Entrevista | As paisagens de Juliana Perdigão

23/09/2016

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Por: Luciano Viegas

Fotos: Mauro Restiffe

23/09/2016

O mais recente disco da mineira Juliana Perdigão, Ó, despontou como uma das boas surpresas entre os lançamentos do ano. Ora com seus arranjos suaves em sopro, ora fazendo reverberar a densidade da experiência urbana, as canções transitam claramente por vários lugares e performam essas passagens. Nas linhas que seguem ela nos conta sobre seus diversos parceiros, grupos dos quais participou, entre outras histórias sobre sua trajetória na música, que define como uma formação “esquizofrênica e pontiaguda”. Quando passa a integrar o Teatro Oficina Uzyna Uzona, começa a tomar forma outra transição que seria definitiva para sua sonoridade como ela se apresenta hoje em Ó.

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Entre Belo Horizonte e São Paulo, onde o show de lançamento do disco ocorreu no último dia 15 de setembro, Juliana consolida novas parcerias, monta a banda, os Kurva, e se insere ao lado de outros artistas, peças raras, desses que ainda insistem em considerar a música como lugar de resistência e experimentação formal. Para se ter uma ideia do naipe dos colaboradores do disco, por exemplo: Rômulo Fróes, Zé Celso Martinez, Ava Rocha, Marcelo Cabral, Kiko Dinucci, Ana Martins Marques, Ná Ozzetti e até Haroldo de Campos entra na história! Segue abaixo alguns fragmentos sobre esses encontros que compõem o painel complexo de Ó, lançado no último mês de julho pelo selo YB Music com patrocínio da Natura Musical.

Você poderia começar falando sobre como iniciou na música. E sobre Belo Horizonte, já que morou aqui durante muitos anos.
Nunca tive um envolvimento na infância, de estudar, ou de ter algum contato com instrumento de nenhum tipo. Sempre gostei muito de ouvir os discos que minha mãe tinha em casa, depois já com uns dez anos comecei a comprar uns discos de vinil por minha conta, comprei a coleção toda dos Beatles e tal. Então sempre tive essa atenção, mas nunca tinha tido até o começo da adolescência, com 17, 16 anos, um contato formal, de escola, nem nada. O primeiro contato mais forte foi no Festival de Inverno da UFMG, que até 99 acontecia lá em Ouro Preto. Eram uns festivais incríveis, multiáreas, então fiz aulas de várias coisas lá, as primeiras aulas de música foram lá. Comecei a cantar num grupo, o Voz & Cia, que era um grupo vocal. O Ernani Maletta que era o regente musical dava essas oficinais em Ouro Preto na época. Quer dizer, o Festival de Inverno abriu muito, foi muito importante pra minha geração e pra anterior, pra muitas pessoas né. Foi uma coisa de formação pra nós todos ali que estávamos interessados em arte. Tinha aula de tudo que é coisa, uma grade de oficinas incríveis, professores maravilhosos. Então fiz aula de poesia, de literatura, de teatro, tudo ali. Foi a primeira vez que tive vontade mesmo de enveredar profissionalmente na música.

Chama atenção na sua apresentação com os Kurva que você está à frente no vocal, mas também com clarinete, clarone e flauta. Foi nessa época que você descobriu os instrumentos de sopro?
Depois do Festival de Inverno de 96 eu me inscrevi no Cefar, que é o centro de formação artística do Palácio das Artes, onde eu estudei clarinete, canto coral, história da música, teoria, musicalização e tudo. Então essa escola foi muito importante, porque além de ser escola, é um centro de arte mesmo. A gente tinha acesso livre ao teatro pra assistir todos os concertos da Orquestra Sinfônica, via ensaio deles, tinha a Cia. de Dança, abertura de exposição, o Cine Humberto Mauro. Então foi toda uma efervescência e uma abertura muito grande pra mergulhar num universo assim de arte. Depois estudei também na Fundação de Educação Artística, que é uma escola massa demais, onde conheci pessoas que são até hoje meus parceiros musicais. Depois ainda fiz vestibular pra UFMG, e fiz a escola de música lá na federal. Então as escolas são importantes, mas acho que mais que tudo é a vivência. Desde essa época a gente já formava uns grupos, tinha essa prática de tocar junto.

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E a sua vivência nas rodas de choro de BH?
Ah sim, isso já foi depois. O primeiro grupo que eu toquei depois do Voz & Cia, quer dizer, cantei em coral, cantei no Ars Nova, em vários coros, na UFMG também. Mas eu tinha um grupo que se chamava Elefante Groove, que era um grupo de percussão e tinha um naipe de vozes, eu também tocava clarinete. A gente até gravou um disco em 2003, não se se tem na internet. É um disco que eu ouvi recentemente e achei muito bom, acho que não ficou velho, sabe? Não sei se você conhece o Lenis Rino, compositor, ele era o diretor desse grupo. Sempre foi muito diverso a prático. Além disso eu tocava nuns pequenos grupos de Câmara e tal. Até que na Fundação de Educação Artística conheci muita gente que tava ligada ao choro e comecei a frequentar as rodas. O Mozart, o Zé Carlos, um cara do cavaquinho que tá até hoje aí, véião. Sei lá, não vou arriscar a idade do Zé, mas assim, experiente!, e me levou pra tudo quanto é roda de choro. Então conheci o Auzier, do Pedacinhos do Céu, fui no show do Bolão lá no Padre Eustáquio, conheci o Mozart. Comecei a andar com esses caras tipo sessenta anos mais velhos que eu e foi esse rolê.

Depois quando entrei na UFMG a gente fez o Corta Jaca, gravamos dois discos, teve produção do Maurício Carrilho, trabalho que eu tenho muito orgulho. A gente tocou bastante, viajou muito. Até hoje sou muito amiga de todos eles, o Marcelo Chiaretti, que é o flautista e arranjador do grupo, irmãozão meu, a gente começou a tocar na mesma época. Então é isso também, minha formação é bem esquizofrênica e muito pontiaguda, em muitos lugares, nunca aprofundei muito numa coisa só. Teve época que eu tava cantando no Ars Nova, tocando no Proa, que é uma banda de ska e surf music aí de BH, que tem até o bloco do ApPROAch no carnaval, e tocando em grupo de choro… Então era um negócio bem difuso. Acho que isso acabou por ficar impresso no meu som, os meus dois discos apontam pra muitos lados.

Quanta coisa! Precisa fazer um resgate desses discos e disponizá-los pra nós.
Pô, cara, tem vários. Tem um grupo maravilhoso que chama Quatro na Roda, que a partir da vivência com o choro me aproximei também desse universo que é quase um afluente, o universo do samba. Tinha esse grupo, era um quarteto. Era eu cantando e tocando sopros, o Cristiano Vianna no violão e voz, Analu no pandeiro e o Du Macedo no cavaco. A gente gravou um disco muito legal, produzido pelo Jaime Vignoli, que é um cara do Rio, arranjador, compositor maravilhoso. Isso é doido, a gente nem fez show de lançamento, eu mudei pra cá logo depois, então acho que teve pouco alcance. Mas é isso, a gente tem uma produção muito grande em Minas, tem muito disco que foi lançado, principalmente durante o tempo em que a lei de incentivo funcionou bem e a gente tinha patrocínio, foi uma produção grande.

Então você começou a falar dessa transição pra São Paulo, como é que foi essa chegada?
Eu vim pra cá por causa do Teatro Oficina. Eu vi o Oficina aí em 2009, eles foram fazer uma apresentação no Museu de Arte da Pampulha, apresentaram a peça O Banquete, com a qual depois eu fiquei em cartaz aqui com eles.

Você entrou no Oficina tocando?
Foi, eu fiquei com esse desejo. Depois eles fizeram uma turnê pelo Brasil que chamava Dionisíacas, deram um rolê em várias capitais, ficaram uns 15 dias em BH, fizeram uma tenda ali na Barragem Santa Lúcia, deram oficinas e tudo, então comecei a me interessar. A gente faz até hoje transmissão ao vivo das peças pela internet, teve uma em especial que me chamou muito atenção, uma peça do Brecht que se chama Acordes. Essa peça tem um trabalho musical maravilhoso, eu vim ver aqui depois e fiquei com muito desejo de participar daquilo. A composição original é do Paul Hindemith, alemão, e foi total antropofagizada, aquela coisa, traduzida pelo Zé, pelo grupo. Então comecei a vir aqui, frequentar e tudo, até que uma hora me deram uma intimada. O Zé falou “quando é que cê vem?” e tal. Só que eu vim na intenção de tocar meu clarinetinho, tudo, no máximo cantar um pouco, e o Zé queria que eu atuasse! Ele pirou nisso de que eu tinha que atuar.

Na época ele já tava com o plano de fazer mais um capítulo de Cacilda, que é uma odisséia interminável de vários capítulos, então eu fiz uma personagem que era a mãe da Cacilda (Becker) e que era esposa dele. Tinha duas personagens, uma que era a Dona Alzira Becker, mãe da Cacilda, e outra que era a Madame Burguesia, uma representante ali da burguesia paulistana do café dos anos quarenta. Daí foi massa que entrei, nunca tinha atuado na vida e tava contracenando com Zé Celso, entendeu? Era emocionante, foi bem legal. E ele era meu marido, Franco Zaffari, o cara que fundou o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), o mecenas que era empresário e bancou o lance todo.

Que tal essa relação de marido e mulher com Zé Celso?
Emoção pra valer! Até mordida eu já tomei em cena (risos).

Então você já foi morar em São Paulo desde então?
Na verdade eu senti que cheguei em São Paulo mesmo, sei lá, um ano e meio, dois anos depois. Porque eu fiquei tanto nessa imersão do teatro, que se o Oficina fosse em Sabará dava no mesmo, entendeu? Eu ficava lá o dia inteiro e era isso. Claro, já tava de alguma maneira absorvendo a cidade e tudo, mas por exemplo a coisa de ir em show, de participar da cena da música independente aqui, de trocar, eu ia muito pouco, porque lá tem ensaio todo dia, 8, 9 horas de ensaio, uma folga por semana só, a gente ficou muito tempo em cartaz. Logo eu montei a banda, os Kurva, que foi no final de 2014, mudei no início de 2013, então demorou esse tempo aí pra conseguir retomar meu trabalho musical. Lancei o disco Álbum Desconhecido (2012), passei um ano em BH quase, depois de ter lançado, aí mudei pra cá. Então foi uma certa interrupção nesse fluxo de pensar assim como carreira. Agora possivelmente eu vivi muito mais do que se eu tivesse ficado aí ou onde fosse, só focada nessa coisa de fazer o próximo disco. Então foi um alimento muito importante pra esse trabalho novo.

E os Kurva, são de São Paulo e/ou de BH?
O Pedro Gongom, que é o baterista, e o Chicão, pianista, eu conheci no Oficina, eles tavam já quando eu entrei, então foi essa convivência diária, familiar né, foi natural que eles estivessem envolvidos. O João Antunes, o baixista, eu conheço há 20 anos, ele é aí de BH, conheço desde pirralhito, é um pouco mais novo que eu. E o Moita é de Uberlândia, já conhecia ele também do Porcas Borboletas, uma banda muito massa que eu sou fã, de muitas vezes que eu já fui em Uberlândia, a gente foi muito tocar lá quando tinha aquele projeto Conexão, da Telemig. O Porcas sempre recebeu a gente bem e tal. O Moita já mora aqui faz alguns anos, inclusive no Oficina ele tava sempre lá, já tinha esse contato também. Mas foi legal porque eles não se conheciam e hoje o Chicão mora com o Moita, por exemplo, eles tão fazendo vários outros trabalhos juntos.

E o primeiro disco foi produzido todo em BH?
Sim, foi um disco produzido por mim e pela banda na época, principalmente pelo Mauricio Ribeiro, que é o pianista, teve arranjo do Proveta também, mas foi o Maurício que fez os arranjos de corda, ele foi meu braço direito no negócio. Não teve nenhum produtor de fora, diferente desse disco de agora que teve o Rômulo. O meu desejo era gravar músicas inéditas de compositores atuais, principalmente da cena ali de Minas, e acabou tendo uma presença forte de São Paulo também, então acho que já foi um apontamento, uma certa direção pra cá esse primeiro disco. Na época eu até dei entrevista falando que o disco tinha ficado meio “república do café-com-leite”, porque tinha isso. Minas ainda mais né, todos os músicos daqui, mas tinha o Proveta, o Benjamin Taubkin, o André Abujamra, o Carlos Careqa, Tulipa Ruiz. Então já tinha essa mescla, e é um disco que eu tenho muito orgulho, aprendi muito fazendo e tocando com aquela banda, que era muito especial. Quem gravou o disco foi o Pablo Castro, ele na guitarra se aventurando, que não é muito o instrumento dele, mas assim, grandes conhecedores da canção, na verdade. O Maurício, o Thiakov era o baixista, o Matas, o bateirista, eram todos compositores e meus parças de muitos anos, então foi um negócio muito natural. Depois que o Pablo saiu da banda entrou o Luiz Gabriel, eu já tocava com ele no Graveola. Agora, acho que o disco foi muito pouco ouvido, consegui fazer pouquíssimos shows na época. Sinto que esse álbum de agora com um pouco mais de um mês já teve muito mais reverberação que o Álbum Desconhecido. Bom, o disco tá aí também na internet, pra quem quiser baixar e ouvir.

Então você diria que o primeiro disco tem uma pegada mais de canção?
Ah, eu acho que esse disco agora também são todas canções, inclusive o primeiro disco tem uma música instrumental, que nesse não tem nenhuma. Acho que não, canção é muito amplo né, é um grande gênero que abarca muitos outros. Então eu considero esse um disco de canção também. Por que, o que você acha?

Me chama atenção porque o Rômulo fala bastante disso né? Dos limites da canção e, de certa maneira, no Ó isso parece bem forte, tipo um desmonte da canção
Tem canções menos ligadas nessa coisa da forma assim, refrão, verso, estribilho, dessa forma assim mais tradicional. Mas pô, isso aí já tem tanta gente fazendo há muito tempo, né? Não sei, acho que isso não é novidade nenhuma. Acho que um dos caras que faz isso muito isso hoje é o Kristoff Silva, essa coisa da canção expandida, sei lá, o Guinga, acho que a galera tem um fluxo assim mais rapsódico às vezes, que começa, vai e volta. É, acho que tem um pouco de influências mais concretas esse disco. Uma coisa que eu queria e acho que rolou foi tentar ser menos verborrágica nas letras, acho que isso traz uma certa característica do que você tá dizendo.

“Crack pra Ninar” seria o melhor exemplo disso, consiste em uma frase curta só. Como foi que essa letra chegou até você?
Sou fã do Kiko (Dinucci) há muitos anos, acho que vi ele tocando antes até do Metá Metá existir, ou tava começando. Vi ele tocando na Casa de Francisca as canções dele, na época ele era mais ligado mesmo no samba e suas vertentes. Eu tava começando a fazer a banda, os Kurva, e tava procurando repertório, queria que tivesse algumas coisas também de agora, a gente toca nos shows umas versões de músicas já gravadas e conhecidas, mas eu queria manter essa pegada, da linha do Álbum Desconhecido, de compositores da canção contemporânea mesmo. Então fui na casa do Kiko, ele me recebeu, queridaço né, e me mostrou as coisas que ele tava fazendo na época. Gravei tudo, com celular e tal. Ele tava todo bonitinho assim com a guitarra, onze horas da manhã cheguei na casa dele, tipo camisa, oclinho e a guitarra, esperando. De uma generosidade! Aí essa me chamou bastante a atenção. Essa música tá dentro de uma série de canções dele que se chama Cortes Curtos, é o próximo disco, acho que na verdade ele já gravou e tá pra lançar ainda esse ano. São todas músicas assim de pequenos fragmentos, todas narrativas muito curtas, essa me chamou a atenção a melodia, a força e a fragilidade presentes no espectro dessa canção. E também é uma coisa que é bem própria das grandes cidades, né, é uma cena que a gente infelizmente se depara muito aqui em São Paulo, no Centro, na Luz, na Barra Funda.

Parece que a galera da cena independente aí aposta nessa ideia de colocar as músicas em circulação através de outros intérpretes e depois elas reaparecem em diferentes contextos. Por exemplo “Cidade Baixa”, do Rômulo, que você gravou no Álbum Desconhecido e há pouco tempo ele incluiu no Por elas sem elas (2015). Aí a cena vai criando um corpo conjunto de fato.
Tenho pensado muito nisso e conversado com os colegas sobre, parece que a gente tem um certo complexo de vira-lata em BH. Não sei se a gente, o público ou os produtores que fazem os festivais. Quer dizer, nem posso reclamar tanto agora, porque tenho sido muito mais chamada do que eu era quando morava aí. Mas acho que é reflexo mesmo disso, meio que o passe fica mais valorizado quando você não tá aí, infelizmente. Os artistas daí também fazem de tudo pra coisa ter alcance, mas é difícil ter esse respaldo, a gente não tem, por exemplo, crítica. Não tem muita interlocução. Agora com esse disco eu tô sentindo muito mais conversa com a galera dai. Querendo ou não é uma mídia local né, então ela não extrapola muito. É uma maravilha poder trocar ideia né, porque tem coisas que você passa a entender do seu próprio trabalho, quer dizer, a visão do outro é que te entrega. BH tem uma certa tendência a incensar o novo que vem de fora. O Graveola, por exemplo, tem muito menos projeção do que deveria na minha opinião.

Acho que BH tem uma força muito foda. Sabe essa coisa assim que Recife já teve num certo foco nacional durante um tempo, tem ainda até hoje, né. O Pará fez isso e rolou, a música de Belém chega muito mais. Eu sinto que a galera não sabe ainda o que é a música de Minas. O pessoal acha que é Clube da Esquina ainda, entendeu?

O disco vem bastante atravessado por um sentimento complexo de sair de uma cidade e chegar em outra, né? Parece natural que a distância agora te faça ver as coisas com outra clareza. Dentro dessa pegada chama atenção o “Hino da Alcova Libertina”, que é uma afronta direta ao conservadorismo que está dando as caras por aí.
Crescente né. É engraçado porque é um “chuta a família mineira” como alegoria dessa caretice toda aí, desse controle que as pessoas pensam que devem ter sobre as escolhas do outro. Mas é uma ode também, porque é uma música do carnaval daí. Bom, eu sou fã da Alcova e amiga dos fundadores do bloco, tenho uma ligação com eles. Na época eu tinha a impressão de que era uma música muito legal, adorei, mas que tinha um sentimento um pouco juvenil, um pouco anacrônico, um pouco de revolta juvenil e que, infelizmente, foi se tornando necessária. Agora é totalmente pertinente cantar essa música, canto com vontade mesmo de dizer isso nos shows, com tudo que tá rolando, esse conservadorismo, esse retrocesso todo, esse ódio à diferença. Então acho massa ter gravado, nossa versão ficou diferente de como a galera da Alcova toca e acho importante, uma faixa emblemática do disco.

Você pegou a ressurgência do carnaval em BH?
Demais, uai! Eu tava nas primeiras Praias da Estação, o Graveola foi bem presente ali, eu tava muito com eles nessa época. O Carnaval surgiu totalmente a partir disso, dessa reação à política autoritária e retrógrada que a gente tem na prefeitura até hoje aí. Graças a Deus tá saindo fora agora esse capeta, Márcio Lacerda. O Carnaval foi uma resposta a isso, eu tava aí total e, pô, bloco do Tcha Tcha, Tico Tico, Alcova, Peixoto, primeiros ensaios tinham vinte pessoas. Massa demais ver hoje essa consciência de que a cidade é nossa, de que o espaço público tem que ser ocupado mesmo. Que é de todos nós e deve ser pensado como tal. Era impensável pra nós, sei lá, em 2006, que a cidade fosse estar tão mudada.

Voltando pra São Paulo e pro Ó, como foi a direção musical do Rômulo Fróes?
Rômulo é um cara que eu conheci sendo fã, teve disco que me marcou muito, em especial o No Chão Sem o Chão (2009), que é um disco duplo, eu ouvi e fiquei viciada. Ele logo foi fazer um show em BH, algum festival desses lá no Parque Municipal. Aí eu vi o show, pirei, a gente se aproximou e descobriu que tinha vários amigos em comum, ele trabalho muitos anos com artes plásticas, era assistente do Nuno Ramos. Eu tenho muitos amigos também artistas plásticos e tal, ele conhece vários artistas de BH, então a gente ficou amigo, toda vez que vinha aqui encontrava com ele. Quando fui lançar o Álbum Desconhecido ele me levou lá na YB, que é o selo pelo qual gravei agora também esse disco. O Rômulo tem uma espécie de sub-selo lá dentro da YB, já gravou muitos discos lá, como produtor ou trabalhos dele mesmo. Quando pintou depois a banda e a gente já tava fazendo shows a YB me convidou pra fazer o disco lá, o Mauricio Tagliari que é o diretor e parceiro meu em uma das canções, “Bicho Morto”, então acho que foi um caminho natural convidar o Rômulo. Fizemos uma pré-produção, mostrei pra ele algumas coisas, a gente pesquisou outras, tivemos umas ideias de repertório. Teve esse mote da mudança que você sacou total, que falasse sobre esse momento mas não literalmente. Que tivesse essa intenção poética de dizer sobre mudança, sobre movimento, físico e interno.

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“Depois que o 9 virou 6” toca exatamente nesse ponto, acho uma das mais bonitas. Aliás não é de autoria sua, foi encomendada pelo Rômulo ao artista plástico Clima.
É, o Clima é parceiro dele, também compositor. O Guilherme Held, que é guitarrista, toca com o Criolo, com a galera aí, conhece esses clube da encruza tudo, ele tem muita composição sem letra. Mandou umas pro Rômulo e aí essa ele encomendou mesmo, ele falou o tema pro Clima, “a gente tem esse mote” e tal. Aí o Clima fez essa música maravilhosa, é uma das minhas prediletas também. Tem o arranjo de cordas do Marcelo Cabral, que eu acho muito massa. É engraçado que as músicas paulistanas são as mais mineiras do disco. “Pierrot Lunático” também, acho que a gente fez de um jeito que ficou parecendo uma música do Lô Borges.

E as parcerias com Ava Rocha e Negro Leo?
Pois é, cara, Ava dirigiu o show. Minha super irmã, é uma das pessoas com quem eu mais tenho afinidade estética, afetiva. O Leo eu conheço por causa dela. Na época que eu ouvi o primeiro álbum dela, o Diurno, foi lançado mais ou menos na mesma época do Álbum Desconhecido, eu falei “nó, cara, tá aí uma pessoa com quem eu quero trocar”. E bati na porta da casa dela lá no Rio de Janeiro, conheci a filhinha dela que tinha acabado de nascer, tinha um mês, tipo isso. Ela foi linda, como sempre é, uma pessoa de um coração gigante, a gente ficou amigaça a partir daí. Toda vez que ela vinha a São Paulo a gente se encontrava. Essa música em especial eu gosto muito, “Ela é o samba”. Ela fez quando tava aqui no Oficina, em parceria com um dos atores, o Fred Alan. É a música de uma peça do Fred, mas que pro meu subtexto pessoal, eu canto pensando no teatro, por isso que eu emendei as duas, ela com “AEIUO” abrindo o disco. O Leo é maranhense, mas mora no Rio há muitos anos, então acho que os dois são um recorte além, porque tem essa coisa Minas/São Paulo e eles trazem um lado um pouco mais desbundado, mais ligada à tropicália mesmo, a Ava é descendente direta disso né.

Interessante que ela tenha dirigido, porque o show aqui em BH teve uma coisa de você assumir mesmo a performance.
É, tem isso, eu tenho buscado mais a presença do corpo na cena, mais expressivamente, mais integrado com a canção e com o que tá sendo dito. Isso tem bastante a ver com a minha experiência lá no Oficina, mas a Ava pra mim é muito mestra disso. Ela faz isso com muito pouco, com movimentos sutis. Acho que ela pensa muito como cinema mesmo, que é a linguagem com que ela iniciou na arte. Então ela tava me dirigindo e acabou que a gente fez um roteiro juntas, a gente pirou no lance da luz, na projeção e tal. Esse domínio que ela tem da cena, por exemplo, acho que tem a ver com isso, ela pensa muito em enquadramento, em cena, em frame, sabe? Primeira vez que eu vi um show dela eu fiquei de cara com isso, não só com as músicas, com aquela voz muito louca dela, mas como o domínio do corpo, da imagem, da presença dela. Eu chamei de Tai Chi Chuan da loucura.

Ó?
Tem essa coisa do AEIUO e tem o Ó da Igreja da Nossa Senhora do Ó, de Sabará. É o poema que eu musiquei, peguei um fragmento de um poema do “Galáxias” do Haroldo de Campos que trata disso. É uma capela maravilhosa, barroca, do século 18 que tem a particularidade de ter sido influenciada pela arte chinesa, porque Macau era colônia de Portugal, então lá Jesus tem os olhos puxados né, os santos, tem uns desenhos dourados, uns faisões, uns pagodes, vários motivos chineses. Uma coisa meio louca, meio inacreditável, incrustada no centro de Minas Gerais, no meio do Brasil, no século 18… E o poema é isso:

ó de jóia com dourados painéis de macau
breve haicai barroco que escande suas vogais de espanto
ó

e só isso é um poema gigante, de uma página inteira, que eu peguei pequenas frases. E pô, beijinho no ombro pra mim, né? Parceria com Haroldo de Campos (risos).

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23/09/2016

Luciano Viegas