Misture um corpo urbano que respira o ar da cosmopolita São Paulo, mas que mantém o coração afeito às lembranças e às origens conectadas à Belo Horizonte. O cantor, compositor e produtor Siso desenvolve um trabalho que articula suas experimentações líricas criadas ao longo da última década aos insights e possibilidades do agora. No álbum homônimo lançado hoje, 23 de novembro, ele traz canções essencialmente atmosféricas. Os beats, os synths, os graves, o minismalimo ou a extravagância, tudo está conectado ao dito e ao não dito seus versos. Um compositor que entendeu que uma canção comunica não só pelas palavras.
Pop com gradação. Siso vem ocupar um espaço importante nas esteira de sons do gênero que têm feito sucesso em fenômenos da cena independente. Tem os sintetizadores e teclados de Mahmundi e seu Para Dias Ruins (2018), a combinação tragicômica do pulsante Letrux em Noite de Climão (2017), o convite às pistas de Sinto Muito (2018), de Duda Beat, o som metálico brasileiríssimo de Jaloo no coletivo ft. (pt.1) (2019) e as batidas cativantes de Rito de Passá, de MC Tha (2019). São aromas sonoros e líricos que evocam esses trabalhos, mas tudo é habitado pelo universo autônomo e autêntico de Siso – produtor musical da obra -, com sua urbanidade migratória, um corpo em trânsito no espaço exterior e interior.
Ele amplia o leque de tons que colorem seu Siso através de um faixa a faixa imperdível! Solte o play e mergulhe de uma vez só nas camadas do disco.
“Pop Antigo”
É um synthpop melancólico e dançante, ótimo para chorar na pista de dança. Quando criei essa estrutura musical em 2018, não sabia pra onde ir em termos de letra, então, ao longo de alguns meses, levei essa música pra Letrux, pro Thiago Pethit e pra YMA. Nenhum deles pode me retornar, então terminei-a sozinho ano passado – apesar de que YMA deu uma dica pro refrão. Ela me disse que a música lembrava uma vibe 2002, e, assim que o termo “pop antigo” apareceu na minha cabeça, logo depois, o refrão veio de uma vez. É uma canção sobre apego e incompatibilidade dentro de um relacionamento. Sobre a coragem de encarar a ruína anunciada para então se realinhar, virar a página e descobrir o novo. É sobre reconhecer o desejo e aprender a se retirar mesmo não querendo, por saber que é o melhor pra si, por saber que aquilo não está construindo nada. Um passado que não desaparece é um futuro que não chega.
Essa música ganhou um clipe dirigido pelo Fábio Lamounier, com participação do Sergio Klisman e da maravilhosa Isa Zendron, da Boate Class, que também criou a coreografia. Foram dias muito divertidos – é maravilhoso criar com uma equipe de amigos.
“Quando O Amor de 1 Homem é 1 Revólver”
A perpetuação da violência na mão do homem sempre foi um assunto que me intrigou, desde a infância – até porque é algo visível em todo lugar. Isso começou a entrar na minha obra artística ali pelos 19, 20 anos, muito também por ter começado a trabalhar com hard news nessa época, enquanto estudante de jornalismo. Isso me permitiu criar, ao mesmo tempo, um tipo diferente de familiaridade e outro de distanciamento com o assunto. É uma canção que foi feita ao longo de uma semana e entra um tanto na psicanálise da violência masculina, sem entregar respostas. Tem várias coisas ali – complexo de Édipo, reforços sociais da masculinidade tóxica, história da colonização, relações abusivas e por aí vai. O minimalismo dos sintetizadores dá a gravidade do tom da música, com os diferentes padrões rítmicos colidindo no refrão.
“Corpo Pra Amar”
Surgiu de uma ideia musical que Fred HC, do Paralaxe, me enviou há alguns anos, e que não conseguia dar conclusão. Inventei várias partes pra ela ao longo do tempo e algumas coisas pareciam certas, outras não, até que trouxe esse material pra junto da Desirée Marantes (produtora musical e musicista nos projetos Harmônicos do Universo, Mirantes e Hikikomori, além de cabeça do selo Hérnia de Discos) e da Suelen Calonga (artista visual), pra trabalharmos em cima. No fim de 2018, elas e eu fizemos umas reuniões de composição, com a intenção de fazer canções pra oferecer a outros artistas. De várias ideias desenvolvidas, mas que acabaram ainda não frutificando, essa foi uma que se destacou. Acabei escrevendo a letra sozinho depois. É sobre o amor em sua dimensão corpórea – o corpo como veículo do amor e do prazer – e a dissolução de si que se experimenta nessa experiência. E também sobre a natureza psicológica do desejo, levando em conta o entendimento psicanalítico de que o desejo vem daquilo que não se quer. Também tem a coisa de ser uma música de um arranjo eletrônico hard, quase não-corpóreo na sua mecânica, mas ainda assim caloroso, o que traz um contraste interessante.
“Não Me Venha Com Essa de Amor”
Canção originalmente presente na minha mixtape SDDS FUTURO, de 2013, agora reinventada com inspiração no dembow e no reggaeton. Foi originalmente criada no teclado, em cerca de 10 minutos, no quarto em que vivia na casa dos meus pais, em Belo Horizonte. Fala de uma proposta de amor desapegado que esconde uma perspectiva apreensiva e cautelosa diante do amor. De um lado, um desejo não-denominado é um desejo livre, pois não é constrangido pelas expectativas sociais e regras de convivência. De outro, pode ser uma manifestação de resistência a ser amado.
“Boas Maneiras”
É a música mais antiga do disco, feita em 2007. Era parte do repertório de uma banda que eu tinha na época, chamada As Horas – o resgate dessa música tem a ver com essa pegada do disco de refazer-se diante dos fragmentos de quem se era. É uma composição um tanto bruta, de inspiração punk/industrial, sobre o momento de virada do amor-próprio, quando a pessoa não mais se deixa pautar pelas regras do outro em detrimento de si. É sobre autodeterminação e sobre o lado tóxico das convenções.
“2h (O Baile)”
Releitura de uma música original da banda Desgraça. Conheço o Vitor Brauer, um dos integrantes, desde 2009. Conheci-o nos primeiros dias da Lupe de Lupe, banda mais conhecida dele, e já fiquei imediatamente impactado pela qualidade lírica do trabalho dele. Tentamos trabalhar juntos algumas vezes, mas ainda não deu certo. Todo trabalho que faço tem uma alusão a de onde eu vim e, de certa forma, essa faixa cumpre esse papel neste álbum – apesar de Desgraça não ser uma banda 100% mineira. A versão original já tinha uma coisa de freestyle e funk melody escondida debaixo de um arranjo noise, então quis trazer isso à tona, misturando com uma coisa electroclash. É também uma música sobre autodeterminação e sobre o quão escorregadio pode ser esse caminho de autonomia.
“10 Mil Pedaços”
Uma canção leve e dançante, mas reflexiva – um misto de folk, synthpop, highlife e dembow. É sobre quebrar um paradigma de mundo e construir um novo com a ajuda das pessoas. É também sobre fazer as coisas pelos motivos certos, e não de acordo com a resposta alheia. Surgiu de uma progressão de acordes que eu tinha criado no violão, gravado e guardado, um ano atrás. Quando ouvi de novo, no processo de pré-produção do álbum, fiz a canção em 5 minutos.
“A Onda”
“A Onda” tem um pouco de eletrônica e folk, junto de uma suave cadência de samba. Julia Branco é minha conterrânea de Belo Horizonte e nos conhecemos em 2013. No fim do ano passado, começamos a conversar sobre compor juntos e uma ideia musical que enviei pra ela por e-mail, ali nos últimos dias de 2019, virou a música “A Onda”. Julia passava uns tempos na Bahia na época e criou essa letra totalmente inspirada pelo mar da Bahia. A letra é basicamente a primeira versão que ela me mandou – a única sugestão que fiz foi a linha “e se a onda te levar, lembra que você é a onda”. Essa música me traz uma sensação de dissolução, de comunhão com o mar, e também um estado de não-resistência. Um aceitar que leva à transformação da perspectiva, sem falar no mar como esse elemento que lava toda impureza. Como esse disco seria gravado em Belo Horizonte, Julia e eu estávamos combinando as sessões de estúdio em abril, mas veio a pandemia e, com as restrições todas, terminei de produzir essa faixa em casa, em São Paulo, e Julia gravou a voz no iPhone dela, em casa, em Belo Horizonte. O clipe também foi feito em situação de quarentena, com cada um se filmando em casa sob a direção do Fábio Lamounier, que também fez a montagem.
“Our Time”
É uma música que fiz à distância com Lucas Nascimento, músico de Belo Horizonte que integra as bandas !Slama e The Us. Ele me mandou uma faixa instrumental e eu fiz a melodia de voz e a letra em cima, numa sentada só, com algumas polidas posteriores no inglês. Na faixa final, usei alguns sintetizadores dessa demo dele e rearranjei outras partes. É sobre focar no que realmente interessa, e não aguardar a transformação da circunstância como condição da transformação interna. É preciso lidar com a realidade que se tem, e a gente só tem autonomia e determinação sobre a nossa percepção e a nossa ação, não as dos outros. Também, há de se levar em conta que, às vezes, a dualidade não significa que uma coisa está certa e outra errada – podem ser duas perspectivas que não se anulam.
“Depois do Fim da Guerra”
É uma faixa calma, apenas com voz, violão e piano, sobre o resultado final do desapego e da integração: o caminho novo que se abre. Surgiu como parte musical primeiro, e quase um ano depois veio a letra. A ambiência foi gravada com meu celular em uma viagem à Alemanha no fim de 2018. Na letra faço menção a um trecho do livro Só Garotos, da Patti Smith, em que ela lê uma biografia do líder indígena Crazy Horse e cita a crença dele de que, se parasse pra recolher os espólios do campo de batalha, seria derrotado. Pra lembrar-se disso, ele tatuava raios nas orelhas de seus cavalos pra que os visse enquanto cavalgava.