Percebida a partir de um corpo vivo, a obra de Milton Nascimento propõe um reencontro com nossas raízes, enquanto contribui para desvendar a trama estética e política das tantas espacialidades que abarcam nosso país. A sacramentalidade de sua criação pode ser percebida como fruto do barroco mineiro, disposto por meio de uma arquitetura pela qual flui uma sonoridade sofisticada.
O barroco veio do mar no final do século XVII e atravessa o Atlântico com o nome que remete a uma pérola irregular, esculpida sob aspirações ideológicas da Igreja e da monarquia absolutista. Ao ancorar nas capitais litorâneas, o barroco não sossega — se embrenha nos recônditos das complexas terras brasileiras e cumpre a sina de ser expressão de magnificência maior.
Caracterizado por uma estética rebuscada, com excesso de adornos, o barroco se abre em fractais esculturais, literários e musicais. Seu florescimento em território mineiro se deve ao patrocínio das irmandades católicas, quando o minério se tornou a principal atividade econômica desenvolvida nas vilas ricas das Minas Gerais. Neste período, grandes transformações levaram os conceitos artísticos da Colônia a receber uma forte influência dos estilos europeus.
Contrapondo as normas clássicas, o barroco permitiu a redefinição, recriação e libertação imaginativa ao projetar a etérea espacialidade da Igreja na personificação do evangelho cristão. Essas inovações nasciam da violenta febre aurífera e acompanhavam a vida econômica e financeira da região que, na prosperidade do século XVIII, abrigou presença massiva de pessoas negras e mestiças na capitania das Minas. Portanto, eram melanizados muitos daqueles que participavam desta escola que amadureceu com ares regionais em busca de sua própria expressão do Belo.
Dentre muitos artistas, o mais famoso foi o escultor Antônio Francisco Lisboa, que transmutou os valores religiosos nacionais com seus anjos e músicos marrons que rodeavam a imagem de Virgens melanizadas sustentadas por colunas grávidas, uma representação da fecundidade que harmoniza o mundo. Nota-se que dificilmente um outro período musical gerou paridades tão íntimas com as artes plásticas como o barroco, que conciliou desde o culto ao ornamento, com as notas que enfeitavam a melodia, até a música como meio de alcançar o sublime.
Obra lapidada
A poética de Milton é paciente. Orienta-se a alcançar, na primazia da pedra, a matéria-prima de uma realidade inconfidente. Sua fala serpenteia pela suntuosa cartografia mineira enquanto recria uma semiótica das culturas sonoras tecidas há mais de três séculos, quando as terras das Gerais assumiram o posto de impulsionadora da música religiosa na América.
Milton nutre uma produção artística genuinamente negra, nascida de uma efervescência musical que levou Minas a gerar mais músicos do que toda Portugal: homens escuros, miscigenados que, por meio da arte e a contragosto da Igreja, ascendiam socialmente.
Ali, naquele pedaço de mundo, os sentidos sonoros procuraram sempre escoar por fontes rueiras, que floreavam as vilas com promessas de salvação ecoadas em suas músicas sacras, exercendo uma forte influência nas folias de reis, nas festas folclóricas como o congado, nos ensejos das modinhas rurais e de roda, assim como nos cantos de trabalho moldados pelos dias extenuantes que encorajavam o corpo negro à lida.
Ritmo e sonho
Filho do imaginário popular, Milton carrega em sua arte a fé, a esperança e o sonho. Sua música abre perspectivas que invadem os silêncios das remotas montanhas barrocas com letras que soam imagéticas.
A sua criatividade radical flutua pelo samba e pelo jazz, flerta com a bossa nova e com o rock, buscando a égide dos cantos latinos em proposições que também se aproximam de povos tradicionais indígenas como nos discos Yauaretê (1987) e Txai (1990). Milton bebe em fontes cujos rituais eram celebrados ao som da flauta, do chocalho e do tambor, onde os barulhos melodiosos repletos de ritmos-banzo aliançaram sua alma ao desejo de alforria, que de modo exuberante adornou suas tantas composições.
Apesar da solitude das paisagens montanhosas, Milton anda sempre acompanhado de uma poderosa falange de compositores-irmãos que unificaram em fluxos e refluxos os timbres, suíngues e palavras de amor, como se a potência de sua veia artística viesse justamente das parcerias. Nos momentos de contemplação, o músico evoca movimentos encantados, inflamando um grande curso d’água que acolhe abundantes intenções coletivas.
É de um denso e itinerante exercício de escuta que ele apreende o anseio de liberdade de outros poetas mineiros como Guimarães Rosa que, assim como Milton, é reconhecido por criar obras intimamente ligadas ao universo mineiro, dando-lhe expressão estética por meio de seus personagens, suas sonoridades e sua ambientação.
Ambos apresentam inúmeras referências ao sertão mineiro, como já explicita em Milton Nascimento (1967), seu álbum inaugural, rebatizado posteriormente de Travessia. Em parceria com Caetano Veloso, ele até musicou a canção “A Terceira Margem do Rio”, baseada no conto homônimo de Guimarães Rosa, publicado em 1962. A música foi gravada no álbum Circuladô (1991): “Margem da palavra, entre as escuras duas./ Clareira, luz madura. / Rosa da palavra./ Puro silêncio, nosso pai…”.
Com Carlos Drummond de Andrade, Milton nutriu uma amizade que resultou em uma rica troca de correspondências. Ele musicou o poema “Canção Amiga” no álbum Clube da Esquina 2 (1978):
“Aprendi novas palavras, e tornei outras mais belas. Eu preparo uma canção, que faça acordar os homens…”.
Mítico, ideológico e imaginário, Milton se aproxima de sua ancestralidade, nutrindo um experimentalismo poético e metafórico, moderno e popular, por meio de versos que buscam obstinadamente a essência humana. Com maestria, o artista compreende Minas como o coração de um Brasil lapidado pelas serras e cerrados, no repique dos sinos, nas batidas do tambor e na profusão de elementos que caracterizam a continuidade de expressivas manifestações artísticas e culturais vindas de um pluriverso negro, cuja qualidade musical compôs a verve nacional a partir das linguagens construídas por tantos e tantos povos responsáveis por nutrir suas próprias identidades.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 128 da revista NOIZE, lançada com o vinil Milton (1970), de Milton Nascimento, em 2022.
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