Thandi Ntuli celebra a vida em comunidade como meio de liberdade

05/12/2023

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Maria Luiza de Barros

Por: Maria Luiza de Barros

Fotos: Andile Buka/Divulgação

05/12/2023

Entrevista: Maria Luiza de Barros, Nathalia Grilo, Rômulo Alexis
Tradução: Maria Luiza de Barros

Explorando a plenitude de quem ela é – quem nós somos – em seus projetos pessoais e colaborativos, Thandi Ntuli articula uma ampla paleta de sons e gêneros. Ao longo de sua carreira como cantora e pianista, tem sido amplamente reconhecida por nutrir a cena musical contemporânea sul-africana de ricos ingredientes.

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Com quatro álbuns de estúdio, incluindo o recém-lançado Rainbow Revisited, em colaboração com o músico e produtor Carlos Niño, Thandi e sua música promovem um mergulho em melodias imersivas e a fruição de um futuro pleno que só possível pela imaginação e consciência coletiva. “Se liberdade tem que ser alguma coisa, que seja a comunidade e estar em relação com outras pessoas”, diz Thandi em entrevista exclusiva para a Noize.

Durante sua passagem em São Paulo, na ocasião do Sesc Jazz 2023, Nathalia Grilo, Maria Luiza de Barros e Rômulo Alexis conversaram com a artista sobre espiritualidade, tradições familiares, criação de comunidade e relação direta da luta pela terra com a libertação e a alegria negras. Você confere esta conversa abaixo.

Foto: Andile Buka/Divulgação

Antes de qualquer coisa, gostaríamos de falar sobre as influências e trocas culturais. Apenas para assentar a nossa conversa, conheci o seu trabalho através do projeto Indaba Is (2021), que é uma incrível compilação na qual você foi uma das produtoras. Na mensagem do álbum, há uma  “There never was just one sound” (“Nunca houve apenas um som”), e isso me remete ao fundo caldeirão não só de influências, mas de raízes musicais na África do Sul, assim como no Brasil. Então queríamos entender sua leitura sobre a cena musical do seu lugar.

Legal! Eu tenho encontrado muita similaridade entre a África do Sul e o Brasil, por causa da história que é entrelaçada com as rotas de comércio, da escravidcão e outras coisas muito parecidas. Tivemos muitas influências culturais na África do Sul. Então poderíamos dizer que para nós, da nossa geração, o jazz não começou agora. A maioria de nós que escuta ou faz jazz hoje, ambos vêm dos nossos pais, ou crescemos com isso de alguma maneira, o jazz é muito popular lá. É muito comum… e eu cresci com o jazz, mas óbvio, quando eu era jovem, eu cresci com o hip hop e com outros gêneros musicais, como o kwaito, que era muito expressivo nos anos 1990. 

Temos a house music, dance music, amapiano, que é muito popular atualmente, temos muitos estilos de músicas dançantes. Então, a música que a gente faz não é apenas uma coisa. Quando chegamos com a música pronta, muitos jovens músicos veem como o repertório de tempos passados, como o jazz. Mas como nós somos influenciados por muitos outros gêneros e lugares, nós justamente fazemos muitos tipos diferentes de música. Isso inclui a música tradicional sul-africana, assim como o jazz. A questão sobre “There never was just one sound”, é porque temos toda essa música que acha um jeito de se direcionar na nossa criação, incluindo o que temos e estamos fazendo agora. Há muita influência latina, americana, e de outros países, como Moçambique, Angola, os quais têm muita relação com a história da África do Sul. Então pegamos todos esses movimentos.

Muitas pessoas chegaram do Oeste, do Leste africano. É sempre um movimento, através, entorno e com essas cenas. Um verdadeiro remix. É um enorme comércio de raízes, porque muitos que vão para Ásia ou Europa passam pela África do Sul. Eu acho que muitos de nós, jovens músicos, estão sempre se perguntando sobre a nossa identidade, porque “quem somos nós?”, “o que é África do Sul?”. Então Indaba Is é por englobarmos muitas coisas diferentes, não apenas uma, ou o que surge na África do Sul.

Indaba Is é literalmente como uma pluralidade no som. Isso me relembra que aqui no Brasil temos olhado mais para nossas raízes e não apenas para o Norte global. Acho que esse ato de olhar profundamente as raízes e reclamá-las como nossas é recente. Como você entende a cena contemporânea do jazz sul-africano retomando e colocando essas raízes na produção sonora?

Eu acho que, na geração anterior à nossa, muitos jazzistas foram influenciados por músicos norte-americanos por causa da similaridade política do momento, em termos de lutas da população negra nas Américas, na África e em outras partes do mundo. Nós tivemos músicos que foram exilados, que moraram em diferentes lugares e que tiveram a chance de disseminar a nossa história. Então foi possível criar uma relação entre nós e o ‘exterior’, o que está fora da rota, por causa desse movimento, não só da música, mas das artes. Eu acho que o sentimento que a nossa geração tem, como eu disse e você comentou sobre o Brasil, é uma confusão da nossa identidade. O senso de não estar tão assentado. 

O que vemos bastante agora na nossa música é a espiritualidade e como isso nos leva a olhar para trás… porque eu não acho que a geração se conecta profundamente com isso e entende como isso está conectado com a tradição da nossa terra, e tentar entender isso um pouco é um caminho importante. Temos artistas como Nduduzo Makhathini, que tem feito um trabalho incrível em termos desse entendimento. Na África do Sul, apenas para retomar, nós sofremos uma grande lavagem cerebral, e isso nos difere um pouco das outras partes do continente, ao ponto de muitos sul-africanos não saberem sequer se identificar como as outras partes do continente, apesar de sabermos que também viemos de algum lugar. Alguns pensam simplesmente que o Zimbabwe é diferente do que somos, ou não sabemos que na verdade nós compartilhamos de grupos étnicos, porém com uma fronteira geográfica imposta entre nós – e pra muitos isso já te desqualifica dessas raízes. Por exemplo, se existia um mesmo grupo de pessoas, como o yorubá, em um território, e ele foi atravessado por uma fronteira, não significa que não existam yoruba mais naquele território. Muitas culturas foram ceifadas pelas fronteiras, e na África do Sul, nós nos vemos como sul-africanos e também separados de outros grupos culturais, pois existiu um enorme projeto de apartheid para nos separar e pensarmos que somos diferentes. Por causa dessa construção, que não é real, muitas pessoas estão passando a se olhar profundamente, quais suas raízes, qual é a nossa cultura. Claro que a cultura pode ser em certo grau manipulada, não é necessariamente fácil de achar, mas você pode escavar. É assim que fazemos as coisas diante do colonialismo.

É algo perturbador, mas ao mesmo tempo, estou muito feliz que isso está acontecendo com a nova geração. Eu acho que a espiritualidade é a raiz de tudo, então eu acredito que, em termos de descolonizar a nós mesmos, nós temos que decolonizar a nossa espiritualidade. Onde estamos atualmente é este lugar que é necessário ir, mesmo que seja uma jornada desconfortável.

Espiritualidade é importante para nós no Brasil também e poderíamos passar horas falando sobre isso. Mesmo em realidades diferentes, temos muitas complexidades parecidas, como o embranquecimento, o mito da democracia racial, uma real lavagem cerebral. É um projeto político, cultural, sob o discurso de “sermos iguais”. Aproveitando a deixa, queria saber um pouco mais sobre a presença da espiritualidade nas suas criações. Como você adentra esse campo? É através da religião, da mente, de filosofias? Como a espiritualidade enquanto prática te circunda?

Para mim posso considerar que finalmente eu achei o meu caminho. Meu próprio repertório pessoal, familiar, traz isso. Por exemplo, no lado da minha família paterna tinham muitos missionários, meus tataravós foram alguns dos primeiros a serem convertidos ao cristianismo. O interessante é que algumas pessoas que se converteram ao cristianismo ainda buscam uma forma de manter a cultura ancestral viva, mas não abertamente, e por não ser tão abertamente, elas não a reconhecem como àquela. Para mim, o que eu estou lutando em termos de entendimento, é que vamos à igreja e vemos o Jesus branco – tudo é branco, mesmo se você for em uma igreja negra –, mas a música não engana. Nós temos a bateria, temos uma presença musical muito forte. 

Eu tenho mais questões do que respostas, e como eu lido com isso na minha artes me permite responder ou fazer novas perguntas. Na maioria do tempo, eu faço isso usando a minha imaginação, porque não tenho um lugar específico onde eu diga: “Esta é minha cultura”. Grupos como os Zulu têm culturas similares, não exatas, com essa cultura familiar. Eu acredito que a forma como você cresce, como a sua família se move em termos de migração no país, não afeta o que você carrega. A questão da terra afeta como isso acontece. Meu pai e avô são da área urbana da cidade e migrantes sem terra, já minha mãe cresceu perto de uma village [pequenos núcleos rurais], a avó dela também cresceu naquele lugar, então ela tem um pouco mais de raiz, digamos assim, na consciência espiritual. Enquanto meu pai apenas tinha uma vida de cidade urbana. 

Acho que a grande coisa para entender sobre a identidade é que pessoas negras são terra. Nós podemos falar de cultura e coisas extraordinárias específicas, mas pra mim é majoritariamente a nossa conexão com a natureza, e meu retorno às minhas raízes é tentando entender como me conecto com a espiritualidade. Não apenas na África do Sul, mas eu aprendo com qualquer lugar em que eu possa ter informação e as agrupo.

Voltando um pouquinho na interação cultural entre Brasil e África do Sul, como a cena musical brasileira se faz presente na sua criação? Essa conexão existe diretamente para você?

Fui introduzida na música brasileira na escola, através da bossa nova, e depois samba, e eu acho que o que me chama a atenção é a percussão e o canto, o fato de todo mundo cantar junto. Preciso vir no carnaval um dia, soa muito elevado.

Eu não sei como isso influencia diretamente a minha música, é algo que nunca entendi, mas eu acho que uma possível influência específica tenha sido uma canção chamada “Amazing Grace”, do meu último álbum. Originalmente ela foi escrita como uma rima cristã, mas eu quis mudá-la e falar sobre amor próprio e adicionar algo de divindade feminina. Eu queria algo que as pessoas se sentissem felizes, porque vivemos todos um período muito árduo, e eu só queria algo que me relembrasse como é a sensação de alegria. E isso eu percebo na música brasileira, sempre alegre. Eu sei que muitas vezes são músicas tristes, mas ela te faz sentir feliz e bem por um momento. Isso é muito similar com a música tradicional africana, porque a energia da música é sempre repleta de alegria. Eu gosto disso, porque acho que a vida é assim. Você precisa achar um jeito.

Gostaríamos de compartilhar um pouco mais sobre nosso contexto no Brasil, das nossas pesquisas. Principalmente a cena contemporânea tem trabalhado muito com a multilinguagem e interdisciplinaridade, nós não estamos apenas na música. Somos compositores, criativos, educadores, e eu percebi que sua prática também é multilinguagem e isso é importante para você estar em movimento. Meu sentimento é que aqui vivemos num tipo de apartheid.

Eu senti isso, quando chegamos no festival. O nosso conhecimento do Brasil é principalmente sobre jogadores de futebol e alguns músicos, e quando cheguei aqui me perguntei ‘onde estão as pessoas negras?’. É bem organizado no sentido dos lugares onde as pessoas brancas vivem, onde as coisas acontecem.

Quando falamos do público desse tipo de festival, a maioria é branca e os músicos também, existe uma grande quantidade de músicos brancos tocando nossas composições. Então nós começamos uma espécie de bolha, de colaborações, que está espalhada pelo Brasil inteiro e não apenas no Sudeste. O Sudeste reflete bem pouco sobre nossa realidade. Minha curiosidade é saber se na África do Sul vocês ainda sentem esse tipo de apartheid.

É um pouco complexo. Nós temos pessoas negras que realmente retêm muito da cultura, e isso provavelmente é por conta da ação do colonialismo. Os Zulus, por exemplo. Os guetos vêm nos anos 1990, quando as pessoas já estavam nos centros urbanos. Quando as pessoas chegaram na cidade, se mudando para Joanesburgo por conta da escravidão, da descoberta de ouro, muito dessa cultura retida nas pessoas foi fator de continuação da criação musical. Por exemplo, os artistas que tocavam maskandi, o estilo de tocar guitarra que era comum nos Zulus. Ele se mantém porque, quando as pessoas se mudaram dos villages para a cidade como trabalhadores das minas e permaneceram em pequenas atividades, elas retinham esse conhecimento musical nessas outras interações. O que acontece muito é as pessoas brancas ficarem famosas primeiro e enriquecendo com isso. Ou as gravadoras ganhando em cima das gravações, mas não pagando devidamente os royalties aos artistas negros.

Exploração.

Exato. Então, acho que não percebo tanto isso das pessoas brancas performando gêneros musicais negros e se tornando populares, mas sim ganhando financeiramente em cima da industria. E com o maskandi é um pouco diferente, porque eles têm o próprio sistema, o fluxo monetário, e esses artistas vieram a ser muito famosos, não necessariamente por causa das gravadoras. Às vezes era apenas por repassarem as músicas através das redes de contato. Então é diferente, e tem uma maneira diferente de exploração atualmente, mas acho que está melhor, porque muitos são artistas independentes – sendo explorados por outros lados. Mas é isso, eu acho que está melhorando porque os artistas pararam de se submeter apenas as gravadoras e começaram a gerenciar suas criações.

Isso me levou a pensar sobre a prática coletiva, presente tanto nessa cena brasileira que comentamos, como na sua prática. Fico pensando como nós podemos, juntos, agrupar nossas coisas, pessoas e próprios processos criativos. Então queria saber um pouco mais sobre a importância dessa coletividade na sua prática.

É tudo para mim. Podemos ver isso como um ciclo. Independente da lavagem cerebral que acontece, de qual parte do mundo está ou cresceu, acredito que existe um ponto em que as pessoas te fazem acreditar que você não pode mais fazer sozinho. Nós precisamos de dinheiro suficiente, escolas privadas para as crianças, fazer os que os brancos fazem, isso é um tipo de representação do que o sucesso é. Mas penso que eu sou muito sortuda, porque quando o apartheid acabou, muitas pessoas se mudaram para os subúrbios, e os meus pais não se mudaram. Não sei se isso foi uma escolha radical ou inteligente, só sei que eles apenas continuaram trabalhando na comunidade que já estavam. Eu fui para escolas privadas e essas coisas, mas eu sempre retornei pra lá e isso pra mim foi essencial para ver os problemas dos outros mundos que eu transitava. 

Uma coisa que eu me lembro na adolescência, é que minha mãe estava sempre trabalhando e fazendo coisas em comunidade. Minha mãe era médica, mas sempre estava fazendo coisas adicionais, como educação, para a comunidade. Em termos do que eu cresci vendo culturalmente, eu sei que não tem nada que possamos fazer totalmente sozinhos. As pessoas consideram que ir para uma escola privada é uma sorte, mas eu não me considero privilegiada nesse sentido. Quando você vai para esses espaços, é importante saber como retornar ao seu lugar, e eu sempre senti isso. Eu sinto que comunidade para mim é importante, um dos motivos é que há muitos julgamentos em torno da circulação de pessoas negras nesses espaços privados, mas acho que isso é uma perda de energia.

Comunidade é como uma família. Não é igual aos seus irmãos e irmãs, tias e tios, mas se você consegue fazer essa estrutura funcionar bem, você sabe que todo mundo irá contribuir em alguma coisa. e no mesmo sentido, em uma configuração comunitária, mesmo uma pessoa que não foi à uma escola particular possui a mesma coisa que eu possuo no final do dia. Pessoas negras são pessoas negras.

Sim, sendo diferentes em uma unidade.

Se você é um bilionário ou não, para o sistema você é uma pessoa negra. E se você tem esse tipo de conexão com seu entorno e uns com os outros, eu acho que é mais útil. A razão pela qual eu insisto contra, irá nos libertar plenamente.

Nós falamos dos villages, subúrbios, vida urbana, trânsitos entre países e um tanto de pensamento espacial. Percebemos que o apartheid e a segregação tem um espaço concreto na sua criação. Como essa questão da terra está entrelaçada na sua música? 

Sim, está profundamente entrelaçado. Percebo que eu penso muito isso quando eu saio da África do Sul. Eu acho que as pessoas não pensam tanto nisso como deveria, mas é parte da nossa realidade, porque você vê essa desigualdade todos os dias. É como eu disse, é parte do benefício de estar exposta aos dois mundos, seja na minha infância na escola privada ou como artista que viaja o mundo inteiro. Devido ao fato de algumas cidades da África do Sul serem planejadas, você pode ser rico e nunca saber como o pobre vive, o mesmo ao contrário. Então acho que muitas pessoas acham que está tudo certo. Mal sabem que as pessoas desse país um dia já tiveram muita terra, muito bem-estar e em certa medida nos adoece ver o quanto você vive um em cima do outro.

Assim, a influência do apartheid vem da música que eu cresci ouvindo, vem do jazz especificamente, vem dessas experiências que são parte do seu cotidiano e você não tem para onde fugir. É doloroso pra mim pensar como as pessoas acham que não tem nada de errado. Acredito que meu trabalho se direciona especificamente a como as pessoas se relacionam umas com as outras e a como as questões de gênero acontecem. Nós temos muita violência contra a mulher na África do Sul, muitos abusos. Então se você puder ver e entender essa realidade a partir da história, é sobre organizar um lugar de onde possamos confrontar isso, porque ninguém virá para nos salvar.

Agora, particularmente, me interessa muito pensar e criar em torno da ideia de comunidades sonoras, como forma-conceito de uma cidade aberta à percepção de todos os sentidos, para além da visão, e como o som molda as cidades. Vejo então que essa noção está presente na sua vida desde a dimensão familiar à profissional, me conta um pouco mais sobre elas?

Eu não sei se isso acontece muito aqui, mas nós cantamos bastante na África do Sul. É uma nação cantante. Meu pai me contou uma história de que de não tinha televisão em casa, a gente costumava se juntar pra cantar à noite, e todos cantavam. Meu avô era compositor. E isso se tornou uma tradição na minha família, de sempre estar cantando. Meu pai mantinha essa cultura em casa, e a gente sabia que, quando estávamos juntos enquanto família ou cantores – nem sempre era sério, tinha muita zoação nesses momentos –, isso era uma coisa que me trazia o sentimento de estar em casa. Quando tínhamos festas, meu pai costumava fazer uma dinâmica de cantoria às cegas, tudo que a gente precisava era de comida, de álcool, da voz e do corpo. Isso se tornava uma festa enorme, convidávamos os vizinhos, às vezes durava dias. Novamente, isso certamente afetou o meu entendimento de comunidade. 

E sabe, se você não tem um senso de comunidade, acho que as relações não ficam confiáveis. Sinto que as pessoas perderam isso na ambição de só ganhar, mas esse senso de confiança com o outro é onde eu cresci. Eu acredito que música molda comunidade nesse sentido, pode agrupar pessoas sem motivo algum, exceto o amor pela música. Hoje eu moro na área urbana de Joanesburgo, que infelizmente, assim como muitas cidades, têm áreas muito brancas, ou muitas pessoas morando na rua. O som da cidade também me afeta e me faz sentir segura, mesmo sendo ruidosa, mas você pode ouvir a rua, alguém escutando rádio, a mesquita, os ônibus, tudo isso tem uma paisagem sonora interessante. Uma oscilação entre silêncio e barulho que se repete todos os dias. Eu gosto disso porque eu não me sinto isolada mesmo quando estou em casa sozinha, penso que minha comunidade está ali comigo.

Temos uma curiosidade de entender como essas comunidades sonoras são muito poderosas porque as individualidades dos membros que a constituem são respeitadas. Queríamos entender como na sua cena essas individualidades têm sido trabalhadas, se existem trocas de saberes, se elas são intergeracionais, como isso acontece?

Acho que depende. Primeiramente, eu não tive muita experiência com os mais velhos porque quando nasci só um dos meus avós estava vivo. Mas também, eu acho que tem uma dificuldade nisso porque a vida que os mais velhos experienciaram há 60, 70 anos era difícil e tenho uma crença que isso gerou um grande trauma guardado na velha geração, um silêncio. Nós sempre estamos querendo que eles nos digam algo, e eu me lembro quando eu tinha 13 anos, minha mãe eventualmente me deu um livro e disse: “Toma, leia!”. Há muito trauma que criou o silêncio nessa geração. Se você estiver nas villages suponho que seja diferente. Essas pessoas nos centros urbanos, naquela época, passaram por muitas coisas, e claro, seja onde for, cada um tem suas lutas, mas eu realmente não acredito que essa condição silenciosa como fonte de dor está desassociada da terra.

Meu pai por exemplo é nascido em Sophiatown e antes do apartheihd, Sophiatown tinha uma população relativamente misturada, italianos, negros, etc. Por conta do apartheid, muitos não podiam estar mais naquele lugar, quarteirões foram demolidos, pessoas foram removidas e deslocadas para Soweto. Digo isso porque tem algo que meu pai nunca me falou abertamente, mas eu sinto que todo esse processo de ter que deixar a casa gerou um trauma.

Isso passa para a nossa geração através do silêncio e o silêncio também contém muita informação.

O silêncio é muito pesado. E você pode perceber isso quando cresce com o silêncio dos seus pais.

E você pode perceber quando o silêncio pode ser cura ou quando pode ser trauma. Silêncio é uma chave importante de entendimento. Para encerrar esse assunto, queremos saber como você enxerga as individualidades e particularidades de cada membro da banda que te acompanha atualmente, porque sabemos que cada um ali tem outros incríveis projetos. Você pode contar pra gente de onde eles são, como organizou essa junção e o que cada um traz de energia para você?

Joanesburgo é como uma cidade de trabalho, então pelo que me lembro apenas dois membros da banda são de Joanesburgo. Eu também não sou de Joanesburgo. Percebo que tenho o dom de ver as pessoas como mágicas. Penso isso porque a maioria dos compositores, e eu no papel de compositora, quando eu monto uma banda, é uma experimentação de combinações com a habilidade de cada um. O baixista e o guitarrista eu conheci na universidade desde que comecei a escrever minhas próprias canções, em uma cidade muito especial e musical, que é Cape Town. Lá temos músicos incríveis. O baterista Sphelelo Mazibuko eu conheci em uma gig que ele estava tocando e pensei: “Nossa, você precisa tocar na minha banda!”. E por aí vai.

Para encerrar de verdade, durante o seu show em São Paulo, você encerrou com “Inkululeko” e falou sobre liberdade. Gostaríamos de saber o que é a liberdade que você canta/compõe e como seguimos em busca de libertação?

Sim, acho que realmente fechamos um ciclo porque volto ao começo da nossa conversa. Liberdade é a libertação espiritual, assim como a liberdade de consciência. Eu não acho que podemos ser livres sem amar a nós mesmos e ao próximo, de um jeito que a gente define que é bom. Se vermos um programa de tv, as famílias brancas estão sempre felizes e as negras sempre tem algum drama. Me pergunto por que não podemos nos ver aptos a nos relacionar e amar uns aos outros, nos dar bem com os outros? Para isso acontecer, tem uma parte de nós que precisa ser curada. Então nós podemos, sim, amar. Pessoas sobreviveram a um período muito brutal, nossos ancestrais sobreviveram à escravidão, nossos pais à segregação, ao colonialismo, pessoas sobrevivem à guerra, à migração e nossa geração vive um outro contexto – então qual a razão da luta tão dura da nossa geração? Para apenas sobreviver à vida? Quando não temos nenhum desses acontecimentos, acredito que é uma questão espiritual. Nós não temos tempo para sentir a vida, porque estamos apenas tentando sobreviver, e ao meu ver, o fator que fez nossos pais sobreviverem é a comunidade, a capacidade de ignorar o mundo exterior por algum momento para ter um momento em família, um momento com alimento. Todas as nossas pessoas sobreviveram às atrocidades através da coletividade. Agora sinto que o problema é que ninguém sequer sabe o que dizer e não dão valor para a comunidade. Então se liberdade tem que ser alguma coisa, que seja a comunidade e estar em relação com outras pessoas. Isso é o que liberdade significa para mim, ou pelo menos o começo dela.

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Maria Luiza de Barros

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