Em seu corpo território, Brisa Flow abriga mapas de uma América – ou melhor, uma Abya Yala – tão ancestral e verdadeira quanto simbolicamente exotificada e invisibilizada. A rapper, cantora, compositora, performer, poeta, ativista – e tudo mais que puder dar conta de sua potência – carrega na sua bagagem os trabalhos Newen (2016) e Selvagem Como o Vento (2018) e tem aparecido cada vez mais na lista de figuras das quais precisamos estar atentas e atentos, de preferência em posição de escuta ativa. Filha de um casal de artistas chilenos, ela nasceu em Minas Gerais e é uma das principais expoentes do indígena futurismo aqui no país.
Hoje, a NOIZE lança em primeira mão o clipe do single inédito “JOGADORA RARA”. A canção é uma conversa direta e reta que desmascara o pensamento exotificante que o mercado e os espaços das artes, como os museus, ainda ecoam sobre corpos, linguagens e saberes que não sejam brancos ou eurocentrados. O clipe teve takes gravados na Comunidade da Coroa, no Rio de Janeiro, e contou com uma equipe só de pessoas indígenas e pretas na frente e atrás das câmeras. A direção ficou por conta de Nicolle Nascimento, com assistência de Abimael Salinas.
Abaixo, confira a estreia de “JOGADORA RARA” e, na sequência, uma conversa imperdível com Brisa sobre os caminhos para uma arte transcultural.
Brisa, no seu novo clipe, existem momentos em que a presença das mulheres/pessoas racializadas nos espaços que vocês visitam já desperta uma série de narrativas e discussões. Como surgiu o insight de partir do corpo racializado enquanto elemento de tensionamento dos territórios urbanos que aparecem no clipe?
Acredito que o corpo é território também e, como um território, tem memória ancestral. Meu corpo de mulher ameríndia é minha identidade, com meu corpo eu faço arte e me movo pelo mundo, e o que sustenta o copo é a identidade. Nossos rostos muitas vezes não são bem vindos, nem são vistos como protagonistas em trabalhos artísticos e de audiovisual como cinema e publicidade. Durante anos, mais precisamente entre 1870 e 1930, os corpos indígenas de Abya Yala (América) foram levados a zoológicos humanos para serem exibidos. E nosso imaginário colonizado ainda espera o indígena e as pessoas racializadas em locais a serviço e para exposição da branquitude. Faço esse paralelo para que a gente perceba o quanto a colonização deixou feridas a longo prazo, Grada Kilomba [psicanalista e artista multidisciplinar] fala disso em seus trabalhos. Nesse som, eu quis trazer essa reflexão, o quanto o sistema patriarcal colonial capitalista moderno quer as mulheres racializadas trabalhando pra ganhar pouco e continuarem servas dessa armadilha. A arte, assim como rap, é uma ferramenta de vencer o epistemicídio e contar uma história diferente, em que nós somos protagonistas. Estar no mercado da música e da arte vindo da periferia ou de territórios aldeados é transitar entre o mundo da resistência e o mundo da vernissage e isso causa impactos de diferentes proporções, tantos nos espaços, quanto em nós mesmos, e também abre caminhos para as mulheres que estão vindo atrás. O facão na cidade é sobre abrir caminhos da quebrada até esses outros espaços.
Essa sensação se estende também pela performance e os seres. Por exemplo, há aquele momento incrível em que duas mulheres não brancas estão em um museu, uma trançando o cabelo da outra. E nesse espaço, o trançar ganha ainda mais tom de performance. Para você, quais seriam os caminhos mais saudáveis para orientarem esse diálogo de saberes colonizados/brancos/elitistas e saberes dos nossos povos originários?
Eu gosto muito de uma música que Alex Quin canta: “Me gusta trenzarme como mis ancestros” [“Eu gosto de ser traçado como meus ancestrais”]. Eu fui trançada pela minha mãe, pelo meu pai, assim como trancei os cabelos deles também. Trenzar me [Me trançar] é uma terapia, eu reflito, eu me faço um carinho e me sinto bela. Mi mamá me eseno [Minha mãe me ensinou]. Eu acho que é uma das poucas coisas que me dá forças quando me sinto mal em espaçøs em que majoritariamente há pessoas brancas. Eu começo me trançar e me sinto forte, eu me sinto junta dos meus ancestros, eu tenho essa atitude desde pequena, e é poderoso. Eu quis filmar essa cena em um espaço de arte pois não há maior arte que resistir à colonização em um continente invadido e massacrado. É sobre irmandade também, sobre a união de mulheres racializadas na arte, sobre esse momento de decolonização, e também está relacionada à crença de vários povos sobre o sentimento de coletividade. Esse, para mim, é o caminho mais saudável: dar o espaço para o protagonismo, descolonizar os espaçøs de arte, educação e música pra que caminhos transculturais/ interculturais sejam construídos e haja respeito. Como eu digo na música: a treta é sobre território e é preciso falar de demarcação e reparação histórica
Falando também sobre horizontes, ampliando a questão anterior, de que forma você delimita a inserção de corpos racializados – principalmente do seu lugar, enquanto mulher de ascendência indígena – em trabalhos artísticos de forma não objetificadora?
Eu sou um corpo em movimento, um corpo da Terra, e a terra também é a rua, debaixo do asfalto tem floresta. Silvia Cusicanqui [socióloga] diz que o Hip Hop é um aquilombamento urbano. Então, eu entendo o hip hop como minha casa também. Acredito que a partir do momento que a gente começar a entender que aqui no asfalto tem floresta e que os corpos indígenas não estão no passado, e que nosso continente tinha história antes de 1500, vamos começar a entender a presença de indígenas na faculdade, na arte, no hip hop, nas aldeias, com iphone, e isso não será um problema que fará a pessoa menos indígena. Essa objetificação está ligada ao protagonismo, pois quando o trabalho é feito a partir da narrativa de pessoas indígenas, a chance de objetificação é bem menor.
E como você conduz essa linha tênue entre ocupar espaços hegemônicos, mas não fazer deles a chancela daquilo que já é chancelado pelos espaços não hegemônicos?
Conduzir é lidar com esse não lugar constante. Meus pais são artistas também, eu cresci vendo eles fazerem artesanato, venderem artesanato, houveram épocas financeiras boas e péssimas. Eu aprendi viver com plata e com pouca plata. Vi meu pai ganhar prêmios de arte com seus trabalhos feito a mão, vi eles virarem madrugadas trampando. Mas eu vi essa luta constante pra não deixar de ser quem eram e, ao mesmo tempo, essa dor de estar longe de casa. Eu me sinto assim sempre em um não lugar. Gosto daquela frase do Mano Brown: “Você sai da favela e ela não sai de você”. Acho que nunca esquecer quem somos e como estamos tecendo esse caminho ajuda a gente a não se perder. Mas acredito que todo artista racializado se perde um pouco, é um caminho tortuoso, doloroso, a história de vários está aí pra contar. A real é que nós queremos sobreviver à miséria e parar de sentir dor, e que as crianças que vêm dos lugares que viemos possam ter outras histórias e referências. Acho que esse é o maior aprendizado na vivência de quebrada que eu tive: a luta por fazer grana e ao mesmo tempo a luta pelo povo, e não nos perdermos de quem somos. É muito doido e doído.
Em 2018, Beyoncé e Jay-Z lançaram o emblemático clipe de “APES**T”, no qual eles fecharam o Museu do Louvre para a gravação, e essa relação corpo e território foi o que conduziu a narrativa. Este ano, o Heavy Baile lançou o clipe “Noturno 150” que insere um dançarino de passinho sobre diversas obras presentes no Metropolitan Museum. Algum deles foi algum tipo de disparador criativo para o seu clipe? E como você você acolhe esse debate de artistas contemporâneos racializados com obras de artistas em sua maioria brancos e europeus que são tidos como cânones?
Acho incríveis esses clipes que você citou, mas não foram os disparadores. A real é que nós retomamos o museu. Eu me inspirei no artista Denilson Baniwa que admiro muito e recomendo aqui pra que todos assistam sua performance “Breve história da arte”. Eu já vi o video dele na Bienal e tive o prazer de ver ao vivo no MASP, é sobre retomada. A música “JOGADORA RARA” é um deboche com o mercado da arte e da música que nos exclui constantemente de festivais, editais, exposições, fazer dinheiro (literalmente). Chegar nesses espaçøs com nossos trabalhos é sobre retomada, de facão na mão. Arte é um bagulho muito foda, pra cada um bate de um jeito e tem gente que reflete dias sobre a viagem que teve com a obra de arte. Eu acho que tem muitas obras de arte que estão em museus e que são de pessoas brancas que mexem comigo, mas isso não exclui o debate que esses espaçøs ainda são hegemônicos. Por isso, eu defendo a transculturalidade, o Brasil Pindorama é rico em cultura e continua se enriquecendo com os imigrantes. Eu estou morando no Glicério agora, em SP, e vejo o quanto tenho aprendido com amigos imigrantes sobre diversas coisas em apenas quatro meses aqui. É sobre isso, sobre ter espaço pra outras visões e aprendizados que não sejam sempre eurocentrados.
Brisa, falamos muito sobre a representatividade na frente das câmeras, mas seu clipe contou com uma equipe totalmente formada por pessoas indígenas e mulheres racializados. O que muda quando a representatividade também está atrás das câmeras, na equipe que faz acontecer?
A equipe fez toda diferença, sinto que esse trabalho foi importante pra todes ali. Quando Abimael e Nicole me convidaram pra gravar um clipe com eles, eu fiquei muito feliz quando me contaram que queriam aquilombar os amigos pra ser o elenco. Fizemos com pouquíssima verba e com muito amor, isso mostra sobre a luta que continuamos tendo pra sermos inseridas no mercado. Ver o resultado nos deixou felizes em vários aspectos. Ver nossa beleza na tela filmada por quem entende como queremos ser fotografadas. É sobre nos sentirmos bonitas e competentes.