Todo o cineasta sabe a importância da trilha sonora em um filme, mas alguns diretores vão além. O aniversariante do dia, Quentin Tarantino, é um deles. Filho de um músico (o descendente de italianos com nome de mafioso Tony Tarantino), ele encontra justamente em sua coleção de discos de vinil a inspiração para a grande maioria de suas obras. A paixão tem duas deliciosas consequências: soundtracks incríveis (nas quais sempre é possível escutar trechos dos longas) e verdadeiros clipes dentro dos filmes, cenas que dão uma nova e incrível versão visual às canções. Na maioria delas, a música não aparece como um elemento imaterial, como um recurso de pós-produção para criar um clima e convencer o espectador: são escolhidas pelos próprios personagens que apertam o play (na jukebox, no rádio ou no gravador de rolo reel-to-reel) e interagem com o som (cantam, dançam, murmuram).
Selecionamos as cinco cenas-clipes que mais fazem arrepiar os pelos da nossa nuca:
Pulp Fiction (1994) – Girl, you’ll be a woman soon (Urge Overkill)
Sim, a escolha foi difícil, mas a eterna Mia Wallace dançando e cantando instantes antes de ter seu coração parado por uma overdose ganhou por milímetros de vantagem da cena que a antecede, a histórica performance de John Travolta e Uma Thurman ao som de “You Never Can Tell”, de Chuck Berry. Nossa escolha ilustra um pouco a importância da música na obra do cara: Tarantino estava tão apaixonado pela versão de Urge Overkill para a clássica “Girl, you`ll be a woman soon”, de Neil Diamond, que colocou Uma para dançar ao som da música no longa.
Cães de Aluguel (1992)- Stuck in the Middle With You (Stealers Wheel)
Stealers Wheel, hoje considerado uma “banda de um hit só”, é responsável por uma das cenas de tortura mais deliciosamente angustiantes do cinema. Um policial está sendo massacrado enquanto seu algoz faz passinhos faceiros ao som da folkiana “Stuck in the Middle With You” e dos gemidos da vítima, deixando o espectador dividido entre bater os pés com o ritmo ou se encolher na poltrona semicerrando os olhos. Quando gravou a música, em 1974, o duo Stealers Wheel nem desconfiava que ela se tornaria um clássico cult 18 anos depois. Quando o longa foi lançado, em 1992, Tarantino era um diretor estreante que acabou premiado em Cannes e transformado em uma estrela em ascensão. Trata-se, portanto, de seu primeiro clipe.
Death Proof (2007) – Down in Mexico (The Coasters)
As outras musas de Tarantino que nos desculpem, mas não se viu sex appeal maior em sua obra do que na lap dance de Death Proof (2007), estrelada pela desconhecida atriz Vanessa Ferlito (é graças a ela que descobrimos que não há nada mais sexy do que uma mulher de chinelos, shorts e camiseta). A sensualidade da cena tem um fermento: a tensão, ingrediente secreto que só o espectador conhece. Mal sabe a moça poderosa que está seduzindo o psicótico proprietário de um carro assassino. A canção é do grupo americano dos anos 1950 The Coasters e um dos detalhes mais bacanas é que a trilha sonora inteira do filme está em sintonia com o maravilhoso gosto musical da personagem e de seu grupo de amigas. No vídeo abaixo, incluímos de brinde a cena seguinte, em que a música (“Hold Tight”, de Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich) também é a grande protagonista.
Kill Bill Vol. 1 (2003)- Don’t let me be Misunderstood (Santa Esmeralda)
Antes do clássico refrão “cause I’m just a soul whose intentions are good…” ganhar milhares de versões, ele encantou o mundo pela primeira vez em 1964 na voz de Nina Simone, para quem a canção foi escrita. O arranjo da banda de disco/flamenco Santa Esmeralda tornou-se hit em 1977, mas dividiu opiniões: até hoje, muitos consideram a versão uma heresia. Em uma das cenas mais esperadas de Kill Bill Vol. 1 (2003), aquela em que a Noiva (Uma Thurman) enfrenta sua rival O-Ren Ishii (Lucy Liu), Tarantino usou com maestria o drama exagerado da versão.
Django Unchained (2012) – 100 Black Coffins (Rick Ross)
Apesar do rap não existir na época em que Django viveu, os versos de Rick Ross escritos especialmente para o filme se encaixam perfeitamente no cenário da escravidão. Afinal, foi também nesse gênero musical que os negros norte-americanos encontraram uma de suas maiores forças de expressão. As canções de Ennio Morricone, um dos maiores compositores italianos de filmes de faroeste como “Il buono, il brutto, il cattivo” (1966) (mais conhecido como “The Good, the Bad and the Ugly”), ajudam a contextualizar o longa, mas não bastam. Além de Rick, RZA (Wu-Tang) também participa, fazendo do rap o elemento essencial da trilha sonora por conseguir expressar a revolta do espectador a cada cena de tortura e preconceito.
Parabéns e keep on rockin’, Tarantino.