Esta matéria foi publicada originalmente na edição 100 da revista NOIZE impressa, lançada com o vinil de Gil Baiana Ao Vivo em Salvador, de Gilberto Gil e BaianaSystem, em 2020.
“O reggae… O que é o reggae?”, pergunta Gilberto Gil. Após uma carreira de seis décadas e tendo protagonizado episódios históricos na trajetória do gênero no Brasil, se alguém pode responder o que é o reggae, esse alguém é Gil. E ele responde: “É uma manifestação da condição equatorial tropical, essa faixa quente do planeta. Américas e África. O que é a Jamaica? Um povo, uma cultura feitos com misturas vindas da África e dos ameríndios. Passa o tempo, vem o reggae”.
Mas foi longe do calor dos trópicos que Gil conheceu o som jamaicano. Seu primeiro contato foi durante o exílio com Caetano Veloso em Londres, entre 1969 e 1972. “Quando morava em Porto Bello, tinha várias manifestações da West Indian Culture lá, a cultura do Caribe, da Jamaica, da América Central”, lembra Gil: “E tinha um restaurante perto de casa chamado Mangrove, ali que eu ouvi. ‘Walk down Porto Bello Road through the sound of reggae, I’m alive’”, conta emendando a letra de “Nine Out of Ten”.
Essa faixa, que Caetano lançou no Transa (1972), ainda que sonoramente não reproduza de fato o ritmo jamaicano, é um documento da primeira menção ao reggae na música brasileira. “Tem a música de Caetano, né? Eu, ele e todos que estavam conosco em Londres recebemos o impacto dessa identidade própria da Jamaica e pertencente a nós todos. O reggae já era uma coisa fantástica, formidável”, diz Gil.
Tudo vai dar pé
Ainda que já admirasse a novidade jamaicana, Gilberto Gil precisava absorver uma enxurrada de outras influências na Inglaterra, mais ligadas ao jazz e ao rock psicodélico. Essas referências somaram-se à herança da música nordestina, do samba, da bossa, do folclore brasileiro e são mais ou menos esses ingredientes que seus discos misturam até meados dos anos 1970.
Porém, de volta ao Brasil, Gil reencontrou o reggae e foi justo na cidade conhecida como a “Jamaica brasileira”. “Em São Luís do Maranhão, ouvi uma gravação em uma barraca de praia. Era o Jimmy Cliff cantando ‘No Woman, No Cry’”, lembra. Cliff lançou em 1975 essa versão, mesmo ano em que Gil fez Refazenda. Conforme Gil revelou em 2011 em entrevista ao programa “Reggae de Bamba”, da rádio Cultura Brasil, a música “Norte da Saudade” foi escrita durante a turnê desse disco e essa foi sua primeira composição com intenção de ser um reggae.
No dia 7 de julho de 1976, Gil foi preso com uma quantidade ínfima de maconha em Florianópolis (SC). Após um julgamento draconiano em que foi descrito como um “criminoso” que estava “portando a erva maldita” e no qual explicou em juízo que a planta “o auxiliava sensivelmente na introspecção mística”, Gil foi encaminhado ao Instituto Psiquiátrico São José, próximo à capital catarinense, onde permaneceu até o dia 20. Nesse período, compôs “Sandra”, cujo arranjo carrega uma notória inspiração jamaicana.
Assim como “Norte da Saudade”, “Sandra” saiu no álbum seguinte, Refavela (1977), o primeiro que Gil considera apresentar uma referência direta da Jamaica. É interessante notar que ambas faixas trazem elementos do reggae, mas misturados a tantos ingredientes rítmicos e melódicos que as músicas entram em uma zona cinzenta de difícil classificação. Essa característica antropofágica e miscigenadora está presente em toda obra de Gil e os momentos em que ele se alinha a um gênero musical específico são pontuais.
Jards Macalé – que também estava em Londres com Gil – soltou também em 1977 “Negra Melodia”, com um ritmo próximo ao do reggae e citando a letra de “Them Belly Full”, de Bob Marley. Já em 1978, Baby Consuelo lançou o reggae “Sonho Alegre”, indicando que a música jamaicana estava chegando aqui. Também em 1978, Gilberto Gil foi aos EUA gravar Nightingale, disco voltado para o mercado internacional. Nele, está presente seu primeiro reggae indiscutível, “Goodbye My Girl”, que nada mais é do que uma versão em inglês de “Norte da Saudade”. Porém, na época, essa faixa não saiu aqui. “O álbum podia sair em todos os países do mundo, menos no Brasil”, explica Gil em texto publicado no encarte da Caixa Palco.
Nightingale foi divulgado com uma turnê nos EUA em 1979, mas antes disso, Gil voltou e, no Rio de Janeiro, reuniu Sérgio Dias e Liminha (d’Os Mutantes), o maestro e tecladista Lincoln Olivetti e gravou “Não Chore Mais”. Sua adaptação de “No Woman, No Cry” saiu em um compacto em maio e estourou: o disco vendeu 750 mil cópias e tornou-se o maior hit de Gil. “Foi talvez o primeiro grande sucesso de reggae brasileiro”, lembra Gil.
– Eu pensava na transposição de uma cena jamaicana para uma cena brasileira a mais similar possível nos aspectos físico, urbano e cultural. Emblemática do desejo de autonomia e originalidade das comunidades alternativas, “No Woman, No Cry” retratava o convívio diário de rastafaris no ‘government yard’ (área governamental) em Trenchtown, e a perseguição policial, provavelmente ligada à questão da droga (maconha), que eles sofriam. Esta situação eu quis transportar para o parque do Aterro, no Rio de Janeiro, também um parque público, onde localizei policiais em vigília e hippies em rodinhas, tocando violão e puxando fumo, como eu costumava vê-los de noite na cidade. Coincidindo com o momento em que a abertura política estava começando, “Não Chore Mais” acabou por se referir a todo um período de repressão no Brasil – comenta Gil em texto publicado no seu site.
Onde a gente escorregue
O disco seguinte, Realce (1979), saiu em agosto contendo a faixa “Não Chore Mais”, que seguia estourada. No mesmo ano, Raul Seixas lançou “Ide A Mim Dada”, Chico Buarque apresentou “Hino de Duran” e Baby Consuelo fez “É Amor”, sua versão de “Is This Love, de Bob Marley. Oficialmente, o reggae havia chegado à música brasileira. “Quando o Brasil ouviu o reggae, se identificou. A condição geminada das culturas ficou muito evidente, nos identificamos naturalmente por causa dessa condição de povo tropical moderno”, comenta Gil.
A virada da década é um momento-chave para entender a influência da música da Jamaica aqui. Além de grandes artistas estarem se associando ao estilo, em março de 1980, Bob Marley veio ao Brasil para um evento da gravadora Ariola. Em abril, Peter Tosh tocou no 2º Festival Internacional de Jazz, em São Paulo, e aproveitou para participar da novela Água Viva, da TV Globo, tocando “Bush Doctor”. Em maio, foi a vez de Jimmy Cliff retornar ao Brasil.
Cliff havia representando a Jamaica no 3º Festival Internacional da Canção em 1968 e, na época, gravou Jimmy Cliff In Brazil, disco que passeia pelo soul, samba, bossa. Quando voltou, Cliff já era uma estrela mundial. “Quando chegou aqui, em 1980, tinha umas 20 mil pessoas no aeroporto esperando ele. No show que fez no [estádio da] Fonte Nova [em Salvador], tinha 70, 80 mil pessoas”, conta Gil, que abriu esse e os outros shows que Cliff fez na ocasião. Nessa turnê, eles faziam um dueto cantando “No Woman, No Cry”.
A chegada dos anos 80 marcou também o início da parceria de Gil com Liminha, que produziu uma longa série de álbuns. O primeiro deles, Luar (1981), não traz nenhum reggae, mas o seguinte, Um Banda Um (1982), lança uma nova gravação de “Esotérico”, lançada em 1976 no disco homônimo do Doces Bárbaros, e agora arranjada no ritmo jamaicano. Já o próximo, Extra (1983), traz na faixa-título um dos reggaes mais emblemáticos de Gil.
“Depois do Liminha muda tudo, já vira mais reggae”, comenta Beto Barreto, do BaianaSystem, especialista na obra de Gil: “Eles ficaram desde a década de 80 trabalhando nesse universo e é um momento de mudança no reggae, com o reggae digital, e a galera começando a ter acesso a essas coisas. Liminha saca isso, ele é baixista e fazia programação [eletrônica]. É muito difícil fazer isso com o reggae e eles fizeram nos discos de Gil”.
Após Extra, vem Raça Humana (1984), cuja faixa-título é outro reggae pesadíssimo. Mas, além disso, o álbum se destaca porque motivou a primeira ida de Gil à Jamaica. É nele que está “Vamos Fugir”, que foi gravada no Tuff Gong, o estúdio instalado na casa de Bob Marley, em Kingston, onde hoje fica o The Bob Marley Museum. Essas gravações foram algumas das últimas realizadas no Tuff Gong original antes de o estúdio ser transferido para outro endereço. Nelas, está presente a banda de Marley, o The Wailers, incluindo os lendários irmãos Carlton Barrett (baterista que seria assassinado em 1987) e o baixista Aston “Family Man” Barrett, que era quem cuidava da prensa de discos de vinil que havia instalada no fundo do quintal da casa de Marley.
“Vamos Fugir” foi composta em inglês com o nome de “Gimme Your Love” (depois, foi traduzida por Gil) e chegou a sair um compacto no Brasil com as duas versões. Ainda em 1984, Gil gravou outro reggae pouco conhecido, “Zumbi, A Felicidade Guerreira”, parte da trilha do filme Quilombo (1984), de Cacá Diegues, que saiu em LP completo no mercado internacional. No Brasil, saiu apenas um compacto com esse reggae de um lado e o samba “Quilombo, O Eldorado Negro” no outro.
O próximo disco, Dia Dorim Noite Neon (1985), lançou outros reggaes clássicos: “Nos Barracos da Cidade” e “Oração Pela Libertação da África do Sul”. O álbum também marca a amizade de Gil com Os Paralamas do Sucesso, outros devotos da Jamaica. Herbert Vianna está presente na faixa “Seu Olhar” (que não é um reggae) assim como Gil está no Selvagem? (1985), do Paralamas, cantando “Alagados” (que também não é um reggae) e como compositor de “A Novidade” (essa sim, um reggae). Curiosamente, “A Novidade”, assim como “Sandra”, foi composta por Gil em Florianópolis, mas desta vez em um contexto mais tranquilo: “Eu estava escrevendo na mesinha de frente para a janela, com a visão do mar ao fundo. Daí a idéia da sereia que vinha dar à praia”, diz Gil em texto publicado em seu site.
Em 1986, ele participou de três faixas do disco de estreia da banda brasiliense Obina Shok, formada por filhos de diplomatas africanos. Duas delas são reggaes: “Africaner Brother Bound” e “Reggae Obina”. No ano seguinte, seu disco Soy Loco Por Ti América (1987) trouxe mais dois reggaes lindos: “Mamma” (em inglês) e “Mardi Dix Mars” (em francês). Seu último disco de estúdio dos anos 80, O Eterno Deus Mu Dança (1989) não enfatiza a sonoridade jamaicana, mas citou o mestre na música “De Bob Dylan a Bob Marley, um samba provocação”.
A parceria com Liminha segue, mas, por boa parte da década de 1990, Gil deixou o som da Jamaica em segundo plano. Por mais que a influência apareça aqui e ali, a maioria dos discos dessa época não tem essa ênfase. Isso muda no Quanta Gente Veio Ver: Ao Vivo (1998), que apresenta com arranjos de reggae “Opachorô” (do Quanta, de 1997) e “Copacabana”, de Braguinha, além de registrar versões de Gil para “Stir It Up” e “Is This Love”, de Bob Marley.
Rastaman vibration
Tocar novas versões de Marley instigou Gil a aprofundar essa busca que iniciou em 1979. Em 2000, ele lançou Gil & Milton, com Milton Nascimento, cuja sexta faixa é uma inusitada versão reggae de “Something”, dos Beatles. No ano seguinte, fez São João Ao Vivo, que homenageia Luiz Gonzaga e, em seguida, sua maior obra dedicada ao gênero jamaicano, Kaya N’gan Daya (2002), um álbum em tributo ao Bob.
– Encontrei uma espécie de similitude entre o Cangaceiro e o Rastaman. Ambos causando-me a mesma impressão de estranheza, beleza e grandeza em seus processos / projetos de vida. (…) Para um artista, músico como eu, o foco obviamente recairia sobre a música que se liga e se refere a ambos, o Cangaceiro e o Rastaman, e os associa, direta ou indiretamente, a dois dos maiores artistas da música popular do século que passou. Dois mestiços, em todos os sentidos, dois dos meus maiores ídolos: Luiz Gonzaga e Bob Marley – escreve Gil no texto de apresentação deste disco.
Kaya N’gan Daya foi gravado na Jamaica no fim de 2001, no novo estúdio Tuff Gong, e conta com a participação da dupla Sly and Robbie e das I Threes – Rita Marley, Marcia Griffiths e Judy Mowatt -, o coro do The Wailers. O Paralamas e Samuel Rosa e Henrique Portugal, do Skank, também estão no disco, que foi produzido por Tom Capone e Gil. Há nele apenas uma composição de Gil, “Table Tennis Table”, as outras 15 são versões de música de Marley. Mas como anuncia no texto, Gil acrescenta um acento próprio às canções expondo o cruzamento orgânico das culturas jamaicana e nordestina.
– O Dominguinhos tinha uma coisa interessantíssima. Um dia, estávamos rodando com o Refazenda, andando pelas estradas do Nordeste, e eu botei uma fita de reggae pra tocar no carro. E ele ouviu, ouviu… e disse: “Isso é reggae, é?”. Eu disse: “É”. “É um xotinho sem vergonha, né?!” (risos). Ele estava se referindo ao reggae como uma forma de xote, que é esse gênero popularíssimo. De origem escocesa, veja, “xote” é uma corruptela da palavra “scottish”. Aí você vê como as coisas trafegam por lugares variados. A Jamaica, o Nordeste brasileiro, a cultura popular dos gaiteiros escoceses, tudo misturado. O mundo é essa diversidade e esse jogo permanente entre as diversidades. Aí pegou o reggae, misturou com baião, pronto, são esses processamentos de subprodução e as subproduções vão se tornando superproduções e vão criando novos estuários pra vida cultural do mundo inteiro – sintetiza Gil.
Kaya N’gan Daya virou DVD, documentário, teve dois clipes, foi um sucesso. Em 2003, Gil iniciou sua gestão como Ministro da Cultura do primeiro governo Lula e lançou o álbum Kaya N’gan Daya Ao Vivo, que trouxe versões ao vivo de reggaes como “Extra” e “Vamos Fugir”. Levou cinco anos até ele gravar outro reggae, “Os Pais”, de Gil e Jorge Mautner, que saiu no Banda Larga de Cordel (2008) retomando a parceria com Liminha.
Depois disso, com exceção de poucas novas versões ao vivo, o próximo reggae de Gil veio só no seu álbum de estúdio mais recente, OK OK OK (2018). A faixa é “Pela Internet 2”, a última do disco, e não parece gratuito que a última palavra que ele cante no álbum seja: “Rastaman!”. Gil nunca se vinculou aos dogmas do que quer que fosse, muito menos do rastafarianismo, não é disso que se trata. O rastaman de Gil é como o cangaceiro de Gil, são símbolos, ícones que encarnam a busca de liberdade e o poder de resistência das culturas populares do Terceiro Mundo. Sintetizando a relação entre Marley e Gonzaga, Gil vem regando com fé, coragem e amor o vasto campo da música popular brasileira.
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