Neste mês de novembro damos início aos trabalhos da mais nova coluna da Revista Noize. Se você está aqui é porque, de alguma forma ou de outra, já descobriu como chegar no espaço que estará reservado para a .45 no site. Ter chegado até aqui, porém, não garante que você já saiba do que vamos tratar no que pretendemos seja a sucessão de artigos e entrevistas que vêm aí pela frente. Em nosso texto de estreia, então, nada mais justo do que uma breve explicação a título de boas-vindas.
O CAMINHO, A MÚSICA NEGRA UNIVERSAL
O termo black music, já há muitos anos empregado em muitos contextos de nossa cultura como sinalizador de certas opções musicais, acabou com o passar do tempo ficando muito dedicado a um universo bastante restrito de gêneros. Em grande medida, ao ouvirmos que tal artista, banda ou DJ trabalha com black music, a tendência é que pensemos em tipos marcantes – mas restritos – de sonoridade. No geral, o termo faz alusão a um período bastante recente na história da música nos Estados Unidos: é notadamente a soul music, o funk setentista, a disco e o rap, quando muito é também algo de seus correlatos produzidos em território nacional – black music virou algo entre James Brown e Tim Maia, entre George Clinton e Gérson King Combo, entre Kool & The Gang e Banda Black Rio, ou entre nomes como Public Enemy e Racionais MCs. Ainda há quem coloque os balanços de Jorge Ben no mesmo pote, mas parece ser bem mais normal que isso já tenha, em si, uma definição própria: alguns preferem chamar de sambalanço, outros preferem chamar de samba-rock. De fato, não há problema nenhum em associar quaisquer destes artistas ao conceito genérico de black music, afinal todos eles produziram ou ainda produzem a partir de uma matriz comum que descende fortemente do encontro entre a diáspora africana e o Ocidente – nos casos em específico, na chamada América e no nosso Brasil. O problema – se é que isso é um problema – é que a associação do termo black music tão somente a este conjunto de gêneros obscurece um pouco o fato de que a música de matriz negra é muito mais ampla do que a chamada black music tanto num sentido vertical quanto num sentido horizontal: é mais ampla ao longo da história e mais larga em cenários específicos.
Quem primeiro definiu o termo Música Negra Universal foi o carioca Marcello MBGroove, um dos membros do prestigiado coletivo Vinil é Arte. Quando perguntado sobre o foco de sua pesquisa em música, não hesita: diz que pesquisa a Música Negra Universal, ou seja, toda e qualquer música que venha diretamente da África ou ponha em diálogo direto a diáspora africana e seus aliados no Ocidente. A definição me parece muito preciosa porque consegue abarcar um número extremamente extenso de gêneros, pelo menos ao longo da história da música moderna e contemporânea, mas também no campo das manifestações que chamaríamos de étnicas. Além dos já citados, a Música Negra Universal dá espaço a gêneros anteriores à soul music e posteriores ao surgimento do rap, assim como amplia a abrangência do termo black music nas próprias épocas que a forjaram no interior dos Estados Unidos e do Brasil. Além disso, oferece-nos focos possíveis também em países da América Latina e Caribe, na própria Europa e, principalmente, na sempre esquecida África originária. A riqueza musical da África nos remete não somente ao hoje suficientemente conhecido afrobeat, mas também a ritmos anteriores como o highlife e posteriores como o kuduro e o azonto; na América Latina encontramos a presença negra, por exemplo, na cumbia e no candombe; no Caribe, além de ser presença marcante em todos os subgêneros da riquíssima história musical da Jamaica, há presença negra nos calypsos e socas de Trinidad e Tobago e em ritmos como o son cubano; nos Estados Unidos, a presença negra é marcante do blues e do gospel até gêneros contemporâneos como a house music; seria até demasiado dizer que a maior parte da música popular forjada no Brasil é fortemente marcada por esta presença também. Nesta diáspora ainda em curso, até mesmo gêneros criados nos subúrbios contemporâneos de Londres – como o jungle e o drum and bass – são marcadamente influenciados pela presença negra.
Eis que, sob este novo guarda-chuva, conseguimos falar da música negra sem tê-la amassada e restrita dentro daquilo que se convencionou chamar de black music. Se o universo é muito grande, tomemos como aparador o que talvez seja uma das suas características principais: sua força rítmica. A Música Negra Universal no remete aos rituais sanguíneos e no geral não foi feita para se ouvir sentado. Peço licença ao Marcello para utilizar este termo também e, além disso, convido todo mundo a acompanhar também o detalhado trabalho que ele desenvolve junto com os colegas do coletivo Vinil é Arte!
É da Música Negra Universal que falaremos aqui.
A CULTURA DO VINIL
Muito se fala hoje em dia de um tal retorno do vinil. Se é bem verdade que um interesse acentuado é novamente notado de alguns anos pra cá e que, internacionalmente, a produção e o consumo de discos vêm aumentando de forma exponencial, é bem mentira dizer que em algum momento ele morreu de todo. Se é fato que a indústria fonográfica tentou suplantá-lo com a promessa dos Compact Discs no início dos anos 90, e que muita gente se desfez de quase tudo (ou tudo) o que tinha na promessa de limpidez sonora e mais espaço livre, também é fato que ele sobreviveu a esta blitz ao longo de todos estes anos. Isso se deu graças a comunidades restritas: através de públicos de gêneros específicos, como os chamados metaleiros, dos DJs da cena eletrônica ou de migrantes nordestinos em busca de seus forrós originários. Assim, se manteve como uma alternativa real e desejada. Ainda que seu mercado tenha ficado mais mirrado até mesmo em centros cosmopolitas como São Paulo, é errado dizer que ele voltou: como pode retornar algo que nunca foi embora? Pelas mãos destes públicos específicos ou na idiossincrasia do colecionismo, muitos discos seguiram circulando por trás dos panos ao longo dos anos 90 e da primeira década dos 00, ainda que a produção de discos novos – isso sim – tenha caído vertiginosamente. Quem sumiu mesmo foi a fita cassette e juro que dou um doce para quem afirmar que um dia ela ainda vai voltar a funcionar para além do universo dos estúdios de gravação com plataformas analógicas.
Além disso, qualquer pesquisa básica na internet vai mostrar que as principais tendências de mercado hoje apontam principalmente para a indústria da música digital, essa sim em plena e vertiginosa ascensão. Ao passo que a venda de Compact Discs cai a ponto de já imaginarmos seu fim trágico, o que corre solto mesmo é tráfico de bits piratas e o comércio de música nos principais portais da internet. Uns e outros voltam a olhar pro disco de vinil com brilho nos olhos, sim, mas não se engane: ainda que, neste universo em específico, a curva de crescimento na produção e consumo de discos seja significativa, pelo menos desde o boom do Napster até hoje ainda é inabalável o império das .mp3. O que aconteceu com o disco de vinil, portanto, não foi o seu desaparecimento, mas seu desinvestimento por parte da indústria fonográfica, desinvestimento esse que foi acompanhado pelos padrões gerais de consumo em nossas sociedades, padrões em geral altamente influenciados pelas tendências que a própria indústria decide produzir. Daqui em diante, pouco se sabe; na minha opinião, o disco de vinil seguirá sendo o que é hoje, ou o que acabou se tornando ao longo destas últimas duas décadas: um objeto produzido e dedicado a um mercado minoritário que, por quaisquer razões que sejam, decide consumir música através de um bem durável. Não duvide que daqui a muito pouco tempo o vento mude de direção novamente e ele volte ao lugar que talvez seja mesmo o lugar de sua preferência: atrás dos panos.
Considero também um equívoco dizer que o vinil é melhor que qualquer outro formato existente, isso porque a qualidade de uma audição não depende exclusivamente da mídia na qual a informação vem impressa. Um bom vinil só vai soar bem num bom sistema de som, assim como um mau vinil não vai soar bem em lugar nenhum. Não só é um falso problema colocar a cultura do vinil nestes termos como é até mesmo uma arrogância. A cultura do disco está muito mais relacionada ao contato que podemos estabelecer com arquivos permanentes, isso porque um vinil bem cuidado pode durar mais do que seu próprio dono se não estiver sujeito a intempéries como umidade e calor. Além disso, a cultura do vinil está muito mais relacionada a quesitos que não dizem respeito necessariamente à qualidade da música impressa, mas à informação que ele compila como objeto completo: arte da capa, do selo e do encarte, informações técnicas de gravação e discriminação de autoria para as composições e letras, por exemplo, coisas que usualmente não vêm acopladas numa .mp3. Pessoalmente, acredito que estas características permitem uma relação menos fútil ou histérica com o consumo de música, mas isso é só uma opinião – possivelmente fútil e histérica também. Se é certo que um amante dos discos sempre vai achar seu som ou seu manuseio melhor do que o som dos outros formatos, ainda não inventaram e dificilmente vão inventar um iPod que os toque enquanto corremos no parque: tudo tem sua hora e vez. Pode-se também dizer que, desde certo ponto de vista, o vinil també é mais charmoso, mas charme é uma coisa que muda a cada estação: melhor desconsiderar.
Nossa coluna vai cruzar, então, as histórias da Música Negra Universal com a cultura minoritária do vinil. Você pode manter seu interesse tão somente em um destes pontos e estará tudo bem. Se você gosta da música e prefere os formatos digitais, ok. Se você gosta dos discos e prefere outros gêneros, ok também. Todo mundo é bem-vindo!
AGENDA GROOVE CULTURAL / NOVEMBRO:
08/11 – Red Bull Music Academy com Mad Professor, Bar Ocidente, Porto Alegre
08/11 – Show Wylmar Santos, Torto, Santos
15/11 – Festa Nervosa, Porão Pub, Campinas
18/11 – Show Keziah Jones, Bar Opinião, Porto Alegre
20/11 – Bossa Negra | Estreia, Corisco Mix, Santos
Feijão com Farofa – todas as quintas-feiras às 20 horas em minima.fm
Backups e mixtapes – mixcloud.com/caiaffo