É necessário sabedoria para entender que singelo é um dos elogios mais bonitos que se tem por aí. O trabalho do professor e artista baiano Marcos Marinho não é modesto, nem simples ou simplório: é, acima de tudo, singelo. Com um violão na mão e várias ideias na cabeça, Marinho tece o seu primeiro disco solo: Aura. Crônicas sobre a passagem do tempo, da vida, do movimento de apaixonar-se e desapaixonar-se se, e da raiva contra as opressões do capitalismo ganham embalo no vocal arredio de Marinho e nas levadas de MPB, blues, samba, reggae, arrocha e seresta.
Aura chega hoje às plataformas digitais. A produção é de Marinho em parceria com os músicos Fernando Guimarães, Gabriel Moreira e Adilson Moreira. Adilson assina também mixagem e masterização do álbum que sai pelo Estúdio 878. Marcos ampliou os universos particulares de cada uma das oito faixas que compõem sua obra em um faixa a faixa exclusivo! Dê o play em Aura e leia os comentários do artista na sequência:
Estúdio 878, ‘AURA’ foi produzido pelo próprio Marcos Marinho, em parceria com os músicos Fernando Guimarães, Gabriel Moreira e Adilson Moreira, também responsável por assinar a mixagem e masterização.
1.”Trégua”
É a única música que compus durante o período de gravação do disco. Ela é um reggae que sintetiza o meu apreço pelas linhas de baixo e de guitarra da banda Ponto de Equilíbrio, bem como o meu apreço pelos artistas de reggae do interior da Bahia e, ainda, o meu apreço por Manu Chao, um artista francês que muito me influenciou pela forma crítica e criativa como aborda o reggae em suas músicas. Penso que “Trégua” é uma música litorânea e que representa um pedido de desculpas e um apelo urgente para que nos desfaçamos do nosso orgulho e sejamos capazes de nos perdoar e amar enquanto temos tempo, já que a vida é breve.
2.”Conversas sobre o frio e o tempo”
Essa música surgiu durante uma conversa com Inés Garaza, a artista visual autora da capa do disco AURA. Nesta conversa, eu a aconselhei justamente a conversar sobre o frio e sobre o tempo com as pessoas de Montevidéu, sua terra natal. Assim que lhe disse isso, Inés me respondeu que eu deveria escrever uma música com esse título. Poucos meses depois, compus a música, após fazer uma viagem de mil quilômetros com um caminhoneiro generoso que, sensibilizado com minha dificuldade financeira, realizou o transporte dos meus móveis de uma cidade para outra a preço de custo. Vejo essa música como uma oração muito profunda e sincera, na qual rezo para que tenhamos paz e proteção pelas estradas por onde a vida nos levar. Através dela, expresso, de forma especial, o meu reconhecimento à humildade e dignidade dos caminhoneiros de todo o Brasil.
3.”Ipiaú para o mundo”
Essa é uma música de amor. Acho que ao escrevê-la, busquei revelar para uma pessoa que está longe o quanto lhe amo e o quanto gostaria que conhecesse a minha família, que mora na cidade de Ipiaú, no interior da Bahia. Acho muito lindas a harmonia e a melodia dessa música. Me conduzem para um universo tipicamente nordestino. A letra, por sua vez, escrita em uma espécie de portunhol, suscita um diálogo entre visões de mundo distintas sobre uma Ipiaú subjetiva, a qual gostaria de compartilhar com certo alguém, e uma Ipiaú objetiva, uma cidade importante na minha história de vida, onde vivem familiares e amigos muito queridos, uma cidade onde sempre me senti acolhido e amado, terra de gente muito simples e trabalhadora, à revelia do coronelismo cacaueiro e das suas consequências históricas na cultura local.
4.”Se Apaixonar”
“Se Apaixonar” é uma das quatro músicas que fazem parte do EP O nome disso é capitalismo, um EP lançado em abril de 2021 com o objetivo de chamar a atenção do público para o lançamento do disco AURA. Essa é uma composição muito importante no meu repertório, a considero umas das músicas mais bonitas que escrevi nos últimos anos. Me encanta que ela tenha sido gravada de uma maneira simples, onde minha voz foi acompanhada somente pelo meu violão, sem cortes, ajustes ou edições. Acho a harmonia e a melodia belíssimas, inspiradas na singularidade do violão mineiro, do qual pude me aproximar durante os anos que morei em Juiz de Fora, sul de Minas Gerais, quando cursei o mestrado em Direito pela UFJF. Compus “Se Apaixonar” durante esse período. A letra da música retrata a agonia e o alívio frente ao fim de um relacionamento que se acabava e a expectativa e encanto frente a outro relacionamento que estava por nascer. Foi nesse interlúdio que percebi que é tão comum se apaixonar, verso final do refrão da música.
5.”Akai Ito”
“Akai Ito” é uma lenda chinesa muito popular no Japão e que busca explicar a existência de uma conexão muito forte entre duas pessoas através de um mito segundo o qual os deuses amarrariam, durante o nosso nascimento, um fio vermelho no nosso dedo mínimo, nos ligando a outra pessoa. Escolhi esse título pra essa música acreditando que, mesmo depois de muito tempo separados, é possível que duas pessoas que tenham construído esse tipo de conexão se reencontrem e sejam, pelo menos, amigos. “Akai Ito” é, aliás, um pedido de desculpa que demonstra a agonia do amor num período devastado por ideologias individualistas, nas quais o amor está condenado à dominação e ao sofrimento. É, além disso, um apelo para que saibamos cuidar bem de quem está do nosso lado.
6.”Luz”
Essa música é um blues formado por uma letra bem pequena e existencialista. É uma música marcante, apesar disso, por conta da fluidez da melodia e de sua relação com a banda que, ao final da música, se entrega a um solo de guitarra com um timbre bem bonito, um solo que toquei com bastante sentimento. Sempre gostei muito de blues. Acredito que nessa música, isso esteve relacionado ao olhar biográfico que, em poucas linhas, acabei traduzindo nesta canção. É uma música que fala sobre a minha história, mas acredito que ela pode fazer outras pessoas acreditarem na própria luz, quando, por vezes, ela estiver perto de se apagar.
7.”Automedicação”
A única música do disco que fiz em parceria com outro compositor é “Automedicação”. Ela nasceu depois de uma visita que fiz ao poeta Elder Oliveira. Dias antes, Elder havia me emprestado o seu violão para uma gravação. Quando fui em sua casa devolver o instrumento que me emprestou, conversamos um pouco, ouvimos música e, por fim, Elder me presenteou com uma poesia de sua autoria, para que eu a musicasse. Ao chegar em casa, fiz a música em menos de dez minutos. Considero maravilhosa a poesia de Elder e acredito que nesse arranjo meio blues que fiz, mutatis mutandis (risos), inspirando-me em Robert Johnson, conseguimos, Elder e eu, traduzir um sentimento de liberdade frente ao inferno das significações constantes, a eterna busca por sentido e ao racionalismo que, muitas vezes, desconsidera que somos seres sensíveis e que a vida é só para a gente viver.
8.”O Nome Disso É Capitalismo”
Considero essa música muito surpreendente. Primeiro pelo título e pela letra, um discurso anticapitalista que me ocorreu num momento de enorme insatisfação frente as opressões que cotidianamente sofremos no mundo do trabalho. Além disso, a considero surpreendente porque ela representa um arrocha bem raiz, uma seresta, cantada ironicamente num flow típico de um artista de rap. Me orgulho muito dessa música. Acho que ela escancara a minha audácia e eleva a ironia a uma condição de componente estético presente na minha visão de mundo sobre o capitalismo. Acho curioso ouvir essa música e me sentir agitado, como se estivesse ouvindo um heavy metal. Por fim, quero dizer que eu amo tocar arrocha e que esse foi somente o primeiro que compus, e que essa é a versão com banda da mesma música que dá nome ao EP lançado em abril.