Bem ou mal, queiram ou não, após 100 anos do acontecimento da Semana de Arte Moderna de 1922, os feitos de nomes como Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Villa-Lobos seguem sendo amplamente discutidos (mais discutidos, inclusive, do que na própria ocasião do evento) e gerando debate na vida cultural brasileira. A ressonância das questões ali levantadas durante um século inteiro já mostra, por si só, a força que o acontecimento tem entre nós, oferecendo mais “roteiros. roteiros. roteiros.” do que respostas. Centenária, a Semana de 22 ainda não perdeu a mão para sua verdadeira vocação: a provocação e a polêmica.
Isso porque, em um país como o Brasil, poucos anos distante da abolição da escravatura e com 71% da população analfabeta em 1920, era amplamente aceita a ideia de separação entre as artes chamadas populares e eruditas. Apesar de boa parte das obras mais importantes dos artistas que dela participaram terem sido criadas alguns anos após o evento, a Semana de 22 é um marco simbólico, que assume até mesmo uma dimensão mitológica (muitas vezes repassada de forma exagerada, acrítica ou simplificada), e registra uma virada de chave nas artes nacionais. A Semana é um acontecimento que emerge de um grupo da elite questionando justamente as práticas da arte produzida por essa pequena parte letrada da população.
Dois anos depois do evento, em seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil, o poeta Oswald de Andrade cita “a contribuição milionária de todos os erros”. Para esse pequeno grupo, a possibilidade de fazer arte original estava no abandono de paradigmas de produção nos moldes tradicionais (os acertos) e na abertura às inovações formais e influências internas, não oficiais (os erros). Neste sentido, não era formulada nenhuma novidade: há muito tempo as artes populares brasileiras já misturavam diversas linguagens vindas de diversas fontes. O surpreendente, ou sintomático, é que os modernistas tenham precisado entrar em contato com as vanguardas europeias para se dar conta disso.
Na música, o quadro não era diferente. Para a maior parte da população brasileira, o que sempre interessou foi a música popular. O choro, o maxixe, o samba, o fandango, a polca, a modinha e muitos outros ritmos e gêneros eram ouvidos, cantados, desenvolvidos e praticados Brasil afora, constituindo um vasto repertório de cancioneiro ramificado em diversas expressões espalhadas por todos os cantos do país. Já a música erudita era reservada a um pequeno grupo, ensinada nos conservatórios e apreciada nos teatros, salões e reuniões da “alta sociedade”. A Semana de 22 sacudiu também a música erudita praticada no Brasil, questionando suas doutrinas e tradições.
O grande representante da música na Semana de Arte, Heitor Villa-Lobos, foi expressão máxima dos ideais do modernismo brasileiro em suas composições. Vindo do Rio de Janeiro, o compositor, arranjador, orquestrador e maestro dominou a programação musical do evento durante seus três dias. Foi em meio ao ambiente rico em diversidade musical que um dos maiores artistas brasileiros do século XX desenvolveu sua linguagem. Villa-Lobos era um músico erudito autodidata. Em sua juventude, realizou viagens pelo interior do país, registrando as músicas que ouvia serem cantadas, e frequentava rodas de choro, onde conviveu com Pixinguinha, que, em entrevista, se referiu ao maestro como “um Debussy, um Stravinsky”.
Essa trajetória foi decisiva para sua obra. Villa-Lobos inseriu na música erudita elementos da música popular e de outras fontes nacionais. Mas não o fez de forma estereotipada, com a apropriação de elementos esvaziados para serem usados como puro adorno, mas sim enquanto pontos centrais na construção das músicas, refletindo em sua obra a complexidade sócio-cultural brasileira, dentro da qual estava inserido. Fez uso do choro, modinha, cantos indígenas, berceuses (cantos infantis), canções de macumba e diversos outros. Criou, assim, ganhos formais na orquestração, arranjo, harmonia e composição, inovando com combinações antes inexistentes na música erudita. No livro O que se ouviu e o que não se ouviu na Semana de 22, o maestro Lívio Tragtenberg se aprofunda no assunto. Enquanto alguns de seus contemporâneos compunham óperas, Heitor Villa-Lobos fazia as flautas imitarem passarinhos.
Ao longo dos anos, o compositor se consolidou enquanto um dos maiores nomes da música do século, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Sua obra é interpretada por artistas de todas as nacionalidades. Villa-Lobos foi uma das maiores referências de Tom Jobim, o maestro da bossa-nova, que declarou em diversas ocasiões sua relação íntima com a obra do modernista. Tom chegou a gravar “Modinha (Seresta n.5)”, composição de Villa-Lobos, e a influência é nítida em músicas como as do álbum Matita Perê (1973).
Outro participante da Semana de 22, Mário de Andrade, por sua vez, contribuiu com a música brasileira de forma diferente. Mais conhecido como poeta e prosador, o autor de Paulicéia Desvairada e Macunaíma também foi musicólogo e professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Em textos como Ensaio Sobre Música Brasileira (1928), Mário faz análises e projeções sobre a música popular e erudita que, ao longo dos anos, ganharam força e influenciaram uma série de artistas. No ensaio citado, por exemplo, o poeta dedica um capítulo inteiro aos ritmos sincopados, que diz serem “uma das constâncias” da música brasileira e ainda afirma que busca, com sua análise, “a destruição do preconceito da síncopa”.
O musicólogo modernista fez viagens de pesquisa pelo interior de diversas regiões do Brasil, realizando anotações das canções que ouvia pelas mais diversas comunidades. Mário de Andrade descreveu formalmente muitos ritmos pela primeira vez, além de ter registrado em partituras e fonogramas uma grande amostra do folclore e cancioneiro popular praticado no Brasil. Suas ideias pregavam a busca, dentro do meio erudito, por uma música com características marcadamente nacionais, com a mistura dos elementos já presentes no nosso cotidiano musical. Para Mário, um brasileiro tocando música francesa é “só mais um”, enquanto ao contribuir para a construção da música nacional se torna “benemérito e essencial”.
O ponto central levantado por Mário de Andrade e a Semana de Arte Moderna foi a questão da afirmação e busca por uma identidade cultural nacional. Na história da música brasileira e das artes nacionais de forma geral essa ideia se manteve presente, excedeu os limites do campo erudito e, em certa medida, está até hoje entre nós. O poeta Vinicius de Moraes, por exemplo, antes de sua valiosa contribuição na música popular, foi um artista da segunda geração do modernismo brasileiro e manteve um diálogo rico com Mário de Andrade, de quem era, de certa forma, discípulo. Tom Jobim, que já citamos enquanto vinculado à Villa-Lobos, também declarou a importância em sua obra dos pensamentos de Mário sobre a música. E, dito isso, não é preciso falar mais nada para passar a ideia de que o modernismo se fez presente na Bossa Nova.
Também a Tropicália foi diretamente influenciada por artistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Muito conhecido pela formulação do conceito da antropofagia, o poeta Oswald de Andrade exerceu grande impacto na produção de Caetano Veloso e Torquato Neto. “Só me interessa o que não é meu”, declarou o modernista em seu Manifesto Antropófago. A ideia de apropriação e reconfiguração de elementos nacionais e estrangeiros presente no modernismo de 22 e na antropofagia também está, como é de conhecimento geral, na obra dos tropicalistas. Torquato cita trechos do Manifesto em “Geléia Geral”, musicada por Gilberto Gil, quando declara “a alegria é a prova dos nove” (frase célebre de Oswald) e saúda “Pindorama, país do futuro”.
Por sua vez, Caetano musicou o poema “Escapulário”, em seu disco Jóia, e já declarou diversas vezes seu fascínio com a descoberta da obra oswaldiana, para a qual foi apresentado pelo poeta concreto e musicólogo Augusto de Campos. O compositor e ensaísta José Miguel Wisnik também musicou poemas de Oswald: partes do poema “Oração ao Mangue” foram usadas na música “Flores Horizontais”, presentes no álbum Do Cóccix Até o Pescoço, de Elza Soares. Já no disco A Mulher do Fim do Mundo, Elza canta “Coração do Mar”, poema de Oswald também musicado por Wisnik.
Passado um século, é natural que algumas posições articuladas na Semana de Arte sejam revisadas. As ideias referentes ao nacionalismo, por exemplo, hoje caminham em direções completamente diferentes das que caminhavam na época. É preciso questionar as propostas e as obras resultantes daquele momento de acordo com as necessidades sociais e culturais que estão postas nos dias de hoje. Entretanto, como demonstramos ao longo deste texto, é impossível simplesmente negar a importância deste evento na nossa história. De lá para cá, alguns dos artistas mais importantes da nossa cultura dialogaram, de uma forma ou de outra, com o modernismo brasileiro.
A Semana de 22, 100 anos depois, ainda soa nos nossos ouvidos.