Em março de 2020, começou um período extremamente desafiador para Xênia França. Isolada em sua casa em São Paulo, ainda que tivesse acabado de ser contemplada em um projeto que garantia o patrocínio necessário para fazer o seu segundo álbum solo, a artista baiana teve muitas dúvidas se fazia sentido seguir em frente. Triste e confusa, chegou a questionar o propósito de sua vida e precisou lutar muito para encontrar o caminho de volta deste processo.
No auge de tal movimento, ela se sentiu vazia. Mas, em uma descida ao microcosmos, Xênia encontrou o espaço desocupado descoberto pelo físico Ernest Rutherford, a ausência de matéria que compõe a maior parte de todos os átomos existentes. Ali, ela entendeu que o aparente nada, na verdade, contém tudo. Como se todos os números estivessem presentes no zero potencialmente. Como se a própria sombra oferecesse o ar combustível para acender a luz.
Então, ela olhou pra cima e viu o brilho do céu estrelado, repleto de faróis cósmicos infinitos estampados sobre a escuridão. Eis que Xênia olhou uma estrela e se viu no espelho. Lembrou que sua luminosidade pessoal estava ali, como sempre esteve e estará, para além do passado e do futuro. Em nome disso, ela abraçou sua vulnerabilidade e a transformou em uma forte argamassa com a qual ergueu o segundo álbum de sua discografia pessoal. A seguir, ela conta como tudo isso aconteceu.
Como avalia o ciclo do disco Xenia (2017)?
Parece muito tempo, né? Eu não tinha a menor noção do que poderia acontecer e aconteceram muitas coisas. Fui pra fora do país algumas vezes, e ter essa receptividade de públicos de outros países foi muito especial, as indicações ao Grammy também. O primeiro disco já é um trabalho de lapidação estética de linguagem, então não foi assim: “Ai, nossa fui indicada ao Grammy”. Seria estranho se eu não tivesse sido indicada! [Risos] Mas não estava pensando nisso, realmente foi uma surpresa.
Até o dia 15 de março de 2020, quando tudo mudou, eu estava trabalhando com ele. O disco rendeu muito, me deu um certo respeito, eu sei que as pessoas gostam muito do que eu faço, gostam de mim, e fico muito feliz, grata e lisonjeada. E aí, pra fazer esse outro, o grande conflito era pra não fazer um disco que emulasse o primeiro. Sendo que, naturalmente, o primeiro tornou- se a minha referência. Eu tinha o desafio, com meus parceiros, de nem imaginar a possibilidade de fazer um disco parecido, muito pelo contrário. Usar a referência, mas deixar a música fluir.
Isso é uma característica da maneira como trabalho, deixar a música como ela quer ser. Não tem fórmula de algoritmo, eu gosto que a música seja o que precisa ela ser, que a música fale comigo, fale com o meu coração. E não foi uma coisa muito fácil, pra mim, porque eu ficava em conflito: “Nossa, eu não vou conseguir fazer um disco tão legal quanto o primeiro”, sabe? Sofrendo. [Risos]
Quando começou a nascer o Em Nome da Estrela (2022)?
Já existia a possibilidade desde 2019. Esse disco tem patrocínio da Petrobras, eu tinha ganhado o projeto, mas estava num fluxo de trampo muito grande e muito cansada mesmo. Já era o final do ano, aí coloquei na cabeça que o disco ia ser feito em 2020. Aí veio 2020 e nada aconteceu. Comecei a trabalhar nele mais no final de 2020 e em 2021.
Em relação às composições, como foi esse processo?
Mano, eu tive um bloqueio criativo em 2020, eu ficava assim: “Meu Deus… de onde vai vir esse disco? O mundo acabou, qual é o sentido de fazer disco e ainda querer ser artista? A gente não vai mais poder tocar!”. Eu fiquei com aquele conflito, bem infantil mesmo. Tipo, você tá em casa sozinha, acabou a luz e sua mãe vai demorar pra chegar. Mas eu tenho os meus mestres espirituais e ando com muita gente talentosa.
Nesse disco, divido a produção com Lourenço Rebetez e Pipo Pegoraro, que também produziram o primeiro disco comigo. Embora fossem as mesmas pessoas, eu estava diferente, a situação era desafiadora, nós estávamos sob pressão individualmente, cada um interpretando a situação pandêmica de um jeito.
Então, é engraçado. No primeiro, eu estava com muito ânimo e o disco não é tão solar. Esse segundo disco foi feito com menos empolgação e é mais solar, é uma coisa meio contraditória. Foi uma situação mais desafiadora, mas o disco ficou mais solar, um pouco lúdico.
Isso se expressa até nas capas, né? A do primeiro é escura e a do segundo é clara.
É. Você vê que o Big Bang eclodiu de uma partícula que ficou tão ensimesmada, tão potente, mas, no núcleo dessa matéria, não tinha nada. Acredito que coisas muito bonitas podem sair de momentos obscuros. Quando você tá no vazio, nem sempre é ruim, porque você pode transformar essa energia em alguma coisa. No núcleo do átomo, não tem nada, e o que é esse nada? É a potência, o potencial a existir. Acho que foi isso que aconteceu comigo nesse trabalho. Cheguei num lugar emocional bem difícil e me vi vazia de sentido. E senti que precisava lutar, eu estava lutando pela minha própria vida. Porque uma das coisas mais tristes é a vida perder o sentido.
Acho que aconteceu isso com muita gente durante a pandemia. No meu caso, sempre tive conflitos pessoais, e eles cresceram bastante nesse processo pandêmico. Resolvi colocar eles pra fora, inclusive deixar vir essa Xênia mais pisciana, cósmica, que não apareceu tanto no outro disco. Eu tento viver de uma maneira espiritual, mágica, relacionando isso com tecnologia, com espiritualidade, e achava que, como isso foi a minha grande tônica durante esse processo de autodescoberta e renovação, fazia sentido que aparecesse tanto nas letras quanto na forma de fazer o disco.
Na capa, você está de branco e com as mãos douradas, tem a ver com transformar o que toca em ouro?
Então, acredito que, do vazio, do nada, do escuro, da sombra, vem a luz. E eu acho que foi esse desejo que eu tive de, até visualmente, trazer mais luz pra imagem da capa, pensando sobre o arquétipo de Midas, que conseguiu transformar tudo em ouro. Fazendo até uma relação do que seria o continente africano doando todo tipo de matriz, tanto humana quanto natural, de riquezas pro mundo inteiro. Tudo que essa gente – que parece comigo, que é de onde eu venho – tocou virou ouro, né? Essa é a mensagem por trás dessa capa.
Ter passado por momentos difíceis, ter me reconhecido bastante frágil, e reconhecer essa fragilidade, foi uma grande força. A gente confunde vulnerabilidade com fraqueza, né? Ninguém pode ser fraco, mas foi importante pra mim, nesse processo, entender que eu sou um ser humano. Essa coisa da mulher negra e não sei o quê, acaba desumanizando, você sai de uma armadilha e cai em outra. Você acaba se desumanizando e deixando o mundo te desumanizar por causa desses conceitos, que já estão na sociedade há muito tempo. Quando me vi frágil e desamparada, vulnerável, eu tive que pegar esses caquinhos e fazer alguma coisa com eles.
Como foi isso? Quão diferente foi esse processo do outro disco?
A narrativa do primeiro disco estava muito conectada com o externo, o social, coisas que estavam atravessadas na minha garganta e precisavam ser ditas. Eu fiz o meu primeiro disco quando ainda estava no Aláfia, e o Aláfia sempre foi uma banda muito questionadora, então acho que eu vim com um pouco dessa energia no meu primeiro disco. No segundo, eu já estava distante disso.
Aprendendo sobre arquétipos, cheguei nesse lugar do reconhecimento do feminino, de se ver mais sutil, não nesse lugar de que “mulher é frágil”, mas falando da energia feminina, de deixar essa energia fluir em equilíbrio com a energia masculina, e outras energias, que fazem essa máquina que se chama vida se movimentar. Então, me vendo naquela situação, me vendo naquele arquétipo feminino, isso foi me influenciando a criar.
E comecei a me reconhecer uma pessoa mais doce, mais calma, mais a fim de me dar o que eu preciso. Eu preciso de amor, de carinho, de compreensão, de acolhimento, e tudo isso começa comigo. Eu acabo refletindo no mundo essas atitudes que eu tenho comigo e naturalmente essas coisas se desdobram.
Existe um processo terapêutico, de investigação dos conflitos e questões, ligado à expressão artística. Como se sente dividindo isso com o público? Você falou de o primeiro ser mais social e esse ser mais pessoal, mas essas dimensões se cruzam, né? Tem uma importância social o artista se mostrar vulnerável, por exemplo.
Sim, com certeza. Provavelmente vai durar a eternidade inteira até que eu pare de encarnar no mundo, mas eu tô num processo de lapidação do meu cristal interno. Tô sempre em busca disso, sempre lendo, fazendo alguma terapia. Agora, dividir isso com o público, eu faço isso mais no palco. Durante a pandemia, me retirei um pouco das redes sociais. Eu não conseguia vender life style, estava me sentindo muito triste. Hoje, eu fico meio assim: “Ah, eu quero falar mais com o público, mas não gostaria que fosse uma coisa rasa ou efêmera, 15 segundos no stories”.
E o disco já tá feito, isso é onde eu me baseio. Eu fiz um disco, e existem pessoas que gostam muito de me ouvir. Então, espero que as pessoas que ouçam esse trabalho não só queiram chafurdar na vida de uma artista, mas que consigam se relacionar com o disco. O que eu pensei foi: “Eu quero que esse disco atravesse você como você precisa que esse disco te atravesse. Eu quero que esse disco fale com você”.
Esse é um processo terapêutico pra mim. Saúde é todo um complexo, e eu pude ver isso, pude sentir na pele que, se você não tá bem, nem as conquistas positivas você vai sentir, você se torna meio anestesiado. Se eu conseguir chegar em algum lugar nesse trabalho, em termos até de comunidade, sendo uma mulher preta, e poder me comunicar com as pessoas que parecem comigo, falando de vulnerabilidade, de autoamor, de saúde mental, e ter mais pessoas conectadas com essa ideia de que saúde não é só você tomar um comprimido, pra mim é uma honra, sabe? Era isso que precisava sair de mim nesse momento.
Nos shows, aí sim eu me abro mesmo. Gosto muito de ter essa troca com as pessoas, porque eu sinto que esses shows são medicina pra mim e para as pessoas que vão. Eu recebo vários relatos, as pessoas fazem questão de mandar mensagens enormes falando das coisas que sentiram. No show, acho que realmente a gente transmuta muita coisa. E eu deixo as pessoas saberem que eu tô no mesmo lugar que elas, também sou um ser humano e também tô passando pelas minhas coisas. Agora, com esse trabalho, acredito que eu tô muito mais transparente nesse sentido.
Então, fico feliz de poder ter um nível mais profundo de exposição, porque a exposição pela exposição não me agrada nem um pouco. Entre um disco e o outro tem cinco anos, eu tenho o meu tempo e eu respeito muito meu tempo como ele é, o meu relógio interno. Então, não faz sentido que, depois de um trabalho desses, eu saia atropelando e deixando tudo ficar raso. Não, eu dou o espaço que precisa para as pessoas absorverem. Porque eu sei que não são só músicas no lugar do entretenimento. Tem alguma mensagem que, se chega nas pessoas, já me sinto muito abençoada.
E você pretende fazer um filme do disco, correto? O que você planeja?
É, eu ainda não comecei a fazer porque eu lancei o disco e fui viajar. Eu tô planejando esse filme faz uns meses, mas ainda tô em um processo de decupagem, de conceituação. Ele vai acontecer, mas em 2023. Dentre outras coisas, clipe e tal. Eu não vou fazer um álbum visual do disco inteiro, mas criar uma narrativa massa pra lançar esse álbum visual.
Você falou bastante sobre o tempo, e o disco cita, no título das faixas, o futuro (“Futurível”), o passado (“Ancestral Infinito”) e o presente (“Já É”). É como se houvesse uma viagem no tempo através da música?
O passado, o presente e o futuro estão dentro da mesma linha. A maioria das doenças mentais modernas, ansiedade, não sei o quê, eu acredito que são doenças de tempo. Ou a gente tá vivendo preso ao passado ou a um futuro. A gente não tem educação emocional, a vida moderna é totalmente feita para o consumo, que gera cada vez mais ansiedade. Nós estamos sendo criados pra ser consumidores, não pessoas, e isso é preocupante.
O tempo é essa seta que aponta pra frente, é essa energia que tá passando em detrimento das nossas vontades, inerente ao que a gente acha. Tudo contém tempo, toda a matéria que existe tá dentro do tempo. É a única consciência capaz de passar por todas as dimensões. Independente de qual tempo esteja ocorrendo nessas dimensões, é sempre o mesmo tempo. É uma linha reta pra frente. Então, eu relaciono muito o tempo com o amor. Se a gente puder fazer esse exercício de se dar amor, a gente vai estar no presente. Porque você está no seu tempo, eu acho isso mágico.
Sonoramente, o disco faz essas pontes temporais, trabalhando tanto com a percussão afro-baiana ancestral quanto com a linguagem eletrônica, que se associa a uma ideia de futuro. Comenta um pouco sobre a busca sonora do álbum.
Sim, é isso. Trabalhar com música é estar sempre aprendendo, ouvindo, trabalhar com música é mais sobre escutar do que sobre cantar ou tocar. E eu sou super tagarela, então a música me dá essa chance de ouvir bastante. E me apropriar da linguagem de percussão baiana, não de uma maneira clichê, é desconstruir aquela linguagem que já tá tão massificada na nossa cabeça e colocar dentro de uma estética que seja universal. Isso combina muito com a linguagem dos sintetizadores.
A percussão que vem dos terreiros, que é tão antigo e tão presente, é um comando também. Porque, dentro de um terreiro de candomblé, o [atabaque] rum é responsável por chamar o santo. A energia não resiste àquele toque, e ter isso dentro do meu trabalho é uma coisa que eu não consigo nem dizer direito o que significa, porque é uma coisa muito mais antiga do que a gente possa imaginar. E aí lançar mão e juntar a isso outras linguagens, como a de sintetizador, é a liberdade, o fluxo, o flow, deixar a música falar.
No meu trabalho, tem bastante espaço para o virtuosismo. Quem toca comigo nos teclados é o Fábio Leandro; na guitarra, MPC e programações é o Pipo Pegoraro; na bateria, Daniel Pinheiro; no baixo, Robinho Tavares; e na percussão, Ricardo Braga. Essa foi a nave que eu montei pra conseguir expressar a quantidade de informação que a gente ficou elucubrando no estúdio, e na formação do disco ela tem algumas variações. A minha linguagem é essa alquimia de juntar essas pessoas pra tocarem juntas.
Então, quando eu chamo eles pra gravar, eu nunca tenho pronta uma partitura, porque eu gosto de ver o músico interagindo com aquilo que está sendo proposto. Deixar a parada acontecer ali. A maior magia dentro de um estúdio é isso. Tenho memórias maravilhosas de a gente rindo, chorando, se emocionando dentro de uma gravação, porque realmente tem alguma coisa naquele momento sendo canalizada. Esses são os grandes presentes de produzir um disco, é poder ver a música viva acontecendo na sua frente.
No show da Sampa The Great que teve há pouco tempo em São Paulo, estavam presentes vários artistas, como você, Tássia Reis, Liniker, Luedji Luna, Zudizilla, Rico Dalasam. Isso me fez pensar sobre essa geração de artistas negros brasileiros contemporâneos. Você sente que existe algum tipo de movimento acontecendo?
Acho que sim, tem um movimento diferente acontecendo agora. A música brasileira sempre foi muito rica, muita viva, o tempo todo acontecendo coisas novas, mas existe essa música contemporânea preta. Uma música que tem uma liberdade maior e flerta com muitas linguagens. Tem uma sensação de pertencimento, que eu sinto vendo artistas pretos contando a sua própria história, lançando mão das suas próprias narrativas pra poderem construir as suas linguagens musicais.
Nesse momento, as artes negras estão vivendo um grande iluminismo, uma retomada de propriedade muito grande. Enquanto artista, eu me sinto muito feliz e muito honrada de fazer parte do mesmo tempo de grandes nomes como esses que você citou. São pessoas muito criativas, maravilhosas, dedicadas aos seus trabalhos, que contam a história de um tempo. A gente tá falando tanto de tempo, e a gente tá vivendo o nosso tempo.
Em uma entrevista épica da Nina Simone, ela fala como ser artista é você refletir seu tempo. E eu acho que, mais [importante] do que a gente refletir nosso tempo só pela narrativa externa, o que é muito comum na história do Brasil, é a gente conseguir contar a nossa história, criar uma narrativa pela nossa própria perspectiva. A gente sai do objeto de estudo e vira o pesquisador. É isso o que tá acontecendo, é um fenômeno, em vários estilos e narrativas diferentes. Eu sinto um pouco de falta de plataformas e meios de comunicação que estejam atentos a esse momento, esse grande vórtex dentro da linguagem preta contemporânea, que tá traçando uma coisa muito bonita.
E o que é mais interessante é que os gringos estão completamente malucos. Acabei de lançar meu disco e tem não sei quantas mil matérias sobre meu disco fora [do Brasil]. Como eu sei que é igual com essas artistas, Liniker, Luedji, várias, assim como eu, tem um acesso grande fora. E aqui eu sinto que ainda é meio estranho às vezes, eu acho. Mas enfim, historicamente, no tempo, essas coisas vão ser amarradas da maneira certa. Enquanto isso, a gente continua fazendo.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 127 da revista NOIZE, lançada com o vinil Em Nome da Estrela, de Xênia França, em 2022.
LEIA MAIS