Psicodália 2019 | Pt.1 | Elza, Tom Zé, Xenia, Dona Onete e a alegria do mato

12/03/2019

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Divulgação

12/03/2019

Não é de hoje que o festival Psicodália mostra que o impossível é possível. Com quase 20 anos de história, o evento chegou à 22ª edição e, entre os dias 1 e 6/3, abriu uma dimensão paralela feita de música, afeto e conexão com a natureza na Fazenda Evaristo, em Rio Negrinho (SC).

Tivemos a alegria de mergulhar nesse universo e passar cinco dias acampados vivendo na pele toda a experiência desse festival que alcançou a proeza de reunir 50 shows, incluindo lendas como Elza Soares, Hermeto Pascoal, Pepeu Gomes, Jorge Mautner, Tom Zé e Azymuth e nomes importantíssimos da cena atual, como Letrux, Xenia França, Anelis Assumpção e Mulamba.

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Cerca de 5.500 pessoas estiveram acampadas conosco e garantiram ao espaço uma atmosfera pacífica e, a todas apresentações, uma plateia incomparável, impressionantemente calorosa. Havia cozinha coletiva para quem queria cozinhar, praça de alimentação para quem não queria fazer fogo pra se alimentar, minimercado pra quem precisava comprar algo que faltou, muitos banheiros com chuveiro, um lago, uma cachoeira, campos para jogar bola, além de farta programação de oficinas, teatro e cinema.

A chegada (Foto: Rodrigo Della Favero)

Foto: Josue Verdejo

Foto: Ana Quesado

Foi uma imersão intensa, vivemos uma maratona de som e o jeito foi dividir nossa cobertura em três partes. Abaixo, você confere a primeira parte do nosso relato.

Dia 1 – Sexta, 1/3

Localizada a 120km de Curitiba, a Fazenda Evaristo fica na zona rural de Rio Negrinho (SC), em meio a uma paisagem lindíssima. O local já abrigou eventos tão diversos quanto a Festa do Motorista e Agricultor e o Tawai Dub Festival, além de ser a sede do Psicodália há dez edições. Nos últimos dois anos, tem havido uma presença maior da Polícia Militar de Santa Catarina nos arredores do espaço, tanto que a banda goiana Carne Doce postou uma foto no seu perfil do Instagram sendo revistada quando estava chegando para tocar na edição do ano passado. Dessa vez, a situação foi parecida e muitas pessoas foram paradas na blitz que estava armada nas proximidades da fazenda.

Outro tema que não pôde ser ignorado foi a ausência de crianças, que haviam se tornado uma das marcas registradas do Psicodália ao longo das suas 21 edições anteriores. “Isso foi uma tristeza profunda pra gente”, comenta Bina Zanette, uma das diretoras do festival: “A gente recebia muitas famílias e tivemos uma baixa de mais ou menos 500 pessoas que não vieram por conta disso. Nunca teve nenhum caso sério por aqui pra que a gente fosse penalizado nesse sentido, mas a gente respeita a decisão dos órgãos públicos”, afirma Bina. Em outubro, quando houve a publicação da portaria nº 91/2018, “nós decidimos que era inviável termos menores de idade”, diz Bina, e, na época, o Psicodália emitiu uma nota oficial explicando que os ingressos que já haviam sido vendidos para menores seriam reembolsados. Concordando ou não, a lei é a lei e o show não pode parar.

Samuca e a Selva (Foto: Nicolas Salazar)

E pode ter certeza de que não parou: desde a primeira noite já foi possível ver a grandeza do evento. Dessa vez, haviam três palcos montados, o Palco do Lago, que funcionava apenas de manhã, o Palco Lunar e o Palco do Sol, que, após o término das atividades no Lunar, passava a ser chamado de Palco dos Guerreiros – afinal, era o espaço dedicado para os shows que entravam madrugada adentro. A primeira apresentação do Psicodália 2019 foi a do grupo Samuca e a Selva, que, inclusive, lançou o clipe de “Fé Cega, Faca Amolada” com exclusividade na NOIZE há pouco tempo. Samuca botou o público pra dançar e foi bonito demais, já o show seguinte, do pianista pernambucano Amaro Freitas, explodiu a cabeça dos presentes com uma bomba de virtuosismo experimental, puro jazz grooveado da melhor qualidade.

Amaro Freitas (Foto: Nicolas Salazar)

Elza Soares (Foto: Nicolas Salazar)

Mas não havia dúvidas de que a próxima apresentação seria o grande momento da noite, na verdade um dos grandes momentos de toda história do Psicodália. Elza Soares subiu ao palco à meia noite para apresentar o show do seu álbum mais recente, Deus É Mulher. Foi o segundo show dela no festival e, desde antes de começar a cantar, a plateia já estava vibrando. Quando aquela entidade apareceu em seu trono, segurando um cedro de rainha, a multidão veio abaixo. Como esperado, o show foi emocionante, abriu com “O que se cala” e seguiu com “Banho” e “Eu quero comer você”. “Vocês são o futuro da nação!”, gritou Elza ao público, depois ela diria ainda: “Eu quero gritos! Vamos acordar quem tá dormindo, tem muita gente dormindo!”. O show contou ainda com a já clássica “A Carne”, do Do Cóccix Até o Pescoço (2002), e “Maria da Vila Matilde”, do álbum anterior A Mulher do Fim do Mundo (2015).

Patrulha do Espaço (Foto: José Tramontin)

Elza fechou a programação do Palco Lunar, depois teve ainda os shows do Patrulha do Espaço e do Hurtmold no Palco dos Guerreiros. A Patrulha do Espaço foi formada em 1977 e sua presença honrou a tradição do Psicodália de valorizar a história do rock brasileiro. Já a Hurtmold, que tocou às 3h30, foi a primeira das várias bandas instrumentais que se apresentariam no evento e, apesar de o show ter sido tarde, boa parte do público permaneceu de pé para vê-lo.

Hurtmold (Foto: José Tramontin)

Dia 2 – Sábado, 2/3

O segundo dia de shows começou às 10h no Palco do Lago com as apresentações de Gali, novo projeto da artista Camila Garófalo, da banda carioca As Iyagbás e da argentina Soema Montenegro. Ainda que muita gente não tenha conseguido acordar cedo, os três shows contaram com uma plateia considerável e (como aconteceu em todas apresentações sem exceção) extremamente calorosa.

Irmão Victor (Foto: Ana Quesado)

Às 14h, o Palco do Sol abriu suas atividades com o surpreendente indie lisérgico com ares interioranos do Irmão Victor, projeto capitaneado pelo gaúcho Marco Benvegnú que lançou seu terceiro disco, Cronópio?, no ano passado. Depois, foi a vez da argentina Sofia Viola promover um dos momentos mais bonitos do dia. Sozinha no palco, ela não deixou ninguém ficar parado com sua música que ora soa como um bolero, ora como um tango e ora como uma festa cigana.

Sofia Viola (Foto: Ana Quesado)

Por volta das 18h, o lendário Tom Zé subiu ao Palco do Sol para fazer um dos shows mais aguardados dessa edição. Esta foi a sua terceira vez no festival e, agora, a proposta era homenagear o seu álbum de estreia, Grande Liquidação (1968). Mas Tom Zé é imprevisível e o show começou com uma música que ele compôs na hora em homenagem ao Psicodália, uma marchinha carnavalesca que incluía versos como: “A gente se espalha / Aqui no Rio Negrinho / É a Psicodália”. A primeira do disco de 1968 que ele tocou foi “Não buzine que eu estou paquerando” e, em seguida, veio “Catecismo, creme dental e eu”, do mesmo disco. Depois, o público urrou com a clássica “2001”, parceira com Rita Lee gravada pelos Mutantes no disco homônimo deles lançado em 1969. O show seguiu quente, Tom Zé parecia um duende no palco, pulando, gesticulando e regendo sua banda freneticamente. O setlist contou ainda com “Glória” e “Sabor de Burrice” (do Grande Liquidação), “Tô”, um dos maiores sucessos dele (do disco de 1976, Estudando o Samba), “Cademar” e “Augusta, Angélica e Consolação” (do álbum de 1973, Todos os Olhos) e “Esquerda, grana e direita”, do Vira Lata na Via Láctea (2014) – todas aclamadas pela plateia com entusiasmo apaixonante.

Tudo estava lindo até que o som da passagem de som do show seguinte (de Xenia França, no Palco Lunar) começou a ser ouvido por Tom Zé. Nesse momento, o baiano se indignou e protagonizou o único momento tenso de todo festival, dando um discurso inflamado reclamando de que estaria começando outro show antes de ele acabar o seu. Na verdade, foi um grande mau entendido dele, afinal a próxima apresentação só começaria cerca de uma hora depois (nenhuma apresentação foi simultânea à outra). Mas, por mais que ele tenha apenas se confundido, foi suficiente para abalar o clima do show, que, após ele tocar de novo a música que compôs pro festival, logo acabaria. Tom Zé, então, desceu do palco e ficou recebendo os fãs na lojinha armada ao lado por praticamente mais uma hora – no fim, deu tudo certo.

Tom Zé (Foto: Ana Quesado)

A atração seguinte fez um dos shows mais incríveis do evento e, possivelmente, o que estava com o volume mais alto. Com graves de tremer a caixa torácica, Xenia França abriu a programação do Palco Lunar com “Pra que me chamas?”, música que dá início ao álbum Xenia (2017) (cuja versão em vinil foi lançada pelo NOIZE Record Club no ano passado). É impressionante ver o crescimento da artista ao longo dos anos; as pessoas gritavam enlouquecidas a cada acorde que se seguiu na música seguinte, “Preta Yayá”, na qual a cantora incluiu um medley de “Deixa a Gira Girar” (eternizada pela versão d’Os Tincoãs). Ela estava vestindo um figurino extremamente reluzente digno de uma diva e, no palco, ela explicou o motivo: “Pensei, vou me arrumar por três motivos: um porque é carnaval, dois porque é meu aniversário e, três, porque eu queria impressionar vocês pelo menos com minha roupa”. Considerando o alto nível da apresentação, a roupa nem era o que mais impressionava, mas a humildade da artista e o anúncio de que estava de aniversário levaram o público ao delírio, tanto que logo todo mundo começou a cantar “Parabéns a Você” para ela, que foi às lágrimas prontamente.

Xenia França (Foto: Nicolas Salazar)

Havia muita energia circulando e todos estavam à flor da pele. “Eu acredito que, quando a gente se junta nesse nível de vibração, manda uma energia muito forte que pode mudar as estruturas das coisas. Vocês aceitam, Psicodália, entrar na quinta dimensão comigo?”, perguntou Xenia arrancando urros como resposta afirmativa da plateia. O show seguiu com “Miragem”, “Tereza Guerreira”, “Destino”, “Respeitem meus cabelos, brancos” e “Nave” (que, conforme Xenia revelou no show, ganhará um clipe que será lançado no dia 21/3). “Eu nunca vi um festival como esse”, disse a cantora no palco declarando sua admiração pelo evento: “A galera faz a própria comida, tem um sistema de subsistência incrível, são vocês que fazem e dá pra fazer, dá pra viver num sistema em que a gente se ajude, isso é possível! Muito obrigada pelo convite pra fazer parte disso!”.

Cordel do Fogo Encantado (Foto: Nicolas Salazar)

O show seguinte foi do Cordel do Fogo Encantado, outra das atrações mais esperadas, que não deixou por menos. Lirinha e cia. apresentaram um espetáculo bombástico, marcado por uma iluminação dramática, em que o palco ficava completamente escuro até que as luzes explodiam freneticamente. A percussão transtornou a plateia e foi impossível ficar parado com o show. Mas a apresentação seguinte foi ainda mais contagiante: Dona Onete. Foi impressionante perceber que a cantora paraense de 79 anos fez a apresentação mais carnavalesca do evento até então. Teve bolerinhos gostosos pra dançar juntinho, teve cúmbia psicodélica pra fritar e teve muito carimbó. Músicas como “Boto Namorador”, “Queimoso e Tremoso” e “Jamburana” incendiaram a plateia e deixaram todos encharcados de suor. “É de animação que o Brasil precisa! Alegria, saúde e amor e união! Chega de preconceito, chega de bobagem! Somos brasileiros, aqui é o Brasil, a casa de Dona Onete!”, disse a artista no palco ao fim do show. Tivemos a imensa honra de conversar um pouquinho com ela nos bastidores e, abaixo, reproduzimos um pouco da sabedoria dela:

Dona Onete (Foto: Nicolas Salazar)

“A gente trouxe um show muito animado, não estamos tocando muitos boleros, mas aí eu disse: ‘deixa eu começar com meus boleros pra acalmar o coração de todo mundo e depois a gente entra na parada forte’. A música sempre esteve na minha vida, eu era criança e já cantava muito, mas nunca levei a sério. Depois, me formei de professora, lecionei 25 anos dando aula de história. Por isso eu faço essas histórias e misturo tudo! Eu não falo mentira, eu falo as verdades da vida do caboclo do meu lugar, o linguajar do meu lugar. Aí tive grupo de dança folclórica, fui Secretária da Cultura, fazia Boi Bumbá no carnaval, então eu trouxe muita coisa, quando cheguei em Belém eu já tinha muito conteúdo. E, quando cheguei, encontrei grupo de carimbó só de homem, eu consegui quebrar esse tabu, como estou quebrando tabus agora. O carimbó ganhou o mundo. Isso foi com a internet, cheguei na era da internet. Fui uma idosa que tive divulgação fora do Brasil, tenho um produtor que mora em Londres. O Pará, graças a Deus, já não é mais aquele Pará em que ficava tudo lá. Eu tô abrindo um caminho que nem pensei que ia abrir, sou uma senhora de idade e fui abraçada pela juventude. Acho que chegou a vez de a gente mostrar o que é da gente. A música do Pará conseguiu ultrapassar os limites, nós chegávamos até o Maranhão, mas nem em Manaus a gente entrava. E quem gosta de cultura é mais feliz. Aquilo de que seu corpo mais gosta é o melhor pra você. Tem coisas que você vê um cantor cantando e você adora, mas seu corpo não balança. E às vezes uma coisinha qualquer faz teu coração bater”.

Dona Onete (Foto: Nicolas Salazar)

Depois da Dona Onete, foi a vez de Kiko Dinucci apresentar seu show solo Cortes Curtos no Palco dos Guerreiros. Conversando conosco pouco antes de subir ao palco, ele explicou que esse é um show que ele parou de fazer: “Quis trazer o Cortes Curtos pra cá porque talvez seja uma despedida do show, talvez eu não faça mais”, disse.

“Tô até meio de mal com a guitarra, numa coisa de procurar caminhos novos. Tô mexendo muito com sample, com sintetizador, com violão. Guitarra é sempre guitarra, aí o pessoal te coloca num rótulo, tipo: Ah, lá vem o Kiko com uma guitarrinha que é a mesma do disco da Elza”. E me encheu o saco. Vou voltar pro violão agora. Tô fazendo muito trabalho de produção, tô produzindo o disco novo da Juçara Marçal, o novo do Ogi, vamos começar a fazer material novo do Metá Metá, e tem um disco meu de violão vindo. Eu tenho uma concepção musical muito percussiva, queria passar isso no violão de um jeito bem agressivo. É um disco só de violão, talvez tenha uma percussãozinha com coisinhas agudas, caixinhas de fósforo, garrafas, mas eu quero é o violão. Nada tem previsão [de lançamento], tô fazendo as coisas com muita calma, algumas coisas talvez saiam esse ano e outras no ano que vem”.

Kiko Dinucci (Foto: José Tramontin)

O show de Kiko foi um raio que caiu no Psicodália e deixou a plateia atônita, imersa em ruídos e melodias ora doces ora extremamente agressivas. Já a apresentação seguinte, da Bandinha Di Da Dó, retomou o clima de festa. Performáticos como poucos são capazes de ser, seus músicos promoveram um grande baile circense, cujo maior mérito é extrair o máximo da plateia, fazendo as pessoas se cantarem, gritarem e, literalmente, se jogarem como nunca. O show chegou ao absurdo de formar um corredor de pessoas sendo carregadas por cima do público, incluindo a própria banda. Foi uma forma perfeita de encerrar o dia.

(Foto: José Tramontin)

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12/03/2019

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

Ariel Fagundes