Com uma sonoridade que remete à era dourada do boom-bap, o Febre90s vem conquistando espaço no rap brasileiro. Formado pelo MC carioca Pumapjl e pelo beatmaker paulista SonoTWS, o duo se destaca por letras que retratam vivências urbanas e contemporâneas, sem deixar a nostalgia de lado: isso se reflete no uso de beats noventistas e na exaltação da mídia física, por exemplo, já que todos os lançamentos são feitos também em fita cassete, em uma reverência às mixtapes analógicas.
Os singles lançados pelo Febre90s se espalham nas redes com a força de um vírus, mas você não verá o rosto deles por aí: os integrantes se apresentam usando balaclavas, mostrando que estão no rolê, de fato, pela música. Tudo é estrategicamente pensado em um conceito que investe no imagético para valorizar as capas dos singles lançados, todos em parceria com ilustradores e artistas visuais. “Nossa referência estética são nossos amigos do graffiti e da pixação”, nos conta Sono.
Sono e Puma já haviam trabalhado juntos no EP Naturalidade (EP), de Puma, embrionário do Febre90s. Em 2021, lançaram o primeiro single, “No Piscar dos Olhos”. No ano seguinte, veio “Sementinha do Mal”, o hit do duo, com mais de 41 milhões de plays no Spotify. Nesse meio tempo, seguem lançando projetos paralelos ao Febre, ainda que juntos. O EP Autodomínio (2023), por exemplo, é outro fruto da parceria dos dois — na essência, é de Puma com produção de Sono. A capa reverencia o icônico álbum Arthur Verocai (1972), com ilustração assinada por Nihao.
Neste início de 2025, o Febre90s lançou single “Cartier Santos Dumont”, que foi destaque na nossa lista de lançamentos da semana. A faixa, que nasceu em meio à euforia da confirmação de uma turnê na Europa, sintetiza um momento de transição para o Febre90s, quando os sonhos começam a se tornar realidade. O título, inspirado no icônico relógio da Cartier idealizado para o aviador Santos Dumont, é uma metáfora para esse novo ciclo de crescimento e transformação.
A produção de SonoTWS reforça a essência do duo, trazendo a textura clássica dos raps dos anos 90 com o uso de samplers vintage e técnicas que resgatam a sonoridade analógica. A mixagem e masterização foram feitas por 2F, engenheiro de som da Papa Tunes, do renomado produtor Papatinho. Depois, a faixa foi gravada em fita de rolo com Buguinha Dub, reforçando a textura característica do grupo. Além disso, a arte visual que acompanha o single, assinada por Ferran M Font (Skorpio), insere camadas de simbolismo à narrativa, referenciando mitologia e cinema para ampliar o conceito da faixa.
Em entrevista à Noize, Pumapjl e SonoTWS contam mais sobre o novo trabalho:
Podem dividir com a gente como foi o processo criativo de “Cartier Santos Dumont”, e como vocês chegaram nesse nome?
Sono: O Puma colou aqui em casa, em Jundiaí [SP], para gravarmos uma faixa, que sairá depois de “Cartier”. Fiquei mostrando alguns beats que fiz recentemente e, quando mostrei o de “Cartier”, ele gostou na hora.
O processo é colaborativo, a ideia de um complementa a do outro. Deixamos em loop no estúdio, ele começou a escrever a letra. Quando ele rimou pra mim pela primeira vez, eu já sabia que ia dar bom. Foi aí que acrescentei alguns detalhes no beat para amarrar o conceito do “tempo”, do “relógio” que o Puma trouxe na letra. Em vez de usar um som de chimbal, o famoso hi hat, eu peguei um mini trecho de um soul dos anos 70, um sample falando “tic-tac- tic-tac”. É esse sample que conduz a faixa.
Todo trabalho do Febre90’s tem sample de música jamaicana e, com “Cartier”, foi a mesma fita. No final da faixa, sampleamos U-Roy, um dos maiores DJs da música jamaicana. Kool Herc, considerado pai do hip hop, é jamaicano. Eu gosto muito de trazer essa conexão histórica nas faixas do Febre.
Puma: A ideia da música surgiu quando o Sono me contou que conquistou o relógio da Cartier, o modelo Santos Dumont. Eu sempre vibro com as conquistas dele, como se fossem minhas! Foi uma homenagem a um momento muito especial pro meu mano. Em paralelo, estávamos esperando a confirmação de uma possível turnê na Europa… as expectativas estavam grandes, estávamos vibrando com a situação. Comecei a sonhar em como seria passar 20 dias com os meus irmãos viajando pela Europa fazendo a única coisa que eu amo e sei fazer: rap!
Como foi a escolha por trabalhar com o 2F? E como foi contar com ele nesse single?
Sono: Muitas pessoas não sabem, mas o 2F é meu primo! Com ele morando no Rio de Janeiro e eu em Jundiaí, não era sempre que nos encontrávamos. Me lembro de quando era mais novo, eu sempre tive o sonho de fazer beats, e o 2F já fazia, já entendia demais sobre o assunto. Certa vez, ele foi em casa, instalou o Fl Studio [software de produção musical] no meu computador, jogou um drum kit e me explicou o básico, e eu não entendi nada [risos]. Fui aprender depois de quase 10 anos, com um sampler.
Depois do primeiro som do Febre90’s e indo para o Rio visitar sempre o Puma, estreitamos os laços e hoje é ele o responsável pela mixagem e masterização dos últimos lançamentos… Para a gente, é um privilégio trabalhar com ele e, pra mim, é muito maneiro ser da mesma família desse monstro.
A Febre90 sempre faz lançamentos em cassete. Por que priorizar essa mídia e qual a importância que vocês veem na mídia física?
Sono: A fita cassete é uma peça importante para a cultura do beatmaker desde as “Fitas de Batidas” que rappers entregavam em mãos ou enviavam por correio para as gravadoras. Muitos beats exclusivos, que acabaram hoje virando hits, já atravessaram o mundo nas fitas. Meus lançamentos todos foram feitos em fita cassete e não seria diferente com os do Febre90’s.
Vendemos nossas fitas e já somos acostumados com o sold out em poucos minutos. Recebo diversas mensagens de pessoas que não viveram essa fase da fita e hoje em dia já compraram um toca fitas, já começaram a colecionar…
Fora tudo isso, a fita também é como se fosse uma “capsula do tempo”. Marca nossa música no espaço-tempo.
A estética e o aspecto visual também é forte em vocês. Quais as principais referências que vocês carregam nesse aspecto?
F90: Nossas referências são nossos amigos do graffiti e da pixação. A maioria dos artistas que trabalham conosco, desde a capa até o design das camisetas, são artistas que representam na rua, artistas que já se arriscaram muito fazendo throw up ou pixação.
Nossas capas são como um muro pixado, uma agenda de pixação com vários nomes espalhados em diversas cores e tamanhos. Tem tags, tem throw ups [técnicas de grafite], são vários estilos numa só capa.
Na rua, quanto mais você botar seu nome, mais você vai ser reconhecido e é esse nosso lema… tem capa nossa que tem 3 nomes iguais em estilos diferentes, como um muro de 1997 com nomes de vários manos relíquias, clássicos das ruas.
Vocês pensam em lançar um álbum?
F90: Nossa preocupação é fazer música boa, independente do formato. Pensamos, sim, em lançar um álbum, mas também pensamos em testar outros formatos, outros esquemas, sem cair nas regras impostas por gravadoras, distribuidoras ou terceiros. Sem regras, até porque nosso corre foi em contramão de tudo que rola na cena de hoje. É por isso que estamos aqui. Isso é Febre90’s.