Nunca tinha feito uma resenha negativa antes, até porque sempre fui surpreendido, seja pela baixa expectativa com que fora a um show ou então pela superação das minhas fichas já altas, algo bem comum. Acontece que estamos sujeitos a uma primeira vez em tudo na vida (eitcha!), e, contra a vontade, pois esperava bastante da noite de sexta-feira, devo dizer que me decepcionei com o show do maravilhoso Talib Kweli. Porém-entretanto-contudo-todavia sou um otimista e acredito que o grande problema do show não foi o artista, mas a escolha do lugar, então quero decifrar o motivo de um show ter sido feito num local com contêneires que não abafam o som, criando uma reverberação que tornava bem difícil, para quem estava ao fundo daquele palco comprido, identificar as batidas do dj ou as letras de Talib ou NIKO IS. Segundo um amigo, parecia que estávamos dentro de um tonel recebendo marteladas em formas de batidas. Não foi legal.
Antes de continuar a resenha, devo dizer que o lugar escolhido tem seus pontos positivos: é bonito pra cacete, em primeiro lugar; confortável, com espaços bem divididos, fumódromo legal para os fumantes, banheiros que não ficavam cheios, todas as ~facilities~ que uma ótima casa de show deve oferecer com qualidade lá entregava. O próprio pessoal da organização foi muito gente boa, solicito pra cacete e tranquilíssimo de lidar. Até aí, tudo show, tudo lindo, tudo alto astral.
Quando você entrava na área do palco, assim, de primeira, também até parecia um local incrível para o show. O espaço tem um telão imenso por trás, e o VJ Flavio Franko simplesmente criou uma bela ambientação para toda a noite. Enquanto imagens de pessoas dançando street misturados com grafites e pichações estilo tag adrenalina reluziam sobre nossas retinas, transportando-nos para uma espécie de Laranja Mecânica do hip-hop (talvez tenha exagerado, mas estava pensando aqui na cena dos filmes vistos por Alex em seu processo de reeducação), os DJs Sleep (Haikaiss), Nedu Lopes e E.B. simplesmente mandavam ver no turntablism, aumentando a certeza de que, hoje, festas e shows de hip-hop e dub concentram os melhores DJs da cidade. Na verdade, esse início promissor foi terrível para o resultado final. A barra da expectativa foi subindo, parecia que estava num episódio do Patolino no parque de diversões e tinha acertado a marreta naquele brinquedo que parece um termômetro. Mas aí vieram os shows.
NIKO IS subiu ao palco e, com sua voz rasgada e seu flow demoníaco, deu pra perceber que as coisas ali não iriam rolar como o esperado. Pode ser que quem estava na frente tenha tido uma experiência diferente da minha, mas simplesmente não dava para entender uma única palavra que o rapper proferia. Não conhecia seu som, estava curioso para saber o que era, saí sem saber e tive que buscar depois na internet. Enquanto ele cantava, o som que chegava a mim era como se estivessem numa sessão de dentista e a broca incidia sem dó em meu molar. Uma pena. Parando para ouvir com calma e atenção, conseguindo escutar não só o que ele canta, como também o timbre, o fluxo da voz e das batidas, samples repletos de referências brasileiras, você descobre um som de alta qualidade. Vale ouvir pessoal, recomendo. A grande tristeza foi saber que, ao ouvir a qualidade terrível do som de NIKO IS, o show de Talib muito provavelmente seria igual. Não deu outra.
Quando o rapper entrou, esbanjando simpatia e agradecendo a anfitriã do evento num português muito bom, anfitriã esta que, falando, mal dava para ouvir também, bateu certa tristeza do Jeca. A primeira batida iniciou e tudo ali estourou como se o Reveillón de Copacabana estivesse única e exclusivamente naquele espaço. Sim, estou exagerando, mas acho que é importante exagerar nesse caso para não acontecerem mais shows ali. Como disse, o lugar é, ó, um brinco, vale fazer milhões de festas e tudo mais. Só não me venha com um show onde as batidas são importantes, mas, acima delas, a voz e as mensagens do cantor são fundamentais. Talib Kweli, por mais dançante que seja, é um fodalhão do cacete, com letras de músicas igualmente surreais, politizadas que só, retratos maravilhosos do cotidiano de milhões de marginalizados, como se pode ver em “Get By”, uma de suas principais músicas: “We commute to computers / Spirits stay mute while you egos spread rumors / We survivalists, turned to consumers / Just to get by, just to get by / Just to get by, just to get by”. Mas aí, amigo, pergunto: conseguimos ouvir alguma coisa? Não. Complicado. Nem na também fantástica “State of Grace”, que é um pouco mais bola baixa, ou em “Favela Love”, deu para sentir direito a letra; parecia que a participação de Seu Jorge na última canção citada era uma versão lo-fi de um demo do Mac DeMarco executado em baixa rotação.
Não consegui ficar até o final do show, saí antes do bis, pois estava muito cansado, e aguentar um show que começa às três da manhã (sei que shows de hip-hop começam bem tarde, o do Racionais na semana anterior começou nesse mesmo horário em plena quarta-feira), com qualidade de som muito abaixo do esperado, torna a resistência aos olhos pesados uma punição digna de Sísifo. De qualquer forma, o que ficou para mim é que Talib Kweli e NIKO IS merecem um show em um lugar que respeite suas sonoridades, que dê para ouvir direitinho o que cada um canta e quer passar, como foi com o show do Racionais e Das EFX.
Posso estar errado, mas sempre me parece que a pior forma do angu azedar é quando você sabe do potencial de sucesso dele, mas que, por qualquer motivo que seja, simplesmente não dá. Se não temos expectativas, falhar é queda de pônei. Agora, quando toda a idealização ganha corpo (como foi com o começo do show, conhecendo o lugar e vendo as projeções do VJ e as músicas dos DJs) e algo passa a ser visto como bolo de fubá no meio duma tarde faminta, mas que, por obra do destino, vem a vida, essa sacana, dar um cruzado no queixo te levando ao chão, parece que caímos do Cavalo de Troia. Uma pena: esse show poderia ter sido muito mais do que foi.