É interessante como o Jazz moderno deu espaço para diversos movimentos estéticos que expandiram seu alcance em termos de linguagem. A música eletrônica e os novos timbres dessa onda Neo-Soul – que está na pista desde os anos 90, vide Erykah Badu – acabaram estimulando novas ramificações sonoras e teve um país em particular que se deu muito bem nessa história.
A Inglaterra noventista foi o palco de intensos experimentos envolvendo não só o Acid Jazz do Incognito, por exemplo, mas também o Drum&Bass. Muitos produtores e DJ’s estavam imersos na estética do Funk e o resultado foi uma efervescência que ainda ecoa no cenário contemporâneo, e quem viu o Kamaal Williams – em mais uma edição de SESC Jazz – está a par dos novos rumos do groove.
Produtor, DJ e tecladista, Henry Wu e Kamaal Williams são a mesma pessoa. Não é como o Pelé e o Edson, mas o raciocínio é por aí. O Henry Wu é um meliante que faz o Jazz conversar com o House sem perder o calor do Funk. Com approach de beatmaker, é aqui que o britânico cria sua estética de broken beats sob a paleta da música eletrônica.
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O Kamaal Williams é o groove sobre a ótica do teclado, menos eletrônico, mais puxado no tempero do Jazz. Nome adotado após sua conversão ao islamismo, ainda em 2011, Kamaal é o heterônimo responsável por emular texturas, hora chapadas, hora extremamente cremosas, sob um synth ou seu tradicional Nord Electro.
Pelas gravações de estúdio dos dois projetos, fica muito claro diferenciar as abordagens, mas ao vivo o Henry Wu é Kamaal Williams e vice-versa. Sob sua batuta étnica (vale lembrar que o Wu vem da dinastia Ming), o House determina a cadência do show, enquanto, no contexto espiritual (Kamaal Williams), o groove conversa com o polo rítmico de maneira mais vigorosa.
Brilhantemente acompanhado por Jonathan Tuitt (bateria), Rick Leon James (baixo) e Quinn Mason (saxofone), Kamaal coordenou suas duas datas no SESC Pompéia com o feeling de um DJ. Cada músico do trio tinha uma função muito clara, mas a dinâmica era tão interessante que, em alguns momentos, parecia uma jam session.
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Jonathan Tuitt acompanhava tudo já sob a base do House, um elemento que foi uma constante quase em todos momentos do espetáculo. Ingrediente essencial desse coquetel, o House era a moeda de troca de Kamaal para aumentar a velocidade do groove, sempre sentindo muito bem a plateia. Com Rick James malhando as quatro cordas numa mistura de Bootsy Collins com Marcus Miller, o grupo ainda contava com o celestial saxofone de Quinn Mason.
Músico norte americano, made in Georgia, o instrumentista possui um timbre muito limpo, mas de inegável presença. Sua linhas elevavam as harmonias de Kamaal e serviam como um belíssimo contraponto para o jogo de luz e sombra da sessão rítmica.
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No fim, tudo virou Jazz, mas o lance é como o quarteto subverte todas essas linguagens, uma das características marcantes da cena de Jazz londrina atualmente. É um som descolado e que surge com uma proposta interessante de fato, muito além de soar como um repeteco puramente saudosista.
É o futuro do groove e, pra garantir que os paulistas entenderiam a mensagem, o inglês subiu ao palco no sábado e no domingo. Foram duas apresentações muito competentes dentro do que o show possui como proposta. No sábado, foi uma gig mais roteirizada, enquanto, no domingo, o som teve requintes de jam session. É tão intrigante quanto parece… Por isso, a Noize teve que trocar uma ideia com o Wu Funk, justamente pra entender quando o Kamaal entra e o Henry sai.
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Kamaal, pra começar, vamos falar sobre a cena de Londres. O cenário está bastante prolífico nos últimos anos e gostaria de ouvir suas impressões sobre isso. A cena londrina é repleta de selos (Brownswood, 22a e Black Focus Records, por exemplo), além de órgãos públicos, como o Artist Council e uma sólida base de músicos que tocam em diversos grupos. Como que as coisas chegaram nesse ponto?
Eu acho que sempre foi assim, sabe? Sempre foi dinâmico, desde a época do Jamiroquai, 4hero, Bugz In The Attic, Groove Chronicals… A cena sempre foi vívida, agitada e com muita coisa acontecendo. Do lado de fora, parece que está tudo junto, mas se você está imerso fica claro como as coisas estão separadas.
É como a minha situação agora. Eu estou no Brasil há três dias e adorei esse lugar. Do lado de fora, parece mais romântico, sabe? É uma cidade grande como tantas outras, como Paris, por exemplo, mas de fato, tem muita coisa rolando.
E tem de tudo, baixista, tecladista, guitarrista…
Sim, é uma geração de músicos nova com influencias muito interessantes, mas eu não acho que o Reino Unido esteja acima. Acho até que existe um hype. Ainda acredito que os Estados Unidos são os primeiros, entende? Eu não sei, mas essa é a minha percepção, existe um hype… não necessariamente comigo, mas acontece.
É interessante você falar isso por que nas matérias só se fala da “Cena de Londres”.
Sim, é sempre a mesma chamada.
Mas de alguma forma acredito que isso seja bom porque deixa o Jazz no holofote do mainstream e o pessoal acabando consumindo.
Claro, sempre existe um lado positivo.
Como é o seu processo criativo na hora de criar esses climas e estruturar os grooves? O resultado final sempre chega como se fosse uma trilha sonora de cinema.
O cinema me inspira bastante. Um disco pra mim é como um filme, sabe? Essa questão de contar uma história… Sobre o meu processo criativo, varia bastante, até por que eu tento manter as coisas orgânicas.
Às vezes muda porque estou acompanhado por outros músicos e as viagens também acabam influenciando bastante. Por isso, na hora de compor pra juntar todas essas referências e contar essas histórias, é muito gratificante ver o que aquilo representa.
Você já tocou em duo, trio e agora tem o quarteto, desde que o Quinn Mason chegou com o saxofone. Como essas alterações afetaram seu jeito de tocar? O groove fica mais dinâmico?
Em trio, você tem muito espaço para preencher o som. O que eu sinto com relação ao quarteto, e principalmente frente ao Quinn, é que agora o grupo está completo. O saxofone, especialmente com a abordagem dele, acaba agregando bastante no som, tanto em termos de dinâmica, quanto de estrutura e isso é muito bom por que dá mais opções pra você conseguir fazer música.
Você tem uma abordagem muito minimalista, sempre com atenção minuciosa aos timbres. Como sua carreira multifacetada contribuiu para a construção dessa abordagem? Por que apesar de ser um som mais aveludado, ainda assim é muito profundo e funkeado.
Pelo fato de ser produtor e DJ você acaba ficando mais minimalista. A questão de dar atenção ao detalhe, prestar atenção nos timbres.
De certa forma, fica até mais prático, mas é um exercício desafiador… Construir essa visão é difícil e acho que ela é bem enraizada nesse mindset de produtor e DJ que eu tenho, à parte da questão instrumental. Isso com certeza acaba complementando meu trabalho nesse sentido também.
Pra fechar, o Robert Glasper fala que o Jazz é a mãe do Hip-Hop, com base nisso eu queria falar sobre seu trabalho com o Wu-Tang Clan. Em 2018, você lançou o Kamaal Vs Wu-Tang Clan e eu queria entender como foi o processo e como surgiu essa oportunidade.
Isso foi incrível. Eu estava em Marrakesh ano passado, só relaxando e o DJ Snips [DJ britânico radicado em NY] estava trabalhando numas versões para o Wu-Tang Clan na época. Ele me enviou e perguntou se eu não estava a fim de escutar.
Eu ouvi e achei muito legal. Nisso, descobrimos que o Cilvaringz [produtor Holandês] estava em Marrakesh também e, mesmo ele não sendo um membro oficial, era próximo dos caras. Nós marcamos um almoço e, uma hora depois de comer, eu tinha escutado o trampo e fiquei muito impressionado com o resultado.
Não fazia ideia de que ele estava trabalhando com eles. Logo depois eu mandei para o Cilvaringz e falei que ele poderia me considerar para o clã. Eu sou um Wu, também, afinal de contas meu avô foi o General Wu, então eu sou descendente dessa linhagem… Se o neto do general está trazendo um projeto desse, acho que você deveria conferir, você pode estar me devendo uma grana, entende o que eu digo? (risos)
Em 24 horas, o Snips me passou o Wu edit eu aprovei com o RZA… Sabe aquele filme Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, do Guy Ritchie? Fui mais ou menos assim que aconteceu. Foi Deus, ele que fez isso acontecer (risos).
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