David Gilmour, a humildade de um gigante

17/12/2015

Powered by WP Bannerize

Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Rafael Rocha

17/12/2015

Carecas, cabeludos, coxinhas, punks, tiozões, crianças, caravanas do interior do estado, metaleiros com os olhos cheios de rímel, todos acotovelavam-se com harmonia, unidos por um sentimento comum de ansiedade para ver David Gilmour subir ao palco da Arena do Grêmio, em Porto Alegre.

A expectativa era tão densa que quase podia ser vista no ar: a cada mínimo teste de luz, a cada baforada de teste da máquina de fumaça, a cada roadie que aparecia no palco, urros de boas-vindas ao guitarrista se espalhavam pelo estádio. Até que, às 20h55, cinco minutos antes do previsto, Mr. Gilmour surgiu discreto, caminhando sem pressa em um palco ainda escuro empunhando com toda delicadeza do mundo uma Gibson Les Paul incrivelmente linda. Evidentemente, o show de um dos guitarristas mais importantes da história da guitarra elétrica só poderia ser um desfile de beldades de seis cordas.

*

Na primeira música, já ficou claro que o setlist do show seguiria fielmente a estrutura apresentada nos shows que ele havia feito dias antes em São Paulo e Curitiba. “5 A.M.” foi a escolhida para abrir a noite e, na sequência, “Rattle That Lock” é emendada trazendo aquele groove característico que os fãs conhecem bem desde os tempos de Pink Floyd. Foi na segunda música que o famoso telão redondo, da The Division Bell Tour, se acendeu para delírio geral da massa. “Faces Of Stone”, a terceira seguida do Rattle That Lock, entrou baixando a velocidade, lembrando a todos que David Gilmour é um manjar que se desfruta com calma, aproveitando cada nota que jorrava dos amplificadores com uma nitidez rara para shows desse tamanho.

Porém, a calmaria não duraria muito. Mal acabou o primeiro set de músicas novas e Gilmour puxou um violão para mostrar que “Wish You Were Here” continua sendo uma das músicas mais bonitas jamais escritas. Com certeza, era esse tipo de experiência que a maioria do público ansiava ter ali, poder cantar junto com seu ídolo aquela música que já foi ouvida tantas e tantas vezes sem se preocupar se a pessoa ao lado na plateia aprova sua afinação ou não.

Aqui, se vê como Gilmour é malandro e não gasta munição à toa. O hit veio como um afago para quem não conhecia a sua carreira solo, que foi destacada novamente nas próximas duas músicas: “A Boat Lies Waiting”, do Rattle That Lock, e “The Blue”, do On an Island (2006). Apesar de não causar impacto comparável aos clássicos do Floyd, ninguém reclamou do festival de solos que se seguiu. Todos estavam hipnotizados pelo círculo luminoso que pairava sobre a banda como um portal que dava acesso à dimensão de animações gráficas de Gilmour.

E foi aí, quando o público ainda estava meio zonzo com tantos jogos de luzes, que começou “Money”

Nesse momento, o estádio enlouqueceu. Um pico de adrenalina foi injetado na multidão que não resistiu à histeria de gritar “moooney” – até porque era a única palavra da música que todos sabiam cantar na parte certa da letra. Enquanto isso, o telão exibia imagens que simbolizavam o universo opulento do dinheiro, cheio de cédulas de dólar, lanchas velozes, mulheres bonitas, e, inclusive, cenas do vinil de The Dark Side Of The Moon sendo fabricado. Considerando as milhões e milhões de cópias que esse disco vendeu em todo mundo, faz bastante sentido colocá-lo lado a lado com símbolos da opulência, condizendo com a auto-ironia que sempre foi cara ao Pink Floyd.

Na sequência, “Us And Them” caiu sobre a multidão como gás lacrimogêneo. “Tinha que ser!”, gritou uma menina à minha direita convicta em suas lágrimas. Ninguém foi capaz de se importar com a voz de Gilmour estar no limite e os refrãos serem sustentados pelos backing vocals. A Arena do Grêmio já estava lavada de choro quando a banda puxou “In Any Tongue”, do Rattle That Lock, e “High Hopes” – que foi uma paulada. “High Hopes” só acabou depois que Gilmour deu uma surra no lapsteel, arrancando aqueles solos agudos e cortantes que tocam a alma dos fãs com seu timbre de navalha. Quando a multidão estava quase perdendo o fôlego, o guitarrista avisou que daria uma pausa de 15 minutos e logo mais voltaria.

Aí é pausa pro banheiro… Luzes acessas… Amigos perdidos se reencontrando, outros se perdendo… Foi um momento interessante. Não atrapalhou o clima da noite e, se não houvesse o intervalo, certamente o show não duraria mais 1h30 como durou.

A abertura do segundo ato começou com um soco na cara. “Astronomy Domine”, composta pelo Syd Barrett e lançada na estreia do Pink Floyd, The Pipers At The Gates Of Dawn, ganhou um peso absurdo no palco do Gilmour, com uma metralhadora de luzes piscando em vermelho, azul e verde (algo altamente não recomendado a pessoas com suspeita de epilepsia). Todo mundo ainda estava tentando entender o que havia sido aquilo quando Gilmour puxou as primeiras notas de “Shine On You Crazy”, clássico do Wish You Were Here (1975) inspirado no Syd Barrett. Além da alegria de ver Gilmour tocando um som dedicado ao Syd, a plateia ficou abismada com o curta-metragem que passou no telão durante a música. O filme era uma alegoria emocionante sobre a vida do Syd, começando com uma criança que entrava em jardins lisérgicos, se perdia em sonhos e pesadelos enquanto jovem, até que mergulhava (já adulto) em uma piscina cheia de água e flores. No fim da música, quem aparece no telão é um homem de meia-idade confuso, com roupa de faxineiro, percebendo-se dentro dessa mesma piscina, mas sem água, e só lhe restam as flores para varrer sobre os azulejos.

“Fat Old Sun”, do Atom Heart Mother (1970), veio na sequência seguida de “Coming Back To Life”, do The Division Bell. Apesar de não ser um dos maiores hits do Pink Floyd, essa música foi ovacionada por todo estádio, que não cansava de gritar: “Oleee-Ole-Ole-Ole, Gil-mour, Gil-mour”.

– Vocês são uma plateia encantadora – respondeu o guitarrista com todo seu charme inglês antes de apresentar a banda, começando pelo saxofonista brasileiro, João de Macedo Mello.

A essa altura, todos já sabiam que o show estava se encaminhando pro fim, mas o sentimento era o mesmo de um sonho do qual ninguém queria acordar. Veio então “The Girl In The Yellow Dress”, com toda sua elegância jazzy, e “Today”, ambas do Rattle That Lock, “Sorrow”, do A Momentary Lapse Of Reason (1987) e “Run Like Hell”, do The Wall (1979). Nesse momento, foi inevitável lembrar das tretas entre Gilmour e Roger Waters. Apesar do The Wall ser um projeto capitaneado por Waters, não há nenhuma menção ao baixista do Pink Floyd no show Gilmour, nenhuma animação do The Wall foi exibida no telão durante “Run Like Hell”, nada. Ao invés disso, a música virou uma grande festa psicodélica multicolorida que encerrou o segundo ato da noite.

Depois desse laço, Gilmour se despediu com os maiores presentes que poderia dar à Porto Alegre: “Time/Breathe (reprise)” e “Confortably Numb”. E foi aqui que o telão circular mostrou todo seu potencial: uma rede de lasers verdes e vermelhos se formou sobre a plateia causando um efeito surreal, impossível de ver sem ficar chocado. Como ápice da apoteose, Gilmour encerra “Confortably Numb” solando com todos os pontos de luz do palco voltados para si, transformando-se em uma bola de luz esfumaçada pelo gelo seco. Aqui, ele assume o posto merecido de Deus da Guitarra, fritando o braço da sua Fender Stracaster com um talento e um bom-gosto muito além da capacidade humana normal.

Quando acabou essa cena, as luzes diminuíram e vimos um David Gilmour de barba branca, barrigudinho, com um sorriso franco no rosto, se despedindo de um estádio inteiro com aquela humildade própria dos gigantes. Obrigado, Gilmour, volte sempre.

Tags:, ,

17/12/2015

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

Ariel Fagundes