.45 | Cumbia em três tempos Pt. 1

06/04/2015

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Stéfanis Caiaffo

Por: Stéfanis Caiaffo

Fotos: Jorge Urango

06/04/2015

Podem ser muitos os motivos para que a cumbia, em suas diferentes variações, tenha levado cerca de meio século para ultrapassar as mil fronteiras que separam o Brasil dos demais países da América Latina – exceção feita para a região Norte, onde ela é uma presença real desde os anos 60 e dialoga muito com ritmos como a guitarrada, a lambada, o carimbó e o siriá.


O carimbó de Pinduca dialoga muito com expressões da cumbia amazônica.

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Eu não poderia – nem pretendo – discutir os porquês desta ausência por completo, trabalho que deve vir à tona quando algum grande pesquisador do tema assumir a tarefa pra si, mas pensando nesta ausência acabo por intuir pelo menos dois motivos que são até generalistas e bem óbvios. Primeiro e mais evidente, porque o Brasil seguiu
absolutamente solitário em sua relação com Portugal como matriz colonizadora e disso derivaram diferenças marcantes em relação aos nossos vizinhos da Argentina ao México não somente em termos de demarcação de território, mas também de demarcação de língua oficial e de outras estruturas culturais de base. Embora latinos, vivemos uma realidade à parte dentro da América Latina. Agrega-se aqui como fator em especial a relação de etnocídio estabelecida com as populações indígenas originárias da nossa terra, o que não nos deixou muita alternativa a sincretismo deste tipo. Do lado de lá das fronteiras, ainda que marginalizadas, culturas com proveniência ou influência indígena encontraram um lugar, ainda que pequeno e desconfortável, nas respectivas identidades nacionais e regionais e assim puderam entrar em fusão mais livremente. Aqui elas foram quase completamente relegadas às beiras de estrada ou confinadas em reservas cada vez mais atacadas por grileiros e posseiros.

Segundo, o fato de que a música popular brasileira teve uma impressionante força como elemento de solidificação das culturas e das identidades nacional e regional, fator que é especialmente evidente durante e logo depois do período de ditadura militar, mas que nos remete também ao passado dos maracatus rurais, das rodas de samba nos morros e dos forrós de pé de serra, bem como outras serestas e milongas à moda antiga. Aliado a este último fator e diferente de alguns dos países latino-americanos que nos circundam, o Brasil desenvolveu uma forte indústria fonográfica e ela marcou não somente a história da música brasileira em si, mas a história de sua já antiga disseminação como potência mundo afora, para além das nossas fronteiras. Se a chamada MPB é um passo de força, é também um segundo passo rumo ao isolamento: o gênero latino mais difundido entre diferentes países vizinhos talvez tenha encontrado na ascendência dos gêneros populares brasileiros e na nossa indústria fonográfica não aliados, mas um muro de sentido. O mesmo aconteceu com diversos outros gêneros vizinhos oriundos de regiões que vão do Caribe à Patagônia.

Talvez. E certamente devem existir muitos fatores a mais ainda por considerar.


Outros gêneros como o uruguaio candombe dificilmente chegaram ao Brasil.

Mas parece que esta distância está entrando em cheque de uns anos pra cá. A cumbia chegou de forma marcante ao Brasil e seu efeito é devastador tanto por onde passa quanto onde eventualmente se instala. Como estilo musical ou dança, a cumbia floresce no encontro de populações marginais na região caribenha conhecida como Costa, ao norte da Colômbia. Cartagena das Índias, hoje um dos principais destinos turísticos do país, é também um dos portos mais antigos da América Latina, consequentemente um dos locais mais importantes quando o assunto é a chegada de escravos trazidos da África pra cá – junto com os portos de Salvador e Havana, por exemplo. É também nesta região que se diz terem surgido as primeiras comunidades de escravos fugidos e/ou libertos na América Latina, os primeiros quilombos, lá chamados palenques – palavra que também dá nome a um dos muitos ritmos precursores da cumbia. Aliás, o grande número de subgêneros aos quais se atribui algum papel como precursores da cumbia já denota sua origem mestiça, sua mistura original.

Junto com os negros, vieram também sua musicalidade e muitos dos instrumentos percussivos que parecem ter dado origem ao naipe de tambores dos originais combos cumbiamberos, como o tambor allegre, o llamador e a tambora – cada um deles com funções diferentes na célula rítmica básica da cumbia. Esta matriz originalmente negra encontra nas populações indígenas já presentes na região um aliado muito forte e é deste aliado que também surgem alguns dos instrumentos que virão a caracterizar estes primeiros combos, principalmente as flautas e as maracas. A contribuição branca vem mais tarde através da roupagem mais acessível que as orquestras de rádios como Emisora Atlántico, La Voz de Baranquilla, La Voz de la Víctor e Emisora Fuentes dão ao gênero, tornando-o mais adaptável às transmissões de larga escala. Junto delas, nomes como Lucho Bermúdez e Pacho Galán também passam a incluir instrumentos de sopro ou fole nos combos originais, bem como novas formas de arranjo vocal sobre as sessões originalmente rítmicas e instrumentais. Suas orquestras acabam por ter um papel fundamental na disseminação da cumbia ao dar maior amplitude ao grupo de ouvintes do gênero à medida em que a levam a cumbia ao interior do país e mesmo ao estrangeiro.


“Arroz com Coco”, sucesso de Lucho Bermúdez, já relançado em vinil pela Soundway Records.

Ainda que considerada oriunda de uma mistura entre três etnias, é um acordo comum que ela seria mais fortemente marcada pela origem negra. Além dos instrumentos e do africanismo presente na forma através da qual ela é tocada e cantada, o próprio nome cumbia, de acordo com alguns estudiosos e embora tenha etimologia controversa, parece
sempre remeter a palavras de vocabulários originais africanos: kumba como denominação tribal na Guiné e no Congo, ekombi como uma dança feminina na etnia Kalabari, nkumbi como um tambor na etnia Kikongo, komba como ‘bater no tambor’ na linguagem cotidiana do Congo, além de muitas outras inferências que encontrei aqui e acolá. Indico para pesquisas especialmente o livro Cumbia! Scenes of a Migrant Latin American Music Genre, compilação de ensaios sobre o gênero feita pelo colombiano Héctor Fernández e pelo argentino Pablo Villa, lançada em 2013 pela Duke University Press.

Na cena de São Paulo já existem várias festas que têm como foco principal ou a cumbia em si, ou ela numa mistura dançante com outros dos ritmos chamados tropicais. Ouvimos estes ecos também em capitais como Porto Alegre, Rio de Janeiro e muitas do nordeste, isso para citar somente algumas das cidades possíveis – ou melhor, as cidades onde a atenção precária deste colunista consegue manter mais atenção. Em Sampa, onde a cumbia já parece ter mais história e mais força, procure como referências as festas Guaracha Club, Macumbia, El Delírio, La Tabaquera e Altos Cocos Discotheque; no Rio de Janeiro sua entrada parece ser mais recente, mas as festas de rua cujo nome é La Cumbia vêm chamando bastante a atenção do povo e um dos principais DJs da cena local, Marcello MBGroove, não hesita em convocar seu público a ser um pouco mais tropical; em Porto Alegre, a já sedimentada Fiesta Latina, a festa Batô e a provisoriamente silenciosa festa La Sabrosa – cuja residência é deste colunista que vos escreve – investem pesado em diferentes expressões originais e contemporâneas do gênero; no nordeste, o itinerante Baile Tropical e as festas Cafuné (Fortaleza), Summertime (João Pessoa) e Global Beats (Aracaju) têm muita cumbia em seus repertórios mensais.

Certamente existem mais por aí e não são somente DJs os interessados no estilo, mas produtores, pesquisadores e inúmeras bandas. Seus repertórios remetem à cumbia ou estão inteiramente calcados em seu ritmo cativante. No Norte, já caracterizado como exceção, ela já se faz presente como dinamizadora da cultura popular desde os anos 60 e deu asas a nomes antigos e fundamentais como Pinduca e os Mestres Vieira, Cupijó e Verequete, mas também a nomes novos como a banda Calypso.


A brasileiríssima cumbia da “Espetacular Charanga do França”.

É curioso que a cumbia tenha chegado somente agora ou recentemente, isso porque ela pode ser ouvida em qualquer passeio desatento à rua desde os arredores do Rio da Prata até as cercanias do muro que separa o México dos Estados Unidos, e há muitas décadas. Isso faz da cumbia, certamente, um dos ritmos mais difundidos na América Latina. A propósito desta grande disseminação, fala-se de migrações estratégicas e negociatas mil: a cumbia teria acompanhado o movimento migratório de povos latinos entre diferentes países e especula-se também que o tráfico de drogas tenha contribuído muito nestas viagens, visto que sua origem colombiana e sua disseminação precoce nos países vizinhos remete a alguns dos territórios de onde partiu boa parte da cocaína utilizada do sul da América do Sul ao norte da América Central. A cumbia teria ido além das fronteiras colombianas, portanto, em fitas cassette levadas ou por traficantes ou por populações migrantes em busca de melhores condições de vida, como os negros – termo que se refere a todos de origem não-espanhola – dos bairros pobres e periféricos de Buenos Aires. Hoje, porém, a cumbia parece encontrar um lugar mais confortável, embora subgêneros como a cumbia villera argentina, por exemplo, ainda tenham um estatuto parecido com o do funk batidão brasileiro.


A cumbia aparece também nas produções do paulistano DJ Tahira.

Mas a disseminação da cumbia e seu lugar no mundo hoje em dia são assuntos tanto para a segunda quanto para a terceira parte da nossa trilogia: na próxima publicação, trarei o relato da minha viagem a Barranquilla, de meu encontro com o colecionador colombiano Fabian Altahoma, alguns comentários sobre a cultura picotera – a cultura dos sistemas de som colombianos, grandes responsáveis pela disseminação do gênero – e algumas direções para quem quer encontrar discos de vinil nesta cidade que é considerada a meca dos diggers interessados neste estilo. Na terceira parte, então sairemos um pouco da cumbia em sua dimensão mais histórica e vamos dar um passeio à cumbia como fenômeno e gênero contemporâneo, passando pelas reprensagens da nova indústria do vinil, pelo interesse e divulgação crescente do produtor Quantic e seus diferentes projetos, pelo fenômeno da cumbia digital na Argentina da ZZK Records e além, bem como pelo interesse por ela no campo do Ethnohouse, entre outras coisas mais. Nesta primeira parte da trilogia sobre a cumbia, espécie de introdução ao tema para a qual contribuíram com informações importantes os amigos e DJs Maurício Fleury (Bixiga 70 & El Delírio/SP), Marcello MBGroove (Vinil é Arte/RJ) e Patrick Torquato (Baile Tropical/PE), deixamos algumas sugestões de repertório clássico compiladas por aquele que me parece ser um dos maiores conhecedores do assunto em solo nacional, o professor Maurício Cunha (Cumbia Libre, Fiesta Latina/RS).

A gozar!! A bailar la cumbia!!

Logo voltamos!!

Maurício Cunha – CUMBIA LIBRE / FIESTA LATINA by Maurício Cunha on Mixcloud

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06/04/2015

Stéfanis Caiaffo a.k.a. Dr. Caiaffo é residente da Festa VooDoo, em Porto Alegre, e da festa Bossa Negra, em Santos.
Stéfanis Caiaffo

Stéfanis Caiaffo