Atravessado por paradoxos e contradições, feito de sinônimos e antagonismos, diverso, imenso e dividido. O Brasil é um país complexo e está em uma fase, no mínimo, complexa. Quem, em pleno 2019, se animaria a reunir pessoas de diversas raças, gêneros, orientações sexuais, classes sociais e cantos do país em um balneário afastado da cidade e sem sinal de telefone para viver quatro dias acampando, usando os mesmos banheiros e administrando o mesmo espaço?
As dificuldades não foram poucas, mas o Morrostock – e os vários quem que o formam – encararam esse compromisso mais uma vez. A 13ª edição do festival que rola no Balneário Ouro Verde, Santa Maria, Rio Grande do Sul, aconteceu entre os dias 14 e 17 de novembro e chegou com força revigorante. O ano de 2019 simboliza a renovação dos votos da organização com o compromisso de fazer a arte e a diversidade continuarem a se espalhar e soprar bons ventos pelo país. Estivemos presentes e, daqui para frente, você acompanha a primeira parte da resenha que documenta a nossa jornada pelo festival. Fique atento, porque vem mais conteúdo pela frente!
De acordo com a organização, durante os quatro dias, cerca de 1800 pessoas – contabilizando equipe de produção, bandas e, claro, público – fizeram a edição deste ano acontecer. Foi a primeira vez que o Morro ocorreu por quatro dias, aproveitando o feriado do dia 15. Para firmar o sucesso de mais um dia de programação, nada melhor que a benção do astro rei: tirando uma breve chuva na madrugada de quinta-feira, 14, o sol confirmou sua presença em todo o festival e deixou as condições do acampamento ainda mais agradáveis.
Quem já pode se liberar, antecipou o clima de feriado e aterrissou na Galáxia Morrostockiana ao longo da quinta. Desde o meio-dia, a grama do acampamento ia se enchendo de cor com a instalação de lonas, barracas, gazebos, e o que mais os acampantes tivessem trazido em seus mochilões. Assim, iam nascendo as “vilas” e “condomínios” dos grupos que criavam comunidades dentro da grande comuna Morrostock, algumas identificadas com cordões de lâmpadas e bandeiras símbolos da comunidade LGBTIQ+.
O fluxo na chegada ao balneário era contínuo, recheado por uma gostosa atmosfera de ansiedade para o começo dos trabalhos. Para receber os diversos shows, o céu também se vestiu: o azul claro da tarde dava lugar ao azulado noturno; nuvens deram passagem para as estrelas que postulavam como espécies de holofotes extras para iluminar o festival. Para abrandar a sede de música do público, o Morro oferecia uma programação quase que em looping e espalhada por três palcos: Pachamama, lugar das atrações principais, Pacal, e Lago, próximo ao rio que circunda o balneário.
Os trabalhos começaram no Pacal, palco mais “alternativo”, com os gaúchos da Dezert Sons, às 20h, e os conterrâneos da Lusco-Fusco na sequência. Um dos pontos mais altos do palco foi, com certeza, a apresentação do trio ATR, direto de São Paulo. Com um som que conflui elementos orgânicos, house music e progressive music, o trio transformou o espaço do público em uma pista de dança através da sua complexa costura de timbres, harmonias e melodias.
No fim da ATR, pessoas saíam de todos os cantos, se colocando a postos para a abertura do Pachamama com o show de um dos nomes mais fortes do line up: a cantora Céu, que trouxe a Santa Maria a turnê de seu mais novo álbum, APKÁ! (2019), que está ganhando sua versão em vinil através do NOIZE Record Club. Por volta da 00h45, Céu e banda assumiram o palco com uma cenografia com estruturas de led azuladas e luz negra. Céu surgiu tendo como figurino um vestido de mangas longas com babados trabalhados em tons também azulados que denotava a minúcia do trabalho estético de APKÁ!, que se manifesta para além das canções. O setlist abriu com uma das músicas mais representativas da nova fase: “Off (sad Siri)”. Logo após, a cantora desejou uma “boa noite” ao público, agradeceu à presença e ofereceu o show em forma de carinho à Liniker e os Caramelows, que originariamente estava escalada para se apresentar no palco naquele horário, mas que teve que abrir mão do festival para comparecer ao Grammy Latino 2019, ao qual fora indicada.
A aura de APKÁ! foi guia de toda a apresentação. Na plateia, o público cantava as letras já aprendidas e deixava o corpo viajar pelas camadas sintéticas do álbum. Quem entrava em contato com o universo do quinto disco de estúdio da cantora pela primeira vez não hesitava em mergulhar no universo criado pelos músicos no palco. Faixas como “Nada Irreal”, “Forçar o Verão” e “Pardo” foram destaques, envolvendo e fazendo a plateia sair do chão.
Talvez, uma das imagens mais emblemáticas da passagem de Céu pelo Morro foi a performance de “Ocitocina (charged)”. Sua expressão corporal minuciosa e suave cresceu ao cantar a canção composta em homenagem a experiência de parto normal de seu segundo filho, Antonino. Com as mãos no ventre, seu corpo se expande, os gestos ganham mais amplitude e Céu parece concentrar a energia da própria Pachamama, divindade relacionada aos arquétipos da terra, da fertilidade, da mãe e do feminino. Com atmosfera etérea e pairante, ainda houve momentos de retorno à discografia da artista através das faixas: “Cangote”, “Malemolência” e “Amor Pixelado”; “Baile da Ilusão” foi apresentada em uma versão mais “Um Drink No Inferno”, como definiu a cantora. Ao final, “Varanda Suspensa” foi dedicada à América Latina. Em clima etéreo, o show de Céu deu o tom da tranquilidade e fluidez que percorreria todo o festival. Para os guerreiros que desbravam as apresentações da madrugada, André Prando foi o guia de uma viagem psicodélica e multicultural no Pachamama às 3h.
A sexta-feira de feriado iniciou com um sol que sugeria um banho no rio do balneário, prática capaz de regenerar qualquer morrostockiano cansado – ou até de ressaca – para o primeiro dia inteiro com bateria de shows. Os já instalados recebiam a companhia de mais e mais pessoas que chegavam em carros, vans e ônibus.
De dia, a comunhão era dever e direito. Filas nas banquinhas de comidas, nos banheiros – com uma menção especial aos sanitários secos e ao “mictório das minas” – eram rotina. Pelo espaço, amigos, casais, famílias com cachorros e crianças interagiam e mostravam que a magia do Morrostock vai muito além dos palcos. O palco Lago, instalado às margens do riozinho, era a forma do festival dar seu bom dia em forma de música. Dedicado a “apostas” do circuito independente, o dia no Lago começou por volta das 10h30 com a política e potente apresentação do cantautor Paulo Neto, que reforçou a importância da presença de artistas pretos no festival – em pleno novembro “negro”, em referência ao Dia da Consciência Negra -, e finalizou com afetuoso e bem-humorado show de Leo Fressato.
No Pacal, o rock ‘n’ roll e a psicodelia ocuparam lugar de destaque com bandas como Cardamomo, Quarto Ácido e Horrorosas Desprezíveis. Mas, muita gente até se ausentou desse espaço para se fixar na grade do Pachamama à espera de uma das sequências de shows mais insuperáveis do Morro 2019. Tudo começou às 18h com os “uruguachos” da Monkelis, power trio cheio de personalidade cênica.
Mesmo receptivo, o público na sexta-feira estava ansioso e focado. Desde a manhã, o nome de MC Tha era evocado nas rodas de conversa em todos os cantos; alguns até estruturavam suas rotinas de banho e sono visando se preservar ao máximo para o show da artista. Alguns minutos depois das 20h, Tha surgiu no palco; vestida de branco e com os cabelos formando uma potente moldura ao redor de seu rosto, ela parecia pairar na presença de todos tal qual uma poderosa entidade. Em um palco de protagonismo feminino ao lado de suas instrumentistas, a artista evocou as forças e a fé de Zambi e de Oxalá e pediu licença para começar os trabalhos com os primeiros versos de “Abram os Caminhos”.
Bastaram os primeiros minutos de “Valente” para que o público descesse até o chão. Dá para afirmar sem nenhuma falsa generalização que ninguém ficou parado durante a apresentação de Tha. Com o feito de levar o funk para os espaços do circuito independente, ela trouxe as faixas – ou, melhor dizendo, os hits – de seu disco de estreia Rito de Passá (2019). Lançado no primeiro semestre, o registro é uma leitura destemida, atual e vanguardista do que também é música brasileira. Do funk acelerado ao axé, das composições com as figuras dos Orixás às canções de amores millennials que “colocam a culpa no signo”, o disco mostra a versatilidade e a potência de Tha, e a confirma como uma das revelações mais instigantes do ano.
Na plateia, gritos exaustivos de “perfeita”, “deusa” e “maravilhosa” eram lançados ao palco. Apesar da noite fria, os casacos tiveram que ser acomodados nas cinturas, já que a atmosfera era de extremo calor: letras cantadas em coro e corpos que rebolavam e dançavam sem parar. MC Tha, com uma humildade desconcertante, parecia não acreditar no efeito arrasador de sua presença. Apesar de dançante, o setlist também passava por momentos de profundidade ao apresentar versões de “Preciso Me Encontrar”, de Cartola, e “Jorge de Capadócia”, de Jorge Ben Jor. Destaque para a tocante performance de “Oceano”: sob a luz de uma lua cheia, Tha canta a faixa encarando seu reflexo em um espelho de mão, numa possível referência a Oxum, com quem Tha compartilha os dons da beleza, do afeto e do poder feminino.
Em “Clima Quente”, a cantora finaliza em uma clara alusão à masturbação feminina, em uma das imagem forte e aclamada. No entanto, seria injusto não dar destaque às canções “Pra Você”, “Bonde da Pantera” e “Onda”, com direito à presença do parceiro Jaloo no palco para a dobradinha. Entre falas de carinho, autocuidado e sorrisos, Tha se despediu com “Comigo Ninguém Pode”, funk-hit com aura de feitiço de banimento. A emoção foi tanta que ela até caiu do palco, mas sem se machucar. Ao final, o público se sentia “atropelado” pela sua potência, mas de alma lavada.
No horário seguinte, foi a vez daquele que, talvez, dividia o primeiro lugar no pódio dos gigs mais esperados do festival: o paraense Jaloo. Com a turnê do álbum-fenômeno ft (pt. 1) (2019), que como o nome denuncia é recheado de participações especiais, ele demonstrou ter consciência de seu protagonismo no trabalho e ocupou o palco com propriedade. Vestindo um terninho vermelho inconfundível e sintonizado com a iluminação vermelha do palco, Jaloo era todo carisma, charme e movimento. Com um impacto parecido com o da parceira MC Tha, ele fez o público cantar e dançar desde a primeira faixa do setlist, “Cira, Regina e Nana”. A atmosfera era guiada pelas bases digitais, convidando todo mundo para um mergulho em seu trap/ brega eletrônico/ funk 150 / tudo isso e muito mais.
Em vários momentos, Jaloo se mostrava incrédulo com a devoção da plateia. Por causa da agenda apertada, ele teria que sair correndo após a apresentação, mas nem isso o impediu de declarar a todo o momento a vontade de permanecer no balneário e “acordar nu no rio”. Entre sucessos incontestáveis como “Dom”, “Dói d+”, “Say Goodbye”, “Sem Você” e “Movimentá”, houve espaços para faixas de #1 (2015), como “Insight”, “Chuva” e “Ah! Dor!”.
Com a plateia “no bolso”, Jaloo foi se encaminhando para um final eletrizante. Retribuindo o carinho da apresentação anterior, ele convidou a amiga MC Tha para cantar juntos a parceria “Céu Azul”, acompanhada pelo coro fiel dos fãs. A dobradinha vem de longa data, mais precisamente desde #1: a faixa “A Cidade”, gravada por ele, é uma composição de MC Tha, e foi cantada pelos dois também. Ao final, Jaloo externou seu estado de êxtase se jogando na plateia! Uma cena que, sem dúvidas, materializou o carisma de Jaloo com os fãs.
O público teve que apurar para recuperar o fôlego, já que a noite estava só no começo. O tempo de intervalo do Pachamama era o momento para buscar mais cerveja, beber uma água, encontrar os amigos espalhados pelo balneário e também de, mais uma vez, guardar lugar junto à grade para aguardar um dos nomes mais emblemáticos da música brasileira: Nação Zumbi.
Meia noite passada, a Nação subiu ao palco já com a solidez de quem possui uma trajetória indiscutível. Ainda assim, com uma postura de reverência, eles abriram o show homenageando o gigante Gilberto Gil com uma versão de “Refazenda”, presente em Radiola NZ, Vol. 1 (2017). Com as cordas delirantes de Dengue (baixo) e Lucio Maia (guitarra), as percussões retumbantes de Toca Ogan, a bateria ritmada de Tom Rocha, e o inconfundível vocal de Jorge dü Peixe, eles conduziram o público a um passeio pela carreira em um setlist equilibrado entre canções de Nação Zumbi (2014) e dos tempos de Chico Science & Nação Zumbi, com clássicos de Da Lama aos Caos (1994) e Afrociberdelia (1996), como “Bossa Nostra”, “Foi de Amor” e “Defeito Perfeito”.
Assistir ao show da Nação Zumbi é um acontecimento histórico. Não há como não voltar no tempo, se pegar pensando no desenvolvimento e na inventividade do manguebeat, o impacto de seu legado e até a alegria de estar podendo testemunhar um grupo que mudou os rumos da música brasileira com os próprios olhos e ouvidos. Jorge dü Peixe, com seus clássicos óculos escuros, convocou todos a admirarem a vez a lua que iluminava o céu estrelado do balneário, ecoou os gritos de “Lula Livre” da plateia e determinou: “Agora é a hora do povo se libertar”.
Das envolventes “Um Sonho” às explosivas “A Cidade”, “Meu Maracatu Pesa 1 Tonelada” e “Manguetown”, o público seguia em coro e se entregava de corpo alma em pulos e rodas punks. A Nação não deixou nenhum hit de fora e retornou para o bis com uma jam da percussão, finalizando com “A Praieira” e o hino “Maracatu Atômico”. Ao final, fica a felicidade por estar presente e uma sublime sensação de orgulho pela música nordestina e brasileira. Se você achou que já estava suficiente, a noite de sexta-feira oferecia ainda mais. Enfrentando a brusca queda de temperatura, as dores nas pernas e o cansaço, o público resistiu até às 3h da manhã no aguardo do duo Noporn. O projeto, inclusive, estava presente no festival por indicação popular, através da Comuna Morrostock, recurso pelo qual o público pode indicar nomes para a curadoria.
Pedido feito, pedido realizado. Liana Padilha, vocais, e Luca Lauri, bases, subiram ao palco lado a lado. Tal qual magos, bastavam apenas os movimentos restritos e certeiros para fazer as vozes instigantes e os beats entorpecentes envolverem a plateia em uma atmosfera delirante e lasciva.
Com uma trajetória de mais de dez anos e dois álbuns na bagagem – Noporn (2006) e Boca (2016), as composições quase dadaístas, recheadas de devaneios e tesão, conduziam ao escapismo. O frio já não era sentido, o que o corpo fazia a cabeça já não pensava, sorrisos apareciam nas rimas inusitadas e nos conceitos antropofágicos do duo. “Boca”, “Cavalo”, “Maiô da Mulher Maravilha”, “A Praia” e “Baile de Peruas” foram canções destaque do setlist. Nessa aura, a Galáxia Morrostock parecia um quadro surrealista; céu e terra se fundiam, corpos se derretiam e palavras ganhavam novos sentidos. Sem dúvida, uma experiência complexa de resumir e que dificultou a tarefa de aceitar que o fim da noite havia chegado.