Como vocalista e guitarrista do trio The Baggios, o artista sergipano Julico vem mostrando há duas décadas como o blues elétrico conversa tão bem com a lisergia do acid rock quanto com elementos melódicos e rítmicos da musicalidade nordestina. Com cinco discos de estúdio, além dos vários outros lançamentos, incluindo álbuns ao vivo, EPs e singles, a banda acaba de finalizar a primeira parte da turnê “The Baggios – 20 Anos“, e foi a partir dela que o trabalho solo de Julico veio tomando corpo.
“A The Baggios é regida pelas guitarras na maior parte das obras. Mas depois de 20 anos de história, a gente foi juntando um leque muito maior de possibilidades sonoras, com referencias desde Alceu Valença a Som Nosso de Cada Dia, de Muddy Waters a Bombino, Altin Gun e Fela Kuti. Flertamos com rock progressivo, afrobeat, trouxemos mais elementos afro-brasileiros pra nossa música. A Baggios é minha escola na música há 20 anos, foi nessa banda que apliquei cada descoberta sonora da minha vida”, explica Julico.
“Meu trabalho solo já é uma consequência da The Baggios. Surgiu da necessidade de eu ter um outro meio de lançar músicas que não couberam na banda e consequentemente eu quis que não soasse parecido”. A primeira experiência solo veio no disco Ikê Maré (2020). “Inicialmente, quando estava projetando meu primeiro álbum solo, em 2019/2020, eu via como um trabalho mais segmentado, com canções na linha da música popular brasileira nos anos 1970 e soul music”, lembra o artista.
Julico acrescenta que, no final, o resultado do disco de estreia solo não se afastou tanto da guitarra, diferentemente do seu segundo trabalho. “Em Onirikum (2023), eu consegui melhor formatar aquela ideia inicial de ter mais musica brasileira e soul. Usei mais violões, de alguma maneira a guitarra não é mais tão protagonista quanto no disco anterior”.
Onirikum, assim como os seus outros álbuns, ganhou uma versão especial em vinil, consagrando o trabalho como um objeto que reproduz som, mas que também é extramusical. “A Baggios lança tudo em vinil desde 2013. O vinil, pra mim, é a forma mais completa de consumir música mais a fundo. Aquela ideia de realmente parar para ouvir um álbum, ler letras, apreciar a concepção gráfica que tem ligação direta com o conteúdo sonoro ali é mágica, é real. Passei a pesquisar sobre equipamentos, agulhas, amplificadores e isso deu ainda mais razão de ter nossos lançamentos em vinil. Todo esse ritual é enriquecedor. É uma relação verdadeira entre a música e o ouvinte, uma imersão massa. É uma outra forma de consumir música”.
Julico conta que a paixão pelo mundo do vinil extrapolou a sua relação de ouvinte e de músico: hoje, ele é também o responsável pelo selo e loja online Limaia Discos. “Tomei tanto gosto pela coisa que criei o selo, e se tornou também uma loja online especializada no formato. Inicialmente seria pra lançar meu álbum solo, mas fui conhecendo outros selos e trazendo outros discos para a loja online. Hoje, depois de três anos, temos um acervo com média de 500 títulos nacionais e importados em estoque. Como selo, lançamos, além dos meus trabalhos, a Mopho, em parceria com o selo Psico Br, Seu Pereira e Coletivo 401, Guilherme Held com Corpo Nós, o Fome de Tudo, da Nação Zumbi, em parceria com a Polysom, e tem mais dois títulos pra sair esse ano”.
Sendo assim, pedimos a Julico apresentar cada faixa do seu mais recente vinil autoral, Onirikum. Confira a seguir.
Onirikum Faixa a Faixa
Lado A
Then Pain May Become Tracks
A música para mim sempre foi uma forma de cura, uma forma de exorcizar alguns sentimentos e traumas, é onde eu consigo me expressar com mais profundidade, e a letra dessa faixa é uma síntese disso tudo pra mim. Nos últimos anos descobri mais nomes do hip hop nacional e internacional, e de alguma maneira me influenciei pela forma deles produzirem as batidas, acho massa os recortes dos grooves e as ideias geniais dos samples que os produtores desenrolam. Essa faixa aqui considero uma das mais diferentonas que compus ultimamente justamente porque sai de um lugar comum atrás de novas referências.
Mon Amour
Escrevi a estrutura e melodia dessa música numa tarde bonita quando estava na Chapada Diamantina em 2020. Estava ouvindo muito o primeiro álbum do Arthur Verocai, e linhas de sons similares, como o “Missa Breve” do Edu Lobo, esses álbuns me tocam profundamente e quis de alguma maneira transformar as sensações que essas obras me provocaram numa música minha. Tava buscando algo mais melódico, leve, mas sem deixar de lado umas guitarras com fuzz em alguns momentos.
Estava apaixonado naquele período, geralmente eu escrevo pouco sobre meus relacionamentos, mas tava num momento massa com minha companheira na época, e essa música ficava reverberando no meu dia a dia, e a letra foi aparecendo no decorrer das semanas seguintes. Falo como nunca falei sobre estar muito envolvido com outra pessoa, reconhecendo a força da paixão e projetando um futuro massa para os dois . Quando lancei o álbum eu já não estava mais junto com ela, mas foi muito massa enquanto durou, e tenho muito carinho por essa música, pois ficou registrado um momento massa da minha vida.
Onirikum
Quando pensava num projeto paralelo a The Baggios, eu projetava um disco mais leve, com violões, algo mais cancioneiro, mas acaba que minhas guitarras sempre estão por perto e me sinto seduzido por elas (risos). Quando escuto essa música hoje, sempre penso no lado da música brasileira que o colecionismo do vinil me apresentou, como Joyce, Baden Powell, Ivan Lins, Beto Guedes, João Gilberto e coisas do tipo. Bebi um pouco da fonte da bossa, e fiz uma leitura do meu jeito dessa linha de som sem me perder demais na nostalgia; acredito haver até um pouco da influência de rock progressivo nessa faixa. Eu canto “Revivo histórias que marcam as minhas raízes”, isso está ligado a sonhos que tenho frequentemente, em que me vejo na casa que cresci e vivi até meus 20 anos, em São Cristóvão, interior de Sergipe. Eu me sinto bem com essas lembranças vivas que os sonhos me trazem, do quintal que vivia livremente comendo frutas, das pessoas que já partiram deste plano e reaparecem para me dar um abraço; sempre me emociono quando isso acontece.
Música
É minha declaração de amor à música e à arte como um todo. Me dedico tocando guitarra, compondo, fazendo shows, dirigindo clipes, bolando cartazes e capas de discos desde 2001, são 23 anos vivendo um sonho que começou quando eu tinha apenas 15 anos, e é louco pensar que cheguei até aqui com vários álbuns lançados e turnês pelo mundo. Aqui falo o quanto sou grato a tudo que a música me proporcionou. Uma vez li numa parede “A música salva” e eu acredito bem nisso. Sou muito apaixonado por soul music e funk; fui a fundo nessa faixa explorando essas referências sonoras. Naturalmente lembrei dos meus ídolos Tim Maia, Hyldon, Cassiano, Tony Bizarro, Helio Matheus.
Motivo de Saudade
Nesta, divido a voz com a minha amiga paulista Fernanda Broggi e tem as flautas do conterrâneo Mário Augusto, que mandou muito bem nos improvisos. Queria uma música sem guitarras, apenas com o violão de nylon, como fazia o Jorge Ben, Paulo Diniz, Antonio Carlos e Jocafi. Sempre compus com violão de nylon, aquele velhinho da Giannini, que carrego pra onde vou, mas nunca tinha assumido uma música tocando apenas nele como o instrumento base que guia a música inteira. Nessa faixa tocou também o Ravy Bezerra, que faz bateria em quase todas as músicas, assim como Leo Airplane nas teclas (ele também foi quem mixou e masterizou o álbum).
Vou Ver Da Qualé
Essa faixa surgiu num experimento com loops de bateria no meu home studio e testando riffs de guitarras, de vez em quando me pego nesse processo para buscar novos caminhos. Criei algumas ideias de baixo a partir dos grooves e depois fui adicionando camadas de teclas e uma guitarra mais minimalista. Inicialmente era pra ser uma vinheta instrumental mais curta, mas no processo eu vi que caberia um texto e experimentei interpretar umas palavras em cima dessa base que traz referências do hip hop.
Cerjevoim
Aqui em Sergipe tem um costume de comer amendoim cozido, igual o daqui não tem em outro lugar! Pra você ter uma ideia, o amendoim cozido é considerado patrimônio imaterial de Sergipe, eu sou viciado (risos). É costume ir até um barzinho na praia com a brodagem pra tomar uma cerveja acompanhado de amendoim cozido pra falar sobre a vida e jogar conversa fora, chega a ser terapêutico. Quis fazer um som mais solar, mais dançante falando desse costume pra ajudar a captar essa atmosfera nordestina praêra e animada.
Lado B
Quero Colo
Dois grandes compositores e instrumentistas que escutei muito nos últimos três anos foram João Donato e Marcos Valle, sem dúvidas eles foram inspirações nessa música, que tenta trazer um pouco desse swing das teclas que só eles têm. Aqui é mais uma faixa em que não uso guitarra, apenas o violão de nylon, que aparece um pouco mais tímido. Nela eu arranjei um naipe de metais, toco baixo, meu amigo Thiago Babalu gravou bateria direto de São Paulo e Leo Airplane mandou brasa no Rhodes.
Fazbemblues
O blues sempre foi e sempre será minha base na guitarra, não poderia deixar de ter um blues nesse álbum, já tava com saudade de improvisar em cima de uma base blues. A ideia dela é uma espécie de blues mântrico, mantendo um tom só, sem progressão de notas e vou pondo camadas, dando mais corpo com novos elementos a cada parte da música. Me inspirei muito na forma de tocar guitarra do R.L. Burnside e Junior Kimbrough, é uma forma minimalista e dançante de fazer blues.
A Bad Domenica
Escrevi quando fazia parte da banda de rock psicodélico Plástico Lunar, em 2010. Toquei com eles durante quatro anos, mas essa música foi tocada poucas vezes ao vivo e nunca tínhamos gravado em álbum. Há alguns anos eu a redescobri e vi que se encaixava muito nesse projeto, que tava precisando de algo mais pesado com influências do rock e funk. Piro no Hendrix e no Funkadelic desde a minha adolescência e naturalmente me vejo bebendo nessa fonte a cada trabalho que faço.
Banho de Sal Grosso
Não queria deixar de pôr minha poesia nordestina, esse o tipo de música que mais tenho facilidade de escrita e que consumo o ano todo. Arnaud Rodrigues me inspira muito até hoje, ele teve uma parcela de culpa nas ideias que tive para os coros, na presença da viola, e até mesmo nas guitarras com fuzz contrastando com o groove do baião. A minha escrita nessa faixa vem da influência do repente, tenho escutado muito repentistas, acho eles sofisticados – o Oliveira de Panelas é sensacional! Vejo o baião como um elemento fundamental da música na música popular brasileira, principalmente ali nos anos 70, é fácil achar discos de intérpretes, compositores, de bandas de rock e jazz do Sul e Sudeste trazendo essas referências genuinamente nordestinas. Minha primeira escola dessas fusões sonoras foi o Raul Seixas e Zé Ramalho, mas aí depois a Cátia de França me pegou em cheio e mais recentemente descobri um álbum fantástico do Eduardo Araújo e Silvinha chamado “Sou Filho Desse Chão” que me fez olhar novamente com mais ênfase a essa mistura, assim também como o álbum do Téo Azevedo de 1974.
Funkão
Como o título já denuncia, essa é total funk setentão com direito a naipe de metais, clavinete, guitarras fuzz e samples da voz de James Brown. Música pra dançar com calça boca de sino, camisa estampada e um par de botas com salto.
Trem Veio
Eu cresci numa cidade interiorana que tinha uma estação de trem massa que era perto dos campinhos onde jogava bola e soltava pipa. Me encantava ver os trens passando por lá, vez ou outra eu “pungava” neles e saia de um bairro para outro nas aventuras, mas quando eu descia ficava imaginando até onde o trem conseguiria me levar. Nessa música eu sigo essa viagem adiante com algumas analogias dentro de uma canção mais folk lisérgica, onde valorizo os trabalhos das vozes (culpa do Sá, Rodrix e Guarabyra) e vesti a música com sua roupa mais simples, violão, texturas e uma percussão minimalista.