Já ouviu a expressão amor de mula? Ela descreve aquele tipo de amor irracional, intenso, que é vítima da própria teimosia e obediência. É a partir desse ditado que Luiz Amargo desenrola seu novo álbum, Amor de Mula, lançado nesta quinta-feira, 8 de agosto. O trabalho apresenta nove canções que são um híbrido peculiar de canção popular, MPB e indie rock. Com ironia refinada, Amargo trata de temas próprios da geração Z em composições que oscilam entre o intimista e o debochado.
O álbum foi produzido no Estúdio Sinestesia pelo jovem artista paulistano, em parceria com Gabriel Assad, e utiliza a ironia como recurso literário que guia as faixas, que abordam crise climática, mudanças geopolíticas, urbanicidade, saúde mental e sexualidade, evocando o espírito da canção de protesto dos anos 1960 e 1970. “Misturamos elementos de várias décadas do século XX com elementos contemporâneos, na intenção de parecer anacrônico, mesmo”, conta o músico. A finalização do álbum foi possível graças a um financiamento coletivo feito em 2023.
Entre momentos debochados e dançantes, Amor de Mula conta com seis faixas inéditas, além das já lançadas “Mapa da Mina”, “Quem Ficou, Rancor?” e “São Pop”, que ganhou clipe gravado em 16mm.
Confira o faixa a faixa do disco a seguir:
‘’Fade Out’’: faz uma analogia entre o recurso musical do fade out e um relacionamento que fica preso num vai e vem indefinido, em vez de terminar de uma vez. Curiosamente, isso nunca aconteceu comigo, mas já ouvi tanta gente relatando casos parecidos que acabei fazendo essa canção. Para o verso eu pensei em um groove de samba-disco, mas não sabia o que fazer no refrão, então o Luca Acquaviva, baterista, inventou uma levada que eu nem sei dizer o que é, mas ficou legal.
‘’Mapa da Mina’’: cruza dramas individuais com assuntos coletivos, em tom de deboche. É uma mistura das questões sócio-econômicas do Brasil, a juventude desesperada mas ainda cheia de paixão, um questionamento da tese hegeliana do fim da história, a mesa de bar de plástico, motocicletas, a ascensão da China, o caminho para o sucesso de um date ou da liberdade geral. O que tudo isso têm em comum? Muita coisa, eu diria. Basta jogar tudo sobre uma boa linha de baixo e um groove oitentista.
‘’sóprativc’’: é uma canção nonsense, a letra tem imagens absurdas e aparentemente desconexas. A guitarra de Rodrigo Passos, cheia de improvisos, complementa o tom de deboche. Novamente surge o elemento político – ‘’suor, democracia’’, indicando uma convergência de desejos de campos diferentes. É um dueto com Bel Aurora, que soube muito bem traduzir o espírito caótico dessa música.
‘’Quando o Fogo Vem’’: é um xote. É romântica à primeira vista, mas tem um sentimento de tragédia e, talvez por isso, foi a música mais difícil de gravar do álbum. Cada verso narra uma etapa de uma história que começa com um susto repentino e termina numa rendição amarga. Para o arranjo de violoncelo, tive ajuda de Gabriel Assad e Pedro Valdetaro, e quem o executou foi Giovanna Lelis Airoldi. A música é um dueto com Bel Aurora, o que demonstra sua versatilidade – se em “sóprativc” ela abraça o espírito nonsense, aqui ela atinge o tom melancólico que a música pedia.
‘’Corpo do Amor’’: canção dolorida de separação. Todo mundo tem uma dessas, não é? O amor é como um corpo, ex-casa de uma vida que se foi, levando com ela as ilusões e clichês eternamente reencenados por aqueles que se apaixonam. Tem algo de Augusto dos Anjos nesse cruzamento entre o tema romântico e imagens um pouco mórbidas, mas a canção em si não é mórbida. É um samba lento e bastante melódico. O violão é de Rodrigo Passos.
‘’Fruta Madura’: é baseada na guarânia, um ritmo de origem paraguaia influente na antiga música sertaneja. Ele tem algo de fronteiriço, e como essa música retrata um personagem em situação limítrofe, me pareceu apropriado fazer uma guarânia pós-apocalíptica. A canção é sobre um sobrevivente de uma catástrofe climática. Vagando por um deserto, ele relembra a fartura de sua vida pregressa, e aos poucos perde sua sanidade por causa das condições extremas para as quais não estava preparado. Tem um solo de apito no final, tocado por mim.
‘’São Pop’’: começou como um poema de meu amigo Leonardo Chagas, que ele postou no Facebook nos idos de 2019. Bati o olho e quis musicar. Redescobri a música em 2022 e arranjei junto com a banda que gravou o álbum. Virou uma das preferidas do público, todo mundo canta junto nos shows. A letra menciona Arrigo Barnabé. O clipe, filmado no Rio de Janeiro em 16mm, é uma pequena homenagem ao cinema marginal. Todo mundo me pergunta porque esse clipe é no Rio de Janeiro se a música fala de São Paulo. Eu respondo que não sei.
‘’Amor, Cadê a Mula?’’: acho que essa resume os temas do álbum. A melodia tem algo de circular, é um tipo de mantra. A letra mistura épocas e espaços, tem o zero e o um do digital, vassalos e senhores feudais, guerra, plantações, mulas. Todos esses elementos estão subjugados a uma certa melancolia existencial. O violoncelo, tocado por Giovanna Lelis Airoldi, é uma colagem de takes gravados para “Quando o Fogo Vem” que não foram utilizados. São improvisos com técnicas estendidas, que resultam em ruídos e timbres pouco usuais no instrumento.
”Quem Ficou, Rancor?”: um híbrido de indie rock e pop brasileiro oitentista. Eu sonhei com a melodia, acordei e corri para o violão para fixá-la. Conforme fui escrevendo, percebi que essa música descreve um personagem tomado por um dos afetos (infelizmente) mais presentes no nosso tempo: o rancor. Assim como a melodia do refrão, o rancor é um sentimento insistente e repetitivo. A canção e o arranjo são dramáticos, portanto achei que seria apta para fechar o álbum.
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