Não soa nenhum exagero falar que o último álbum do músico Rodrigo Campos, Conversas Com Toshiro, esteve entre os cinco melhores do ano passado. Experimental, quase conceitual, o álbum flerta com o oriente sem jamais esquecer da sua São Paulo. Em algo que pode ser considerado uma senhora pira deste que vos escreve, sinto que Campos sempre fala de um leste, de um local que soa distante geograficamente, mas que, ao transpor em linguagem poética que lembra uma crônica, ao falar de pessoas que são, assim como eu, você, acima de tudo, humanos, com suas falhas, desejos, taras e obsessões, consegue nos aproximar de um universo bem íntimo, quase pertencente a um imaginário mais coletivo. É bonito demais ouvir esse álbum e, sabendo de seu show no Sesc Pinheiros, dia 26 de fevereiro, com uma orquestra, mais uma superbanda para acompanhá-lo, não teria como perder.
Do palco pendiam, tais quais lustres de uma aula de química, moléculas complexas em vermelho, azul e amarelo. Os nove da orquestra ao fundo, sopro à esquerda, cordas à direita; no centro, um belo xilofone (ou algo parecido que eu não saberia dizer o nome, peço perdão pelo vacilo). Todos postados duros ao fundo, assim como, com uma luz indireta, rebatendo os contornos dos rostos de todos, deixando-os numa leve penumbra, a banda a frente mantia-se imóvel. Ná Ozzetti, com uma roupa de gueixa vermelha, rígida. Juçara Marçal, com vestimenta parecida, de amarelo, uma estátua. Thiago França com um acetinado verde, empunha lateralmente uma flauta quase como escultura de um pífaro. Curumin na bateria vestia-se de preto, assim como preta era a roupa de Dustán Gallas e Marcelo Cabral, no baixo. Rodrigo, de amarelo, tinha, em seu violão, a única fonte de luz sobre seu corpo.
Uma flauta japonesa lembrando a abertura de um filme do Kurosawa inicia, sem pressa alguma, o ritual do show. Toshiro estava vindo para nos celebrar com um bom chá, conversar com calma, como a longa introdução denunciava. Quando ela enfim acaba, a orquestra sai e começa “Katsumi”. Rodrigo canta leve a direita do palco. Seus cabelos raspados como monge, sua voz suave falando sobre os pelos pubianos de Katsumi ganha contornos de um kabuki erótico com a flauta transversal de França dando um tom que prenuncia o erotismo latente na música inteira. Com uma pequena pausa para o aplauso, a banda, niponicamente, continua o seu kaizen, a fazer seu jardim com tranquilidade e seriedade, sem agradecer cedendo aos egos que as palmas da plateia suscitam. Começa a segunda música. Vozes fantasmagóricas ecoam sob a forte luz branca que se apresenta a frente de todos os músicos. É a vez de “Dois Sozinhos”.
É gostoso ouvir a voz de Rodrigo, e reconfortante sentir o contraste agressivo de suas letras com a doçura da situação. Gozo, pelos, palavras que arrepiariam um pudico, que jamais conseguiria definir se abençoa a voz ou excomunga a poesia. Extremos da delicadeza e agressividade, como um mangá, como uma cultura que produz de Takashi Miike a Kenzaburo Oe, de Kitano a Miyazaki. Sua posição não centralizada, quase tímida, aumenta a relação antagônica de um protagonista que deixa seus intérpretes ali presentes brilharem tanto quanto ou até mais. De novo, um monge. Thiago França termina “Dois Sozinhos” num solo jazzista com seu trompete, que logo, na velocidade do corte de uma faca Ginsu, foi trocado por um sax tenor para começar Funatsu. Um suave duelo de vozes entre Juçara e Ná lembram duas gueixas distraídas arrumando o cabelo uma da outra enquanto cantam sobre suas conquistas e feitos, em que, entre um riso e outro, escuta-se sobre punhaladas fatais dadas com um prendedor de cabelo.
Escutando admirado tudo aquilo, não consigo deixar de pensar como estou diante de um som muito vanguarda. De algo realmente novo, que causa estranhamento pelo arrebatamento, pela inovação e pela quebra do convencional. A relação com o Japão, o estranho, o outro, o oposto e desconhecido, é clara, torna-se mais intensa. “Wong Kar Wai” começa, cantado em um coro rígido, em que, com olhos fechados, quase caímos em imagens clichês de um oriente revisitado em slogans de China In Box, mas que, como o próprio nome da música já indica, estamos em um outro universo, de um pop que flerta com o erudito, com o autoral. Luz se abaixa e pequenos pedregulhos verdes luminosos se estendem no chão; estamos diante dos musgos de um jardim japonês, em que as carpas cantam para nós sobre a vida de humanos que passam por suas pontes.
Meia orquestra volta. Uma luz azul forte entra. A banda inteira, com exceção de Rodrigo, Curumin e Cabral, sai. O celeste luminoso encontra-se com um tom róseo, quase formando uma nebulosa. Começa “Toshiro Reverso”. Ao fim da canção, a meia orquestra sai e a banda volta, menos Juçara. Uma luz pincela solitariamente Ozzetti, enquanto a flauta de Thiago dá o tom suave para a voz da cantora começar “Fim da Cidade”, música do primeiro álbum de Rodrigo Campos, “São Mateus Não É Lugar Tão Distante Assim”. Ao acabar, Ozzetti agradece como gueixa.
Uma luz forte amarela escura entra em compasso com refletores lilases ao fundo, quase lembrando o desabrochar de cerejeiras num fim de tarde primaveril. É a deixa para a entrada de “Ribeirão”, música do segundo álbum do cantor, Bahia Fantástica. A bateria de Curumin toca em ritmo de marcha, o clima se adensa com a letra sobre um amor proibido entre escravos.
Entro numa segunda, ou terceira, digressão: as letras de Rodrigo se repetem e ganham novos contornos harmônicos. São quase como aprendizados da vida, parábola de uma eterna repetição, em que somos fadados a nos conhecer, e conhecer o Outro, através do reforço contínuo, do murro em ponta de faca que, ao invés de ferir, arredonda o metal. Uma suavidade da resiliência e da constância, quase um ensinamento budista.
Juçara volta ao palco e Ná, após protagonizar as duas últimas canções, sai. É a vez da gueixa de amarelo brilhar, que canta “Mangue e Fogo”, composição de Rodrigo Campos. A voz cristalina de Juçara falando sobre Marina chupando oficial por dez real me lembra os personagens de Murakami e sua dualidade entre o real e o fantástico. Fantásticos, oníricos, sim, mas profundamente humanos.Um palco sangue, vermelho puro, com um único ponto de luz em cima de Juçara tem a duração de uma epilepsia, suficiente para a cantora começar “Jardim Japão”. A platéia não se contém e aplaude antes do término.
Ná Ozzetti volta ao palco. O show particular das backing vocals parecia ter acabado, quando ambas, ao deixarem suas cordas vocais descansarem, bailam como libélulas no palco, livres, cada uma em seu ritmo e estilo. Rodrigo volta a cantar “Princesa do Mar”. Quando acaba, com uma banda daquelas, em que todos sabiam cantar, chegou a vez de Curumin, que cantou “Sem Estrela”, com uma letra que lembra muito as canções do próprio baterista. Rodrigo Campos é altruísta, e todos ali tem o seu momento de brilhar. França faz um solo, o seu cantar instrumental salpica como um raro sal do Monte Fuji o samba ruído bruto funkeado e belo da música.
Mais uma vez a banda sai. Agora a outra metade da orquestra, com as cordas, entra, além do xilofone ao centro. Começa a triste música de “Abraço de Ozu”. Uma luz roxa centraliza Rodrigo em sua dor pelo abraço apertado que o partiu e se partiu. A música mal acaba e entra o quarteto de cordas para sacramentar um fim de um caloroso abraço cheio de significados e histórias. Volta a banda toda para tocar para tocar “Chihiro”. Entro em mais uma pequena digressão: existem shows catárticos, feitos com o grande intuito de te emocionar, de gerar uma explosão de sentimentos no exato instante da música vivida e tocada; e existem shows cerebrais. Sinto que estava ali presenciando essa esfera neurológica, som milimetricamente pensado. Oposto a um gozo rápido e fácil de um vídeo do XVideos, algo que entra pelo tantra e acaba na respiração, sublimação da arte ante o gozo de uma vida movida a paixões efêmeras. É o “Mar do Japão” que engole a gente, como a próxima música anunciava. É o tsunami como aviso do nosso inconsciente e nosso desejo reprimido querendo nos engolfar.
Como se não bastasse já toda a banda estelar, Rodrigo chama Romulo Fróes ao palco. “Dono da Bateria” começa, seguida por “Espera” e seu ritmo rápido e sincopado. Romulo sai como majestade tímida, aplaudida por todos, em silêncio e tranquilo de si. “Takeshi e Asayo”, essa espécie de choro japonês, comprovado pelo lamento de Ná Ozzetti enquanto Juçara faz tai chi chuan, é a próxima a tocar.
O show claramente já se aproxima do fim. Uma pena. A orquestra volta, agora inteira, com todos os membros da banda, para tocar “Toshiro Vingança”, com a esquina na Rua Ásia e a morte numa cova rasa marcando de vez a sensação de que Tóquio não é um lugar tão distante assim. As letras de Rodrigo quebram a barreira e personagens japoneses sendo brasileiros em situações do nosso dia criam essa sensação.
Entro numa quinta, e derradeira, epifania: estamos vivendo uma era de ouro na música independente brasileira. Tem muita gente boa, de verdade. É um doidera. Quando começa “Velho Amarelo”, já nem sei mais o que dizer, quero apenas sentir a profundeza poética desse pré réquiem. Acho pessoalmente essa música uma baita porrada. Na voz de Juçara, prevejo o apocalipse com trombetas. Na voz de Rodrigo, sinto um memento mori delicado, mas pertinente.
“Paisagem na Neblina” encerra, como uma fotografia de um horizonte noturno, que não conseguimos ainda identificar direito se o dia amanhã será claro ou não, o show. A banda sai, mas só Rodrigo retorna, após um epílogo da orquestra. O cantor entra e agradece todos. Absolutamente todos, sem exceção: do técnico de som a todos os cenógrafos e roadie. Na verdade, esse é um aprendizado japonês, de extrema humildade, quando nós todos, ali, é que deveríamos estar agradecendo pela noite que tivemos.