez lembrar de uma coisa que eu tinha esquecido: porque eu comecei a compor. É porque, na vida, eu sou muito raivoso, sempre tive raiva de tudo isso. Comecei a entender que eu prefiro me sentir raivoso do que me sentir triste porque eu acho que a raiva direcionada constrói. A tristeza não, ela só te deixa abatido, sem reação pras coisas. Por exemplo: Eu via um amigo meu, mais retinto, passando por várias situações racistas, e eu fui desenvolvendo uma raiva. Mas, quando eu ia tocar as minhas músicas, eu ficava cantando sobre as águas do rio São Francisco. Eu ficava pensando: “Onde que eu vou colocar essa raiva? E tudo isso que tô sentindo e que não tá conectando com o que eu tô cantando?”. Entendi isso e, a partir daí, eu comecei a perceber que tinha que escrever sobre isso. Tava começando a não faz mais sentido, na vida real eu tava cheio de tristeza, cheio de raiva, e na música eu tava cantando sobre o rio, que também faz parte da minha vida, mas não agora. Daí vieram os processos de como fazer isso e continuar sendo eu musicalmente.