Chega ao Brasil a crítica musical afrocentrada de Amiri Baraka

14/07/2023

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Divulgação

14/07/2023

Poeta, dramaturgo, ensaísta, ativista. Crítico musical. Um dos raros autores negros conectados à Geração Beat de Kerouac, Burroughs e Ginsberg. Um dos mais importantes intelectuais do jazz. Amiri Baraka, também conhecido por seu antigo nome LeRoi Jones, foi um artista múltiplo e complexo, de modo que a listagem enciclopédia não dá conta de sua vastidão. Apesar da grandeza, em sentido figurado e literal, de sua obra, que se estende entre os anos 1960 e os 2010, Baraka praticamente não foi editado no Brasil. Há apenas um título seu lançado no país, Blues People – Black Music in White America, publicado pela editora Record com o nome de O Jazz e Sua Influência na Cultura Americana. A edição é de 1963 e nunca houve uma segunda impressão.

Agora, 50 anos depois do seu único lançamento brasileiro, a editora sobinfluencia está lançando Black Music – Free jazz e consciência negra 1959 – 1967 (mais informações aqui). Traduzido pelo poeta e tradutor André Capilé, com prefácio da pesquisadora e curadora Nathalia Grilo, o livro é uma compilação de textos do autor que passeiam por diferentes linguagens: há resenhas, crônicas, ensaios e uma entrevista com Baraka. “Neste livro, o leitor sedento por teoria encontra uma poética radicalizada; o leitor que busca poesia encontra o cano fumegante de uma crítica refinada, selvagem e elaborada. Este livro não é um só, é uma arca navegante, onde remam os espíritos da Grande Música Preta e nós somos convidados a escutar os cochichos de suas antigas histórias de luta”, escrevem Rodrigo Correa, Fabiana Gibim e Alex Peguinelli, time de Coordenação Editorial da sobinfluencia.

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“Praticamente não traduzido no país, apesar da pletora de obras traduzidas dos beatnicks por aqui, movimento literário e cultural, o qual esteve vinculado de alguma maneira, travar conhecimento com Baraka sempre foi aventura lateral de pessoas que nutrem afeição por poesia e música, em particular”, comenta André Capilé. Quanto à tradução, o professor explica o cuidado que teve ao conectar o texto de Baraka à língua falada no Brasil: “Penso eu, seja mais que importante, necessário, haver o Black Music traduzido em português brasileiro — um dado importantíssimo, inclusive, de vez que as tensões de linguagem, os modos de articulação das ideias, as maneiras expressivas de uma anglofonia glosada por uma afiadíssima linguagem que mixa rua e erudição, bem como as orientações de sincopa do pensamento são vestidas à feição em idioma brasileiro e seus modos de execução”.

Respirando musicalidade, mas sempre conectado aos campos da literatura e das artes cênicas, Baraka estabeleceu pontes entre os saberes e as sensibilidades de um país como os Estados Unidos, permanentemente às voltas com, e reatualizando de novo e de novo, os impactos ultrajantes da escravização negra. A partir de um ponto de vista afrocentrado, a música tornou-se o fio condutor da análise de Baraka, explica Nathalia Grilo: “Os seus estudos sobre música negra o levam a ser considerado a primeira pessoa negra a elaborar uma séria pesquisa e análises seminais dentro dessa área. Suas investigações trouxeram uma compreensão inovadora na época, de que a história dos negros americanos poderia ser rastreada através da evolução de sua música. Baraka carrega uma intensa radicalidade em seu pensamento e atesta os efeitos que a música negra teve na América, em termos econômicos, culturais e sociais, desenhando ideias que apresentam por exemplo os ‘africanismos’ em relação direta com a formação da cultura americana”.

Em Nova York, Baraka fundou a Black Arts Repertory/Theater School, onde tocaram vários artistas; no fim dos anos 1960, criou o selo Jihad Productions, através do qual saíram gravações de músicos como Sun Ra e Sunny Murray. Baraka também escreveu sobre música para diversas publicações, como as revistas Metronome, Jazz Review e Down Beat. Além disso, seus textos estão presentes nas contracapas de vários LPs de jazz.

“Ele não foi apenas um teórico, mas também atuou na música manifestando a sua jazz poetry junto às produções de artistas como Gary Bartz e Idris Muhammad. Foi amigo íntimo de muitos desses músicos e dividiu apartamento com outros tantos. Nomeou e foi o grande documentador da chamada New Black Music, que segundo ele se tratava de uma geração de músicos de vanguarda. Nesse momento ele inicia uma série de escritos para encartes de discos, como por exemplo o álbum ao vivo The New Wave in Jazz, lançado pela Impulse! Records. Nele, havia gravações de grupos liderados por grandes artistas de vanguarda em um concerto beneficente realizado no famoso Village Gate de New York. Produzido e gravado por Baraka em ocasião das atividades do Black Arts Repertory Theatre/School (BARTS), o festival recebeu a alcunha de New Black Music. No palco circularam nomes como John Coltrane, Cecil Taylor, Archie Shepp, Marion Brown, Betty Carter, Grachan Moncur, Albert Ayler, Sun Ra Myth-Science Arkestra e Charles Tolliver“, conta Nathalia Grilo.

Em Black Music, Baraka divide textos publicados na Down Beat, uma entrevista que deu a Calvin Reid, e analisa a obra de músicos como Sonny Rollins, Wayne Shorter e seu amado John Coltrane. “Dos lamentos assombrosos dos blues às batidas do jazz, ele revela os triunfos e as tribulações de um povo através do som que ecoa. A sua eloquência poética celebra a arkeologia da vida sonora preta, servindo como um lembrete pungente do espírito duradouro de uma cultura escura. Black Music é um testemunho do profundo impacto da música preta em tudo que há”, dizem os editores.

“Acredito, uma espera atenta e instigada, que os modos de crítica de Baraka possam servir de boa ração ao nosso temperamento impressionista na lida com a música e, por extensão, outras e demais artes, ainda mais com o avanço sobre o particular racial. Mais do que nunca é necessária a articulação de uma crítica preta. Black Music, a meu ver, pode ser tornar mais um elemento do repositório teórico da crítica na diáspora e, com alguma sorte, reorientar algumas tomadas de posição diante dos objetos de arte, a ver se em modos mais radicais, em seu sentido mesmo de ir à raiz dos fenômenos”, avalia André Capilé.

“Baraka dedicou sua vida ao desenvolvimento de considerações filosóficas e práticas artísticas negras, buscando encorajar os teóricos, educadores e músicos, ou seja, toda a comunidade que orbita o mercado da música, a conceber o jazz, o blues, entre outros, como elementos que conferem autoridade a cultura estadunidense. Seus esforços em examinar e estabelecer novas teorias da arte negra, tendo a música como fio condutor de seus estudos, resultaram em uma pressão pelo reconhecimento das complexidades e profundidades do contexto estético que rege essa música. Ele inaugura um tipo de crítica musical que vai trazer dignidade às produções negras, justamente porque ele mesmo é fruto dessas tradições. Por isso suas elaborações apresentavam angulações que escapavam ao crítico branco. Os ensaios escritos por Baraka transformaram uma tradição extremamente elitista, racista e cafona em um campo de produções documentais belas e sensíveis sobre a música negra”, finaliza Nathalia.

Black Music – Free jazz e consciência negra 1959 – 1967 está em pré-venda no site da editora sobinfluência (mais informações aqui). Abaixo, confira um trecho do livro com exclusividade:

1962 Minton’s

Até agora é quase impossível descobrir exatamente o que se passava no Minton’s durante o início dos anos 1940. São tantas histórias conflitantes, muitas contadas por pessoas que não têm nem ideia do que rolava. Mas na minha adolescência o mito dizia, mais ou menos, assim: “Por volta de 1942, depois que o jazz clássico logrou suas conquistas, um pequeno grupo costumava se reunir todas as noites em um clube do Harlem chamado Minton’s Playhouse. Era formado por vários jovens de cor que, ao contrário dos seus colegas músicos, já não se sentiam em casa sob a atmosfera musical do ‘swing’. Tornava-se urgente tomar um pouco de ar num palácio ricamente adornado que, em breve, se tornaria uma prisão. Esse era o objetivo do trompetista Dizzy Gillespie, do pianista Thelonious Monk, do guitarrista Charlie Christian (que morreu antes que os esforços da banda dessem seus primeiros frutos), do baterista Kenny Clarke e do saxofonista Charlie Parker. Com exceção de Christian, todos eles eram pobres, desconhecidos e pouco atraentes: mas Monk estimulava seus parceiros pela ousadia de suas harmonias, Clarke criava um novo estilo de tocar bateria, Gillespie e Parker levavam vários chorus que pareciam alucinados pras pessoas que iam ouvi-los. O bebop estava nascendo.”

Soa quase como o começo da literatura estadunidense moderna entre os emigrados em Paris. Porém esta é a lenda que preencheu a maior parte da minha adolescência. No entanto, como disse Thelonious Monk, “É verdade que o jazz moderno, provavelmente começou a ficar popular por ali, mas algumas dessas histórias e artigos colocam o que aconteceu ao longo de dez anos, como se tivessem ocorrido em apenas um. Eles põe as pessoas todas juntas, numa mesma época, de uma vez só e em um mesmo lugar. Eu vi praticamente todo mundo no Minton’s, mas estavam apenas tocando. Não estavam lá dando palestras”.

O Minton’s foi inaugurado em 1940, na Rua 118, no Hotel Cecil. Teddy Hill, o líder da banda, estava gerenciando o lugar, e era natural que muitos músicos aparecessem sempre que tinham uma chance. Mesmo antes das sessões de “bop” começarem, os músicos que estavam trabalhando nos arredores do Apollo apareciam após o último show, ou mesmo entre os shows, e sentavam-se com quem estava na plateia. As segundas-feiras se tornaram a melhor noite pra sessões abertas, porque muitos músicos não precisavam fazer suas apresentações regulares. Charlie Christian costumava pegar um táxi depois de sua última apresentação no centro da cidade, onde estava trabalhando com Benny Goodman, e ficava sentado na plateia, não importa quem estivesse tocando, até quatro da manhã, quando o lugar supostamente fechava. (Quando, de fato, fechava as portas, os músicos iam até o Monroe’s na parte alta da cidade).

Lester Young, Coleman Hawkins, Ben Webster, Roy Eldridge, e um bocado de músicos mais velhos, costumavam frequentar o local também, embora uma das histórias sobre o Minton’s seja que Roy deixou de entrar quando Gillespie parou de imitá-lo e tratou de embocar o instrumento do seu próprio jeito. Todas as noites eram rascantes, mas na segunda-feira era outro lance, e toda cutelaria caía na balada de verdade, porque o público era tão ligado quanto os músicos. Na verdade, depois de um tempo, a maior parte do público era formada por músicos também.

Deve ter havido uma sensação de liberdade e excitação combinadas à expressão individual, dado que tudo isso começou no meio da Era do Swing, quando o arranjador, não o solista, era o cara mais importante no jazz. Havia bons solistas, até nas piores bandas populares do swing, mas mesmo nas melhores, o arranjo vestia os solistas como um casaco Bellevue. Porém no Minton’s era onde esses jovens músicos podiam se levantar e chacoalhar suas cabeças noite afora, e a experimentação levava à inovação. Muitos músicos deixavam o Minton’s, depois de uma dessas sessões de segunda-feira, alegando que Monk, Bird, Dizzy, Klook e os outros estavam “tocando esquisito”, apenas pra que pudessem segurar o palco só pra eles mesmos.

O bop também carregava consigo um elemento distinto de protesto social, não somente no sentido de que era uma música que parecia antagônica e inconformista, mas também porque os músicos que a tocavam eram escandalosamente francos ao falar algo a respeito de quem eles pensavam ser. “Se você não gosta, não ouça”, era a atitude que, agora, me parece a mais racional possível. Esses instrumentistas pareciam não querer mais serem vistos apenas como “intérpretes”, conforme mandava o figurino no velho Cotton Club, mas como músicos. E essa foi uma mudança de ênfase imperdoável pra muita gente. As piadas sobre os beboppers se tornaram tão frequentes no final dos anos 1940, quanto como são agora as piadas sobre os beatniks. Esses músicos negros eram considerados “esquisitos” e “intensos”, os óculos bebop e os cavanhaques que alguns usavam pareciam completar a imagem.

Foram necessários passarem cerca de quatro anos pra aquela música, que havia amadurecido no Minton’s (e no Monroe’s), fosse escutada por muita gente, levando em conta a proibição que recaía sobre as gravações vigorando nesta época. Ainda assim, os rumores se espalharam, boca a boca, de que algo cabeludo à beça estava fermentando na parte alta da cidade. Em 1944, quando Gillespie e Parker começaram a gravar e trabalhar em alguns dos clubes da Rua 52, todo o mundo do jazz deu um giro — assim como o mundo não-jazz.

Hoje em dia o Minton’s ainda está povoado de sons, embora não sejam, de forma alguma, “a novidade” ou a vanguarda. Comumente, as bandas que entram no Minton’s são réplicas engomadas do que era altamente experimental há vinte e cinco anos atrás. São estes os grupos, neste momento, mais aceitáveis “socialmente”, os que inventaram o jazz mainstream, pro ouvinte mainstream da cidade.

O novo jazz, pra todos os efeitos e propósitos, está concentrado no centro, na Lower East Side, em lofts, pequenos clubes do tipo boêmio, muito embora tenha havido alguns esforços ultimamente pra trazer a mais nova expressão da alma negra de volta pra casa.

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14/07/2023

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

Ariel Fagundes