Quem entrasse em uma banca de jornais, lá por 1970, poderia se deparar não apenas com revistas e as notícias do dia, mas com LPs históricos de grandes compositores da nossa música. No auge do vinil no mercado fonográfico, a Abril Cultural, um braço da editora Abril, lançou a coleção História da Música Popular Brasileira. As edições de LPs de 10 polegadas, acompanhadas de revistas encartadas com textos críticos e material gráfico, marcaram a época e se tornaram um importante documento da nossa cultura.
Usando sua estrutura logística de distribuição de revistas em bancas de jornais, a Abril espalhou seus discos pelo Brasil. Ao invés de serem vendidos em lojas de vinil ou em livrarias, a editora inovou com LPs que estavam em todos os cantos, nas bancas, e eram destinados a um público amplo, com o preço acessível de Cr$7 (equivalente a, aproximadamente, R$30 hoje).
Com cada edição lançada quinzenalmente, o conjunto dos discos criou uma verdadeira genealogia da música popular brasileira. O primeiro volume da coleção, iniciado em 1970, lançou 48 títulos com LP e revista encartada, durando até 1972. Em alguns casos, gravações antigas, feitas ainda em cilindros de cera, eram recuperadas para que constassem nos LPs. Com foco nas composições, a coleção nem sempre trazia gravações dos autores das canções, mas sim de intérpretes que davam voz aos nossos criadores históricos. Em outras oportunidades, eram feitos registros fonográficos especialmente para constar na edição.
Os lançamentos intercalavam compositores clássicos e novos nomes da época. A primeira edição homenageou Noel Rosa, trazendo gravações de Maria Bethânia e Martinho da Vila interpretando o pioneiro do rádio brasileiro, em canções históricas e representativas de sua obra, como “Conversa de Botequim”. Logo em seguida, foi a vez de Pixinguinha. Depois, de Dorival Caymmi. Outros gigantes da música brasileira, como Lamartine Babo, Ataulfo Alves, Ary Barroso, Cartola e Nelson Cavaquinho também figuraram na coleção.
Os fascículos que homenageiam os compositores contemporâneos demonstram o pioneirismo da História da Música Popular Brasileira não apenas no formato do projeto, mas também na escolha de títulos lançados pela coleção. Os nomes lançados, novos à época, eram apostas da editora na relevância futura da obra destes artistas selecionados. Estas apostas se concretizaram de fato em nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben, Milton Nascimento, entre muitos outros que se tornariam clássicos tão clássicos quanto os já clássicos naquele momento.
As escolhas dos títulos e condução da coleção eram feitas por uma equipe de nomes também históricos para a nossa cultura. Eram assessores do projeto Tárik de Souza, José Ramos Tinhorão, Júlio Medaglia e José Lino Grunewald. Os assessores eram responsáveis pela escolha de consultores, que faziam a seleção de cada título e definiam a linha editorial seguida nos textos do folículo. O colégio de consultores contou com jornalistas, musicólogos e artistas em nomes como Sérgio Cabral, Aracy de Almeida, Augusto de Campos e Rogério Duprat.
O projeto gráfico de cada edição ficava a cargo de Elifas Andreato, que iniciou sua carreira de capista através da coleção. Em cada número, o padrão das capas era mantido. Os fascículos também possuíam projetos gráficos ambiciosos para a época, com impressões a cores de fotos e ilustrações, corroborando para a construção da narrativa do universo de cada compositor.
A redação era comandada por Paulo Sérgio Machado e os textos de cada fascículo faziam uma investigação e apresentação minuciosa da trajetória de cada compositor lançado pela coleção. Passagens biográficas, fatos contextuais sobre a época ou lugar de origem do artista, além de análises das obras lançadas eram apresentadas nas páginas dos fascículos. A revisão final ficava a cargo do colégio de consultores acima citado.
É fácil perceber que o trabalho textual e imagético desenvolvido nos fascículos, somado aos lançamentos em LPs de obras ora raras, ora inovadoras, se tornou um documento extremamente rico sobre nossa cultura. Com a coleção História da Música Popular Brasileira, a Abril Cultural foi pioneira em diversos aspectos. A coleção chegou até mesmo a corroborar para que fossem traçadas as fronteiras do que consideramos, até hoje, música popular brasileira. Isso porque, à época, essas fronteiras ainda não estavam tão bem marcadas. Portanto, a coleção acabou por ajudar a definir e recuperar cânones, bem como corroborou com a elaboração das lentes através das quais analisamos as obras dos nossos grandes compositores.
Lendo este texto, talvez você tenha percebido alguma semelhança da coleção com algo que você já conhece. Lançamentos periódicos de LPs acompanhados de revistas que trazem minúcias sobre o que está por trás de cada composição, cada artista. Nós, do NOIZE Record Club, com muita honra, nos colocamos enquanto modestos herdeiros da tradição deste projeto pioneiro. A coleção História da Música Popular Brasileira é, para nós do clube, uma referência e inspiração na hora de realizarmos nossos lançamentos.
Até hoje, você consegue encontrar esses discos (com as revistas completas) por preços acessíveis. Na Discogs há uma listagem com diversos lançamentos da coleção. Nos sebos pelo Brasil também é possível encontrar diversos exemplares conservados, com disco em bom estado e encartes. O primeiro volume foi lançado de 1970 até 1972, mas ainda houveram outras edições, que receberam tiragens bem grandes, com algumas mudanças, uma delas lançada entre 1977 e 1979, com o título Nova História da Música Popular Brasileira. Então, não é difícil encontrar por aí um pedaço da História da Música Brasileira para a sua coleção.