Muitos quilômetros, um oceano e algumas décadas separam o norte da França, onde nasceu o pintor Henri Matisse, e o extremo sul do Brasil, onde nasceu Júlio César, o Zudizilla.
Vanguarda do movimento fauvista, no século XX, Matisse faleceu muito antes de Júlio pensar em nascer e, em comum entre eles, somente o fato de serem ambos artistas transgressores de seu próprio tempo. Mas talvez a ligação faça mais sentido ao ouvir o EP Le Fauve do rapper pelotense, lançado no apagar das luzes, no fim do mês de novembro.
Com 10 faixas, o disco de Zudizilla, que conta com a colaboração de Soul Diggin, 808 Luke e B.Artz, navega entre o neo-soul e o r’n’b contemporâneo.
A proposta? Capturar a atmosfera crua, sensual e feroz das relações amorosas e, no processo, apresentar novos caminhos para a carreira do rapper, ou melhor, novos tons para sua paleta de cores.
“A forma com que eu lidei com a trilogia Zulu fez com que eu esgotasse o meu estoque de drama. Eu acho que vou sair da coloração cinza e azul e partir para uma coloração mais amarelo e vermelho”, reflete.
Le Fauve, em uma tradução literal do francês, significa “A Fera”, num jogo de palavras com a forma como eram chamados os artistas fauvistas e a concepção da fera do conto europeu do século XIII, adaptado pela Disney em 1991.
O EP é o primeiro projeto lançado pelo artista desde o fim da aclamada trilogia de álbuns Zulu, realizada entre 2019 e 2023. Na entrevista a seguir, Zudizilla comentou sobre o novo momento da sua carreira e sobre os processos emocionais de seu novo trabalho.
Zudi, acompanhei algumas entrevistas suas nos últimos tempos em que você falava que, depois do fim da trilogia Zulu, esse era um momento de reinventar, de descobrir novas facetas para o personagem Zudizilla. Quem é o Zudizilla de agora? E quais histórias ele quer contar?
Cara, o Zudizilla de agora é um aprimoramento do mesmo Zudizilla que todo mundo já conhece, só que é como se, no meio do caminho, eu conseguisse ir deixando alguns fardos para trás. Algumas coisas pesaram demais na minha mochila, e eu estou começando a deixar pelo caminho, porque algumas coisas me limitavam, inclusive, não eram tão minhas quanto eu achava que eram.
Esse novo momento, que eu ainda vou trazer, parte desse universo particular, não mais em contato, nem em choque, com a realidade externa ou dos outros. Acho que vou sair da coloração cinza e azul e partir para uma coloração mais amarelo e vermelho, porque eu preciso também falar das coisas que sempre falo, que gosto e que preciso falar. Acho que é para isso que o rap serve, é para isso que a arte serve.
Mas o momento que eu estou vivendo agora — de rir, de alfabetizar meu filho, de dar um abraço na minha mulher toda vez que ela chega, de conseguir me sentar por cinco minutos no pátio e olhar para o céu azul — isso me dá uma outra perspectiva da vida, me dá uma outra possibilidade de viver e mostra outras ferramentas de batalha para esse corre.
Você acha que o Zulu: Quarta Parede, vol 3 (2023) te abriu uma possibilidade de ser mais vulnerável nas letras?
Na verdade não, cara, o Quarta Parede é mais um resultado, eu abro essa vulnerabilidade desde o início. O volume 1 é um disco que trata sobre sensibilidade, choro, desilusão, tanto amorosa quanto financeira, ele fala sobre um não-lugar. Eu nunca tive medo de me expor, sabe? Em nenhuma dessas dinâmicas. Seja da parte mais dura que foi a minha vida, que eu tive que fazer coisas que não me orgulho, e seja com coisas que eu sofri durante a minha vida inteira e que eu tenho certeza que quem passou por isso também não se orgulha do que aconteceu.
Como essas transformações internas impactaram a criação do novo projeto?
Sempre fui um cara que foi muito aberto. O que aconteceu no Quarta Parede é que eu estou menos emocionado, menos sentimental para passar esse sentimento. Às vezes, a gente tem uma carga muito grande de emoção, sensibilidade e vulnerabilidade para trazer para o público, mas está tão imerso dentro dessas sensações que talvez tu não consiga poeticamente e com a narrativa ser tão explícito. O que talvez seria passado com um gesto, ou com choro, ou com um grito. E isso não cabe, um gesto não cabe num disco, um grito não cabe num disco. Então, no Quarta Parede, eu consegui sintetizar tecnicamente a forma de trazer as sensações, os sentimentos e as sensibilidades que eu tanto abordo, mas com caráter técnico e com possibilidades maiores.
De que formas os dois pólos – o técnico e o sentimental – se conectam?
O Quarta Parede tem esse equilíbrio entre técnica e emoção, que é o que eu sempre quis. Sempre quis ser menos técnico do que sensível, mas eu sempre quis passar sensibilidade e emoção a partir de termos técnicos. Não só pelo grito, chiado, pela falta de condição para gravar, e superar isso com emoção, mas porque eu realmente trabalho como se fosse um ator dentro do estúdio.
Você sente que é performático quando está gravando?
Não. Zero performático. Cara, pode ser uma performance se a gente traz para a contemporaneidade, para as performances contemporâneas que lidam com o comum em um espaço de observação e ai tu torna nessa performance que seria comum de dia a dia em algo fantástico porque se torna arte. Tem música que eu preciso gravar fumando um cigarro, por exemplo. Não que eu precise, a questão do pulmão, da voz, da falta de ar, isso é algo que é extremamente necessário em certo tipo de música. Então, eu trago essa dinâmica que é comum para mim, especialmente quando eu estou ansioso, não sou um fumante ativo, mas quando eu estou muito ansioso, eu fumo. Então às vezes eu vou gravar uma música que fala sobre a ansiedade e eu preciso estar fumando dentro do estúdio para poder passar essa sensação. Eu deixo isso em implícito dentro da música, então, eu acredito que tem um pouco do princípio do pensamento da performance, mas é muito mais um exercício de acting do que performance.
Entrando no disco: você frequentemente cita bell hooks nas suas letras. E eu sei que você já leu o livro Tudo Sobre o Amor. Qual foi o impacto desse livro na sua percepção sobre o amor e nas suas relações de afeto?
Cara, sou do extremo sul do Rio Grande do Sul, então, eu sempre fui cercado por muitas pessoas brancas. Não é uma desculpa, mas o referencial de beleza, o referencial de sucesso, tudo o que eu tinha em torno eram pessoas brancas. Na minha própria família mesmo… A minha mãe é mãe solteira. Eu nunca tive um exemplo perto de mim de pretitude enquanto casais pretos. Durante muito tempo, minhas relações foram pautadas pela inter-racialidade – e nem todas foram traumáticas, nem todas foram ruins. Quando eu vim para São Paulo, momento em que me deparei com esse livro, vi uma possibilidade muito maior. Até porque, no Rio Grande do Sul, eu era uma pessoa feia. Sempre fui pobre pra caralho, eu não tinha as roupas, o cabelo ou o rap. Então, eu sempre fui um cara feio, tá ligado? Na verdade, eu só era preto, mas sempre fui um cara feio para todo mundo. Quando cheguei em São Paulo, me deparei com uma possibilidade muito maior de trafegar enquanto uma pessoa que quer se relacionar, que busca relacionamento.
Como essa realização mudou a forma como você encara os relacionamentos?
Fui entendendo como o amor para pessoas pretas é uma coisa meio que imposta. Ele tem certos parâmetros, uma outra forma, um outro método. Eu percebi o quanto minha mãe e o meu pai me amavam. E percebi o quanto p meu pai não pôde amar minha mãe. Através dessa leitura, percebi como o amor, dentro da minha realidade, foi tomado de mim, muito por conta de questões comerciais. Eu não tenho exemplo na propaganda, nos filmes, eu não tenho esse referencial. E, a partir daí, as nossas dinâmicas de amor foram muito pautadas no trabalho. “Eu não preciso dizer que te amo se tu tens comida na mesa”, tá ligado? Mas eu ponho comida na mesa do meu filho e digo que o amo. Isso não me faz menos, tá ligado? E isso, com certeza, me preparou muito para a relação que tenho hoje em dia.
“Eu sou romântico pra caraca, tá ligado? Ela [Luedji Luna] já não é tanto, sabe? O amor dela já é mais ativo, já é mais físico. Então, eu consigo perceber como é que ela cultivou o amor dentro dela, como eu cultivei o amor dentro de mim e o amor me dá muito desses caminhos.”
Você até antecipou um ponto que eu ia te perguntar, sobre o que, para mim, é um dos capítulos mais arrebatadores desse livro: os primeiros capítulos onde que ela descreve a nossa primeira relação de amor com a família. Esse livro mudou sua visão sobre paternidade?
Eu não sabia que ia ser pai quando li esse livro. Mas, depois que me tornei pai, e já tinha esse aparato argumentativo, me tornei um filho melhor para o meu pai. O pai que eu sou para o Dayo é muito instintivo. Sempre refutei essa ideia. Quando a galera me perguntava tipo: “Mano, você vai ser pai, o que você está sentindo? Tá nervoso?” Para mim, parecia que um brother meu foi viajar, ficou um baita tempo fora, e agora está voltando. Sempre foi assim que percebi o Dayo. Como se fosse um amigo meu que passou um tempo fora na gringa e voltou. Então, é muito instintivo. A forma como sou pai dele é muito pela relação de falta que tive com o meu pai. Acho que esse livro me ajudou a ser mais paciente, mais solidário com a realidade que meu pai dizia ter sido difícil. Ser um preto no Rio Grande do Sul, na época da internet, do futebol, da televisão… Para o meu pai foi muito pior, então eu percebi que não precisava ser aquilo. Mas não é porque não precisava ser aquilo que eu tenho que criticar aquilo que ele se tornou, sem ter tido tempo para modificar essa construção. Eu me tornei muito mais carinhoso com o meu pai.
“Entendendo o meu lugar enquanto cuidador de um moleque preto que precisa, desde cedo, saber que é amado.”
Sinto que cada música tem um universo à parte. Mesmo que estejamos falando de um novo capítulo na sua carreira, vejo esse EP como uma fresta aberta em “Supernova” com a Melly. É como se você tivesse pegado aquele sentimento e o destrinchado em mais faixas. Você também percebe dessa maneira?
Total, cara. Durante muito tempo, a minha música que fazia todo mundo cantar e botar a mão para cima foi “Smooth Operator”, do primeiro volume. É muito curioso, porque eu sempre fiz love songs. Sempre fui esse cara que tinha facilidade com isso. Quando fiz o Quarta Parede, já sabia que ia colocar uma love song, e também sabia que essa love song seria uma anti-love song. Na verdade, “Supernova” não chega a ser um som romântico. Ela tem uma questão meio áspera, uma questão de Le Fauve, uma questão de fera. E o nome dela é justamente por isso, né, cara? É uma estrela que explode, é o silêncio que se rompe em um certo momento. Mas era pouco para uma canção só, porque era uma explosão de sentimentos que eu estava tendo. Foi um EP que surgiu em torno dos instrumentais. Eu gosto de BPM mais baixo, gosto de sopro, gosto de groove de baixo. Eu gosto dessa sofisticação que vem de Miles [Davis], do jazz, vem de Coltrane, vem desse universo todo. E aí, eu estava com esses instrumentais e queria uma temática.
Você acha que as pessoas entenderam “Supernova”?
Não entenderam. A galera não entendeu o Le Fauve ainda. Demora, eu sei disso. “Supernova” é uma música sobre objetificação. Por isso, Le Fauve vem com esse teor sensual, respeitoso, sexy, porém, com um consenso, saca? É muito mais do que “senta, senta, bota, bota, bota, mete, mete”. É muito mais um “quer sentar?”, “posso botar?”…
Uma sugestão, né? [risos]
É uma sugestão, cara. É um estágio anterior ao que a galera está querendo. Porque parece que é assim: eu conheci, botei, botei, botei, menti, menti… Meio britadeira, tá ligado, mano? Isso não faz ninguém feliz, eu acho. Por isso que está todo mundo tomando tanto tadalafil, porque o bagulho virou mecânico. E, pô, mano, tem todo um flerte… Não sei se as pessoas captaram isso. Não quero explicar para as pessoas. Não quis, na verdade. Porque pode tornar o som “cabeçudo”, e eu não queria que fosse um som “cabeçudo”. Eu faço sons “cabeçudos”, mas preciso que a música chegue primeiro, antes da explicação da música. Então, “Supernova” é atingir esse ideal: ser uma canção que consegue captar as pessoas pelo ouvido, pelo ritmo, mas que, se tu der uma “aprofundadinha” ou me perguntar um dia na rua, vai ver que tem uma outra camada.
Quando você percebeu que esse projeto cabia no seu momento?
No momento em que comecei a fazer as músicas do próximo disco, a decupar o próximo álbum, fui entendendo como eu vou falar no próximo álbum, quem ele vai ser, e como posso fazer para que a galera dê uma desbaratinada do assunto, para que, quando eu venha com o próximo álbum, ele esteja fresco. Eu sei que as causas e as pautas são constantes, elas não mudam, infelizmente, porque o mundo não tem mudado. Mas eu preciso que, sempre que eu fale, haja efetividade. Para isso, preciso construir uma pausa, um respiro, o intervalo da partida, para voltar com todo o gás. E eu queria muito colocar esse meu lado produtor para a rua. O Le Fauve tem muitas camadas nesse sentido. Se a gente for parar para perceber, quem são os produtores pretos que estão no corre? São muito poucos.
“Tem uma diferença muito grande entre luta e briga. Eu não estou brigando contra o sistema, não estou brigando contra a branquitude, eu estou lutando. A briga termina, a luta vai até o final.”
Há muito tempo você assina a coprodução dos seus discos, mas eu vejo você falar pouco sobre isso. Qual a importância de se assumir como produtor?
Comecei a produzir por necessidade. Eu nem tinha computador, era louco, e soltava os bagulhos nos meus beats [risos]. Sempre tive um MC e um produtor na minha cabeça, e tem sempre uma música soando dentro da minha cabeça. Ela não é propriamente uma grande inovação, mas ressoa dentro da minha cabeça, e não tem ninguém no Brasil que tenha feito o que soa dentro dela. Existe um lugar ali do MC-produtor que me agrada muito. Tem um lugar do J Dilla que me agrada muito, do Rafael Sadik, do Kanye West, o Travis Scott… Tem uma peculiaridade que eu quero explorar. Mas antes, a gente não tinha essas condições. Acho que agora, com mais condição e mais autoestima, tenho um pouco mais de propriedade, de autonomia. Tenho um parceiro que é o Luke [808], que me ajuda a consertar várias loucuras minhas. Ele ouve e fala: “Isso aqui tem a vibe, tem o clima, mas tá tudo errado!” [risos]. Eu mando o projeto pra ele, ele coloca tudo no lugar certinho, manda de volta, eu gravo, mando pra ele de novo, e ficamos nesse pingue-pongue.
Qual música deu mais trabalho pra compor?
“Seda” foi a mais difícil porque ela tem um compasso de três tempos. Queria fazer uma música que fosse sensual, sexy, sem ser explícita. Buscava esse universo mais picante, mais ardido, mas de uma forma respeitosa. É sobre esse olhar mais cuidadoso, acho que todo mundo precisa de um pouco de cuidado. Tudo está muito veloz, as relações estão muito rápidas
Muitas vezes, te colocam de ser um “artista cult” dentro do rap, isso te incomoda?
Só quando é uma pessoa burra! [risos] Eu não sou cult. Sou muito mais ordinário do que a galera me desenha, mas tenho respeito pela arte. Preciso que ela dure mais tempo do que o lampejo de uma propaganda. Respeito a durabilidade, respeito à ideia, respeito a vida das outras pessoas quando entram em contato com o que estou criando. Subestimar o poder da galera da periferia de ser inteligente é tão… branco, tão sistemático, que eu nem consigo debater. Então, não me incomoda ser chamado de artista cult, a não ser que você seja um cara burro tentando me diminuir. Acho que “alternativo” é melhor do que cult.
Como você se imagina daqui a 10 anos?
Quero que quando a galera olhar para mim – um pretão rico, bem sucedido naquilo que eu fiz –, enxergue a construção. O que eu estou fazendo não é só para ser uma lenda nos livros, não quero ser uma história a ser contada, quero viver os louros do sucesso, da fama e do progresso. Quero que a galera enxergue daqui a cinco anos a potência, que eu sei que eu tenho, e que me deixa ansioso. Eu li isso em um provérbio budista que diz: “preocupação e ansiedade é a vontade que você tem de mostrar para as pessoas o que eles vão ver daqui a alguns anos”. Eu já estou lá, já vivo esse lugar, já estou nesse lugar. Agora tenho que esperar esse tempo chegar ou levar as pessoas até ele.
Pra encerrar, sempre tem gente nova chegando pra escutar seu trabalho, né, mano? O que você gostaria de dizer pra eles?
Escutem só eu! [risos] Porque provavelmente vou cair no ouvido das pessoas por causa de alguma playlist. Existem poucas playlists sendo fiéis ao meu trabalho. Há poucos lugares em que estou inserido, onde a galera consegue ver o que estou apresentando. Então, às vezes, é mais rentável apresentar meu som para pessoas fora do Brasil do que para pessoas aqui. Quando a galera pergunta “você faz o quê?”, eu digo que faço rap. Vejo os rappers que estão na mesma prateleira que eu e, porra, não tem nada a ver comigo. Ah, então eu caio no lugar da Música Popular Brasileira? Mas também não tem nada a ver comigo, tá ligado? Por isso, peço que tenham um pouco de paciência e um pouco de calma. Eu sei que você gostou, mas não tenta comparar com outra coisa, porque não vai encontrar. Escuta como se estivesse aproveitando… Estou aqui, enquanto converso com você, olhando para o A Love Supreme (1965) do Coltrane, que está aqui na minha frente. Escuta meu trabalho como se estivesse escutando o A Love Supreme do Coltrane, entendeu? Ou escuta A Love Supreme antes e depois o meu som, ou escuta meu som e depois o A Love Supreme do Coltrane [risos].