Na semana passada, indiquei o novo disco do Funkadelic e dois livros sobre a história do P-Funk. O disco em questão, lançado neste último dezembro, é o terceiro da discografia oficial da banda depois de transcorridos os 26 anos necessários para a resolução do mar de problemas pessoais e legais no qual George Clinton e a família P-Funk submergiram pós-1981. Este período de tempo, porém, não indica duas décadas e meia de ostracismo: a discografia de George continuou crescendo através de sua carreira solo, do lançamento de projetos como os P-Funk All-Stars e de seu trabalho como produtor. Ao pensar numa discografia básica do P-Funk, precisamos então olhar para a discografia oficial do combo Parliament-Funkadelic, para os álbuns lançados em sua carreira solo e para uma série de outros projetos que ele capitaneou. Precisamos olhar também para o campo das dissidências, fato importante na história do P-Funk pós-1977.
No auge do combo Parliament-Funkadelic, de meados ao final da década de 70, George mantinha um verdadeiro exército de músicos ao seu dispor. Ele chegou a ter mais de 40 músicos contratados, que trabalhavam regularmente em infinitas sessões no seu United Sounds Studios, muitas vezes hospedados numa espelunca que ficava do outro lado da rua justamente para não perder o foco no trabalho de gravação. Este exército, alimentado e muitas vezes pago com substâncias entorpecentes das mais diversas, criava compulsivamente para dar conta dos múltiplos e simultâneos contratos que o mentor assinava com diferentes companhias da indústria fonográfica de então, tática que – segundo ele – servia para deixar todos os gerentes trabalhando ativamente a seu favor. Estas infinitas e intermináveis sessões acabavam por gerar muito mais material do que poderia ser oficialmente lançado na época, seja como Parliament, seja como Funkadelic. Nesta grande fábrica de grooves, para dar vazão à densa produção, foram gestados projetos como Bootsy’s Rubber Band, Brides of Funkenstein, The Horny Horns e Parlet, assim como projetos especialmente dedicados à carreira solo de alguns dos principais músicos que ele mantinha por perto. Bootsy Collins ao longo dos anos também acabou por desenvolver uma densa carreira como produtor. Reza a lenda que ainda existem milhares de rolos de fita com jams e músicas inéditas gravadas nesta época e nunca tornadas públicas, mesmo que algumas venham sendo lançadas aos poucos ao longo de todos estes anos.
O trabalho de George como produtor é menos conhecido, mas importante e intenso, e foi uma das saídas do artista no período de problemas legais com os nomes Parliament e Funkadelic – aliás, diga-se de passagem, o trabalho dele como homem de estúdio é anterior à história do P-Funk, já que ele foi um dos primeiros músicos de background da própria Motown, quando ainda trabalhava no campo do Doo-Wop e do Rhythm & Blues e a companhia tinha seus escritórios no famoso estúdio Hitsville, em Detroit.
Para efeitos de apresentar uma discografia básica, tarefa nada fácil diante deste mar todo, vou manter o foco tão somente nos seus trabalhos inéditos, retirando todas as coletâneas e os inúmeros discos ao vivo que foram lançados em mais de 50 anos de carreira. Valem também as produções assinadas por ele – às vezes acompanhado por Bootsy – como parte legítima e importante desta história e também trabalhos importante lançados por dissidentes da família P-Funk. Acredito que a lista abaixo permite entender (e ouvir) esta história relativamente bem, mas é certo que muita coisa boa ficou de fora. Uma discografia básica não pretende ser uma enciclopédia do estilo e serve mais a um acesso rápido do que propriamente a uma pesquisa exaustiva e detalhada.
Os álbuns não estão listados por ordem de importância. Desfrutem!
1. Parliament – Mothership Connection (1975): é difícil fazer uma única indicação de álbum do Parliament em função da quantidade de bons discos lançados pela banda, ainda mais quando pelo menos um dos seus álbuns anteriores tem um de seus maiores sucessos até hoje – Up For the Down Stroke (1974) – e dois de seus álbuns posteriores tiveram hits que chegaram ao topo da parada de R&B dos Estados Unidos de então – Funkentelechy Vs. The Placebo Syndrome (1977) e Motor Booty Affair (1978). A escolha, então, tem dois motivos: o primeiro é porque o álbum marca a chegada de Fred Wesley e de Maceo Parker à trupe, dando início àquela que é considerada a melhor fase musical da família P-Funk; o segundo é porque o disco marca o início da saga afrofuturista que caracterizaria – e muito – a história e a identidade do Parliament. No geral, porém, se você gosta do gênero, arrume toda a discografia sem exceções.
2. Funkadelic – Maggot Brain (1971): de início, George Clinton dedicava ao nome Funkadelic as suas composições mais psicodélicas. De meados dos anos 70 em diante, as identidades de Parliament e Funkadelic ficam mais misturadas e assumem um formato mais palatável, acompanhando o interesse de George de tocar ambos os projetos no rádio. Este disco é o terceiro da história da banda e marca uma fase de psicodelia criativa, época em que George e os demais gravavam e mixavam os álbuns completamente loucos de ácido e em apenas um dia. Em 2012, a revista Rolling Stone arrolou o Maggot Brain em sua lista dos 500 melhores discos de todos os tempos. No geral, porém, vale aqui a mesma dica dada no tópico anterior: se você gosta do gênero, funkateer, arrume toda a discografia da banda sem exceções. Não há desculpa.
3. George Clinton – Computer Games (1982): apontado como o primeiro disco da trajetória solo de George, tecnicamente ele foi gravado com os mesmos músicos que vinham mantendo ativo o trabalho musical do combo Parliament-Funkadelic, exceção para as dissidências marcantes que já ocorriam. Dentre todos os álbuns lançados na carreira solo de George, a escolha recai sobre este também por dois motivos: primeiro porque, ainda que Bernie Worrell já viesse introduzindo elementos eletrônicos nos discos anteriores da família P-Funk, este álbum marca uma séria virada em sua carreira ao usar muitos sintetizadores, tendência que marcaria o Funk ao longo da década de 80; também porque “Atomic Dog”, segundo single do disco, foi direto para a primeira posição nos charts de R&B, desbancando ninguém menos que Michael Jackson e sua “Billie Jean” – hit máximo do álbum Thriller (1982), simplesmente o álbum que mais vendeu em toda a história da indústria fonográfica.
4. Bootsy’s Rubber Band – Bootsy? Player of the Year (1978): Bootsy deixou a banda de James Brown e encontrou na família P-Funk o lugar perfeito para ascender como estrela com brilho próprio. Seu personagem chegou a ser tão ou mais famoso que o próprio George Clinton e sua discografia oficial – fora todas as participações em álbum da família P-Funk – conta com mais de 20 álbuns lançados com seu próprio nome, com as diferentes formações da Rubber Band ou com a Sweat Band. Versátil, além de ter construído também uma carreira sólida como produtor, Bootsy chegou a participar também de projetos de Rock experimental e, pasmem, de Heavy Metal. Ainda vivo, hoje coordena um centro de formação de baixistas mundialmente conhecido. Além de trazer o primeiro single de Bootsy a atingir o topo dos charts de R&B, “Bootzilla”, o álbum como um todo também foi ao topo dos charts da Billboard, competindo cabeça a cabeça com Funkentelechy Vs. The Placebo Syndrome (1977) como o melhor disco de P-Funk do período.
5. Brides of Funkenstein – Never Buy Texas from a Cowboy (1979): este foi um dos projetos que George armou na segunda metade dos anos 70, aproveitando o pico de produção da família para dar voz feminina ao P-Funk. Este segundo álbum, trocando em miúdos, tem instrumentais do Parliament-Funkadelic, mas é cantado por Dawn Silva, Sheila Horne e Jeanette McGruder, segunda formação das Noivas. Além de ajudar a levantar a grande suspeita de que George levava uma vida poligâmica, coisa que muito lhe convinha como mito em construção, o disco também contribuiu muito na parte musical desta história: Never Buy Texas from a Cowboy foi arrolado pela Rolling Stone, em 2001, como um dos 50 álbuns mais bacanas de todos os tempos. Vale conferir.
6. Fred Wesley & The Horny Horns – A Blow for Me, A Toot for You (1977): insatisfeitos com os métodos de trabalho impostos por James Brown, Fred Wesley e Maceo Parker também migraram pra família P-Funk em 1975. Junto com Rick Gardner e Richard Griffifth formaram um dos naipes de sopros mais poderosos da história da música Funk. Aproveitando esta máquina de soprar, George idealizou a banda como um dos projetos paralelos e este é o primeiro de seus três álbuns. A jogada consistia em colocar o quarteto e sua metaleira pra tocar em cima de gravações já pré-existentes e, embora Fred sempre tenha desejado um álbum de inéditas numa pegada mais jazzística, isso nunca chegou a acontecer. Ademais, Fred e Maceo fazem parte da Grande Realeza da música negra universal. Pra quem gosta de Funk com metais, simplesmente fundamental. Atenção para versões de clássicos do repertório P-Funk.
7. Parlet – Pleasure Principle (1978): como aconteceu com as Brides of Funkenstein, a banda Parlet é mais uma tentativa de dar voz feminina ao P-Funk. Pleasure Principle é o primeiro de seus três álbuns e desta vez quem canta são as veteranas Mallia Franklin, Jeanette Washington e Debbie Wright, primeira formação de vocalistas femininas a acompanhar a trupe. O Parlet teve menos repercussão do que as Brides porque George investiu menos em sua carreira, provavelmente pelo fato de que elas não ajudavam a gerar nenhum mito ao seu redor numa época em que isso era extremamente bem-vindo. O Parlet, porém, também é Parliament-Funkadelic com vocais femininos e chegou a excursionar como atração de abertura em algumas das principais turnês organizadas por George.
8. Eddie Hazel – Game, Dame and Guitar Thangs (1977): primeiro álbum do mais fantástico guitarrista da família P-Funk, aquele que muitos veneram como o melhor guitarrista de todos os tempos ou – pelo menos – como o maior herdeiro da verve de Jimi Hendrix. Eddie foi uma das figuras mais centrais na história do P-Funk e o maior parceiro de George antes da chegada de Bootsy ao contexto. É um dos membros da família que mais tempo ficou ao seu lado, isso porque chegou à família antes do primeiro single de George, “(I Wanna) Testify”, ainda na época dos Parliaments – com “s” mesmo – e ali ficou até seu falecimento precoce. Inconfundível guitarrista, co-fundador do gênero P-Funk: procure tudo o que tiver o nome dele inscrito nos créditos para aulas de excelência groove nas seis cordas. Reza a lenda que o nome Funkadelic foi criado por ele.
9. Bernie Worrell – All the Woo in the World (1978): reza a lenda que Bernie aprendeu a tocar piano aos três anos e que compôs seu primeiro concerto aos oito. Assim como Eddie, é um dos mais antigos parceiros de George, tendo ajudado a cunhar o que viria a ser o P-Funk com seu trabalho de músico e compositor. Muitas da músicas do Parliament-Funkadelic são assinadas por ele. Também inscrito nesta história desde o tempo dos Parliaments com “s”, é outro dos membros longitudinais da família. É considerado o pioneiro no uso de sintetizadores no Funk, antecipando a tendência que tomou a cena de assalto ao longo dos anos 80 com seus baixos sintetizados. Também reza a lenda que o segundo MiniMoog produzido por Bob Moog foi dado a ele e dali ele tirou o som que caracterizaria tanto o que viemos a conhecer como Boogie. Os precursores da cena Techno de Detroit também apontam seus timbres como uma influência básica. São de sua co-autoria a maior parte das composições que atingiram o topo das paradas e viriam a tornar o Parliament-Funkadelic a banda mais sampleada da história da música. Não bastasse sua contribuição ao P-Funk, dos anos 80 em diante tocou ao vivo e/ou em estúdio com Talking Heads, Sly & Robbie e Fela Kuti.
10. Fuzzy Haskins – A Whole Nother Thang (1976): pra mostrar que nem só de amores viveu a família P-Funk, Fuzzy e este álbum marcam a primeira grande dissidência da história do grupo. A Whole Nother Thang é considerado o primeiro álbum de P-Funk lançado sem a produção de George Clinton e precipitou a saída de Fuzzy, Calvin Simon e Grady Thomas, três membros originais daquela primeira formação dos Parliaments com “s”. Fuzzy, nos seus álbuns subsequentes, viria inclusive a ironizar George nas letras, marcando muito bem uma dissidência permanente causada principalmente por divergências relativas a pagamentos e direitos de uso dos nomes. Fuzzy, Calvin e Grady chegaram a lançar o álbum Connections & Disconnections (1981) também como Funkadelic, abrindo uma batalha judicial que precipitou o hiato de 26 anos sem lançamentos oficiais com este nome. Vale a dica deste outro álbum também, um Funkadelic sem a varinha de condão de George – o disco também foi relançado em 1992 com o sugestivo nome de Who’s a Funkadelic?.
11. Quazar – Quazar (1978): outro álbum de dissidência, desta vez capitaneado por Glenn Goins, o vocalista responsável por toda a pegada gospel nos sons do Parliment-Funkadelic, aquele que chamava a nave de George durante a famosa Earth Tour. Glenn também deixou a família P-Funk na grande dissidência de 1977 por discordar das formas de gerenciamento de George, mas não teve tempo de entrar em batalhas públicas com o antigo parceiro. O álbum foi gravado e finalizado, mas Glenn faleceu precocemente logo após o trabalho de masterização e não viu seu lançamento oficial chegar à rua. Tanto a edição original da Arista quanto o relançamento feito pelo cultuado selo japonês P-Vine em 1991 são dificílimos de encontrar, e talvez este seja um dos álbuns mais raros da história do gênero P-Funk. Mais um motivo pra você correr atrás dele imediatamente, contanto que tenha uma pequena fortuna disponível no bolso.
12. Ruth Copeland – Self Portrait (1970): originalmente uma cantora de Blues e Folk music, Ruth Copeland teve uma virada em sua carreira ao casar com Jeffrey Bowen, um dos primeiros produtores da Motown, depois produtor de selos importantes como Invictus e Hot Wax. Self Portrait é seu álbum de estreia e foi gravado tendo o Parliament como banda de apoio na mesma época em que foi gravado o álbum Osmium (1970) – estreia de George Clinton e sua trupe em formato LP. De fato, então, o disco traz a primeira formação do Parliament, mas com os vocais de Ruth. Figura aqui como dica para acentuar tanto a estética da qual George e sua família partiram quanto para sublinhar este outro importante trabalho de estúdio que eles tiveram no alvorecer do Rhythm & Blues e da Soul Music nos Estados Unidos. Ruth também foi uma das primeiras cantoras brancas a lançar um álbum numa gravadora dedicada aos gêneros da música negra norte-americana, em si também um marco.
13. Red Hot Chilli Peppers – Freaky Styley (1985): produzido integralmente no United Sounds Studios por George Clinton e a banda, o álbum é considerado por muitos o disco mais próximo do Funk já lançado pelos californianos que viriam a ser uma das bandas mais famosas do mundo ao longo dos anos 90 e 00. George refere-se a eles, à época, como “um bando de garotos drogados de Los Angeles”, mas sua influência sobre a musicalidade que criaram pode ser sentida ao longo de toda a carreira posterior da banda, quando os Chilli Peppers ajudariam a redefinir a mistura de groove e rock já iniciada pelo P-Funk. Depois de um álbum de estreia sem muita repercussão, a banda rumou para Michigan para trabalhar e as histórias dão conta de crises de abstinência de heroína por parte de Anthony Kiedis e de montanhas de cocaína compartilhadas por George e os demais durante a festa permanente que embalou o mês que levaram em gravação e mixagem. O resultado você pode procurar facilmente: groove da melhor qualidade, marcando uma das primeiras grandes produções de George fora da família P-Funk.
14. Primal Scream – Give Out But Don’t Give Up (1994): outro álbum definidor na história da música pop que teve o dedo de George Clinton. Desta vez ele não assinou a produção de todo o disco, mas de algumas faixas – inclusive a faixa-título, um Funk lento e profundo que caberia em qualquer disco dele próprio. Ainda que o Primal Scream já tivesse uma carreira sólida quando a parceria se consumou, principalmente em função do fantástico Screamadelica (1991), o resultado do trabalho é simplesmente uma obra-prima. Incluo este álbum aqui também por questões afetivas: pra mim este é um dos melhores discos que já ouvi em vida e foi através dele, no hoje longínquo 1994, que pela primeira vez ouvi falar de George e sua trupe. O impacto disso na minha relação com a música foi monstruoso e reinaugural. A homenagem de Bobby Gillespie e sua turma ao P-Funk também vem com a fotografia de Eddie Hazel encartada na arte final do álbum. Get your rocks off, honey!
15. A décima quinta dica não é propriamente um disco, tampouco uma produção direta de George Clinton ou da família P-Funk. Quando o Parliament-Funkadelic fez seu último show com este nome em junho de 1981, nascia nos Estados Unidos o gênero que viria a se tornar a nova febre da música negra internacional, fato concreto até hoje. E o papel da família P-Funk na criação deste gênero foi fundamental: procure saber de onde saíram grande parte dos samples utilizados nos primeiros discos de grupos como De La Soul e Public Enemy e você logo vai ver que provavelmente o Hip-Hop seria outra coisa se George e os seus não tivessem passado os 20 anos precedentes forjando seu Funk tão espacial quanto especial. O proto-Rap – ou Slam – utilizado por George em muitos de seus discos, em si, também é uma das principais influências dos primeiros grandes nomes do Rap. Até mesmo a produção gráfica que Pedro Bell fazia para os discos do Funkadelic são influências apontadas por precursores como Afrika Bambaataa. A imagem é de 3 Feet High and Rising (1989), primeiro disco do De La Soul.
E era isso: certamente tem mais, mas agora é com você, funkateer!!
Se você quer curtir ainda um pouco mais o som desta história antes de fazer a sua própria busca pessoal, preparei outra playlist dedicada ao P-Funk, inclusas uma de suas principais influências – Jimi Hendrix –, trabalhos pré-P-Funk dos Parliaments e de Ruth Copeland e também músicas de alguns de seus fãs famosos – Primal Scream, Red Hot Chilli Peppers e Afrika Bambaataa.
Bom proveito!!