As mulheres que criaram capas de discos icônicas

04/11/2024

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Por: Gabriela Amorim

Fotos: Fernando Tomaz/Divulgação

04/11/2024

A relação entre o som e a imagem pode ser traduzida de inumeráveis modos, dentre eles está a concepção da capa de uma obra musical. O apelo visual de um disco pode ser decisivo para destacá-lo nas prateleiras das lojas, mas os elementos gráficos, por si sós, também carregam uma dimensão artística que dialoga com a mensagem musical da obra. 

Neste mercado predominantemente marcado por homens, existiram inúmeros profissionais que projetavam capas de discos, como foi o caso do ilustrador Elifas Andreato (1946-2022), reconhecido como um dos grandes “capistas” da música brasileira. O mesmo apelido é dado ao fotógrafo Cafi (1950-2019), autor das fotografias que estampam mais de 300 capas da MPB. 

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A artista plástica Regina Vater surge neste cenário como uma pioneira, ecoando transformações quase que por acaso. No fim dos anos 1960, a carioca já havia realizado telas, aquarelas e poucos desenhos, seguindo uma tendência no circuito de arte da época. Nesse período, Vater rompeu com seus traços expressionistas, buscando uma nova linguagem plástica, com influência da Pop Art e forte ênfase na figura feminina. Essa sua fase foi nomeada pela artista de “Tropicália” (1968-1969), e não por acaso.

Foi com as gravuras desta série, expostas na Petite Galerie, importante galeria localizada na avenida Atlântica, no bairro de Copacabana, que Vater passou a conquistar novos espaços. “Parece que uma pessoa, do [grupo] MPB4, comprou o meu trabalho, e o [compositor, radialista e então executivo da gravadora Philips] Fernando Lobo acabou tendo contato com as minhas peças. Não tenho a menor ideia de como isso ocorreu, mas ele acabou me chamando na Philips e me propôs fazer a capa de um suposto disco, que fosse parecida com os meus desenhos”. 

Adriana Maciel/Divulgação

Sem saber para quem seria a capa, e nem tendo escutado o fonograma, Vater fez a peça, em proporções maiores que a de um disco, e entregou para Lobo. Um tempo depois, questionando sobre a história da capa, Vater veio a descobrir que a sua arte fora recusada e que seu trabalho seria para o histórico disco Tropicália ou Panis et Circencis (1968), de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé. No lugar da arte de Regina, foi produzida a fotografia icônica e a capa que conhecemos, feita por Rubens Gerchman.   

“Não foi só esse trabalho gráfico que eu perdi para um homem. Eu acho que a minha geração teve que cavar pedra. O empresário do grupo, Guilherme Araújo, optou por usar algo que pudesse exibir uma foto dos integrantes daquele movimento musical. Depois, eu vi essa capa [a que foi recusada] emoldurada na Philips. Infelizmente, não sei por onde anda esse desenho”, reitera Vater. Ao lado do artista recifense Bruno Faria, a artista refez esta obra, em 2017, buscando reproduzir sua proposta para a capa. A imagem, chamada de “Versão Oficial”, foi exposta no MAC Niterói ao lado de um toca-discos reproduzindo o disco Tropicália (1968).

Tempos depois, Regina envolveu-se em nova polêmica, com outro disco icônico: Calabar (1973), de Chico Buarque. A convite de Fernando Peixoto (1937-2012), diretor da peça Calabar: o Elogio da Traição, ela recebeu uma versão do disco com a trilha sonora da peça, escrita por Chico e pelo cineasta Ruy Guerra, e concebeu seu projeto gráfico. Com fotografia de Gianfranco, a capa do LP apresentava uma pichação escrita “Calabar”, realizada por Vater, em letras garrafais, com tinta branca em um muro deteriorado, no bairro do Bixiga, em São Paulo.

Já a parte interna da capa dupla apresentava uma fotografia de Sérgio da Matta, retratando um piquenique no meio de uma rua. Realizada em um domingo de manhã, sob ideia de Vater, a imagem mostra um grupo de pessoas reunidas, em um clima de harmonia, que contrastava com o período mais opressivo da Ditadura Militar, o regime de Emílio Garrastazu Médici. “Aquele piquenique é a imagem da alienação da classe média, que estava muito satisfeita com a Ditadura no país. Existia quase um complô da classe média com a Ditadura, que achava que as coisas estavam todas seguindo uma certa ordem”. 

A peça e o disco acabaram sendo considerados marcos da censura do Brasil. Na época, as pichações eram conhecidas como um meio de protesto à Ditadura Militar, e as cópias originais de Calabar foram retiradas das lojas logo após o seu lançamento. “Fiquei sabendo enquanto estava em Nova York. A peça acabou saindo, mas a capa dupla saiu prejudicada. Na minha opinião, a censura se deu muito pela pichação, que era algo proibido”, afirma Regina. No mesmo ano, o disco foi reeditado com o nome genérico Chico Canta, lançado com uma capa branca lisa que trazia apenas o nome do artista. Somente nas reedições posteriores, a partir de 2010, em CD e LP, a arte da capa original foi restaurada. 

Ao longo dos anos, mais mulheres foram assumindo esse papel de capista. Nome importante da cena paulistana contemporânea, a designer Maria Cau Levy é uma delas. Ela já trabalhou com Luiza Lian, Tim Bernardes, Mariá Portugal, Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, O Terno, dentre outros, e possui um vasto repertório desde 2015, ano em que fez a capa do primeiro disco solo de Lian. “Por ser arquiteta, tenho muito a pira da materialidade, então sempre fui muito pro impresso. Mesmo quando meus amigos não me chamam para a arte do disco, eles me ligam pra perguntar sobre gráficas. Fui autodidata, então sempre me virei, mesmo com baixo orçamento”.

Biel Basile/Divulgação

“Cada processo é um processo, é uma relação”, diz: “Mas eu gosto muito de escutar o disco e ver as minhas percepções. Gosto de saber qual é a cor do som, os timbres, como foi feita a produção. Tudo isso traz dados que, quando a pessoa vê a capa, aguça percepções. Também gosto de pensar que a capa do disco é uma paisagem. Ela constrói o imaginário tangente do universo, porque cada álbum é um universo, que envolve muita coisa além da capa”.

Outro exemplo é o de Tereza Bettinardi, que foi laureada na categoria “Projeto Visual” do 27º Prêmio da Música Brasileira pelo álbum Dancê (2015), de Tulipa Ruiz. “Eu penso na cor com um pouco de restrição, gosto de tentar extrair o máximo de cores com o mínimo. Foi assim com o Dancê, porque ele tem o rosa, o amarelo, o roxo e o preto. Foi um jeito de não onerar na gráfica, mas que a gente conseguisse criar um impacto A cor rosa veio por essa vibração, porque o disco tem essa energia”, explica Tereza.

Os desenhos da capa e do encarte de Dancê já estavam prontos, feitos pela própria Tulipa. Idealizando a intenção de dar movimento à capa, Tereza usou a técnica de animação chamada Ombro-Cinema. No caso, o álbum inclui uma luva plástica móvel sobre a capa, que dá a ilusão de deslocamento da imagem quando posta em movimento.

Seu trabalho da artista com Ruiz frutificou, gerando outras quatro capas: a do disco Tu (2017), a do compacto Tulipa Donato (2019), a do single “Samaúma” (2022), e a do álbum Habilidades Extraordinárias (2022). Quatro anos atrás, a designer também trabalhou ao lado de Hermeto Pascoal no disco Hermeto Pascoal e sua Visão Original do Forró (2018), onde a capa conta com um desenho, de 1996, do próprio Hermeto. Multicolorido e com detalhes do mundo da música universal, o encarte do CD se torna um pôster da obra, assinado pelo multi-instrumentista alagoano. 

Nino Andres Biasizzo / Divulgação

Bettinardi também apresenta uma bagagem com capas de livros; As 29 Poetas Hoje (2020), de Heloísa Buarque de Hollanda, e O Profeta (2021), de Khalil Gibran, são alguns de seus trabalhos mais recentes. Ela afirma que é diferente a relação de contribuir para a capa de disco e para a de um livro: “A capa do disco está muito ligada à obra, é indissociável ao momento, sendo quase uma fotografia, porque também é o manifesto do artista. Por exemplo, não é comum redesenhar uma capa de disco, diferentemente de uma capa de livro, que muda conforme a editora”. 

Quem também produz capas para obras musicais e literárias é a paulistana Giovanna Cianelli. Outra profissional que se destaca no design nacional, ela começou primeiro com as capas de livros: “Muitas das capas de livro que eu já fiz foram inspiradas em discos. Então, era um caminho que eu já tinha costume de fazer, como uma pesquisa, e acredito que fazer capa de livro me treinou muito para enxergar o potencial de uma capa”. 

Juliana Frug / Divulgação

“São vários fatores que influenciam um capa, mas acho que tem uma coisa no meu trabalho que é a força. Eu não gosto de ser insossa, e isso pode agradar, ou não”, comenta a designer e ilustradora  responsável pelas capas do disco De Primeira (2021), de Marina Sena, pelo qual venceu o 28º Prêmio Multishow, na categoria “Capa do Ano”, e do single “Boys Don’t Cry” (2022), de Anitta.

Frequentando sebos de discos desde sua adolescência, e tendo o vinil presente em sua vida, através da coleção do pai, Cianelli tem um vasto repertório gráfico na mente. “Sempre tento achar uma coisa diferente que converse com a linguagem atual, tento trazer referências antigas, mas misturando com coisas contemporâneas. Em tipografia, me sinto muito à vontade para desenhar as letras, e faço uma pesquisa de desenhos de letras e composição tipográfica em catálogos de fontes antigas. Eu crio essa biblioteca de elementos, e esse tem sido um pouco do meu caminho, tentar fazer minha biblioteca, a pesquisa, e depois a composição”.

Acompanhada do diretor criativo Marcelo Jarosz em todos os seus projetos de capas de discos, Cianelli se conectou ainda à pernambucana Duda Beat: “Fiz o single de ‘Dar Uma Deitchada’, no qual fizemos um rótulo de vinil, também muito inspirado nessa memória visual, e agora o Te Amo Lá Fora (2021), onde desenvolvemos o vinil. Foi muito interessante porque a Duda já tinha esse imaginário rico, que eu amava, e poder contribuir graficamente foi um prazer imenso. Fiquei com a sensação de que se eu encontrasse aquele disco numa loja, eu ia ficar interessada”, finalizou.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 124 da revista NOIZE, lançada com o vinil Habilidades Extraordinarias, de Tulipa Ruiz, em 2022. 

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