Esta matéria foi publicada originalmente na edição 132 da revista NOIZE impressa, lançada com o vinil de Meu Coco, de Caetano Veloso, em 2022. Texto por Damy Coelho.
“És um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho… Tempo, tempo, tempo, tempo”. Caetano Veloso, poeta do cotidiano que versa sobre o Brasil, sobre o viver e o querer, também é tomado de inspiração por uma das grandes alegrias de sua vida adulta: a descoberta da paternidade. O músico é pai de Moreno (filho do casamento com Dedé Gadelha), de Zeca e de Tom Veloso (filhos da união com Paula Lavigne).
Os quatro se uniram no palco – o show especial de 80 anos do cantor é um exemplo – e projetos em comum, como foi o caso do show-disco Ofertório (2018), compilado com quase 30 canções apresentadas em família. Mas a paternidade já se fazia presente no decorrer da discografia de Caetano.
O assunto já estava na obra de Caetano Veloso mesmo antes de ele ser pai de fato. No disco Caetano Veloso (1968), há a faixa “Anunciação”, que o próprio define como “uma canção misteriosa e um tanto sombria sobre um filho imaginário”. A ideia de ser pai só saiu do campo da imaginação criativa após o exílio londrino que viveu entre 1969 e 1972.
“A vontade de ter um filho, que surgira nos últimos meses em Londres, não só cresceu em mim como se insinuou também em Dedé. Essa vontade era, em si mesma, uma revolução”, contou no seu livro Verdade Tropical (1997).
“Quando Moreno nasceu e eu peguei pela primeira vez, foi a coisa mais importante que aconteceu na minha vida adulta”, disse Caetano. Em 1973, ele lançou a canção “Júlia/Moreno”, presente no primeiro álbum pós-exílio, Araçá Azul, cuja letra diz: “Uma Júlia/ Um quiçá Moreno”. Moreno tinha acabado de nascer quando Caetano lançou essa música. Já em 1979, nasceu Júlia, que morreu poucos dias após o nascimento prematuro.
O primeiro filho de Caetano entrou cedo na discografia do pai e tornou-se uma presença frequente. Na capa do álbum Jóia (1975), Moreno aparece nu, ainda bebê, junto aos pais (também nus). Para a Ditadura Militar de Geisel, aquela capa que, no fundo, apenas retrata uma família, deveria ser “subversiva demais” e acabou sendo censurada.
“[Para essa capa] usei a fotografia e pintei em cima com lápis de cor. Pedi ao artista da gravadora para desenhar um pássaro, a ser colocado em cima do meu sexo, para não ficar com a genitália exposta. O resultado até que ficou suave e familiar, mas fizeram um escarcéu danado”, explicou o músico na época. Pouco após chegar às lojas, os discos foram recolhidos e acabaram sendo relançados com outra capa, que excluía a família nua. Como se não bastasse o absurdo da coisa toda, Caetano ainda teve de dar satisfações à Polícia Federal – até ameaçaram tirar a guarda da criança dos pais.
Moreno não tardaria a aparecer novamente na obra do pai. O menino parecia sempre ter apresentado uma conexão com a música – inclusive, nasceu em 22 de novembro de 1972, no dia de Santa Cecília, a padroeira dos músicos. Aos nove anos, ele fez a sua primeira parceria com Caetano, “Um Canto de Afoxé para o Bloco do Ilê”, lançada no disco Cores, Nomes (1982), faixa na qual Moreno canta e assina a coautoria. Já no disco Circuladô (1991), ele colaborou com vocais na canção “Itapuã”, além de tocar tamborim em “Fora da Ordem” e palmas em “Boas Vindas”.
Já no álbum Livro (1997), Caetano o celebra, cantando uma música composta por Moreno: “How Beautiful Could A Being Be” (ou seja, “quão bonito pode ser um ser?”, numa bela tradução). “Digo que esse samba-de-roda em inglês global é uma pergunta-resposta sobre a existência de Moreno”, definiu Caetano em 2022, no aniversário de 50 anos do primogênito. Noutra ocasião, em 2006, declarou: “Moreno me ajudou muito a viver, e ajuda até hoje”.
Em 1992, 20 anos após o nascimento do primogênito, veio ao mundo Zeca Veloso. Para ele, Caetano compôs a bela “Boas vindas”, presente no Circuladô (1991), que, no fundo, é uma ode à família: “Sua mãe e eu/ Seu irmão e eu/ E a mãe do seu irmão/ Minha mãe e eu/ Meus irmãos e eu/ E os pais da sua mãe/ E a irmã da sua mãe/ Lhe damos as boas vindas/ Boas vindas, boas vindas/ Venha conhecer a vida”, canta a letra.
Em entrevista à Vogue, Zeca conta que uma de suas primeiras lembranças é a do pai cantando, para o ninar, a música “Feiticeira”, que sua tia Maria Bethânia gravou em 1965: “Eu ficava muito emocionado”, lembra. Logo, ele mostrou que queria seguir pela arte. “Depois dos 18, Zeca começou a fazer umas canções incríveis, em casa. Só eu o ouvia, no começo”, diz o pai, em entrevista ao jornal DN. Zeca é também uma espécie de anunciador sobre o que se passa na música atualmente – através dele, Caetano ouve novas músicas de funk, sertanejo, trap.
Cinco anos depois de Zeca, nasceu Tom, e ele chegou em uma época em que Caetano estava refletindo muito sobre seu próprio passado. Naquele mesmo 1997, ele lançaria seu guia cultural do Brasil disfarçado de autobiografia, Verdade Tropical. Também lançou o álbum Livro, num questionamento sobre arte, forma e objeto. Inclusive, o álbum Livro se sobressai diante da inspiração que os filhos causam.
Além da faixa-presente dada por Moreno (“How Beautiful a Being Could Be”), destaca-se “Um Tom”. A escolha pelo nome do caçula foi uma homenagem a Tom Jobim, um dos mestres inspiradores de Caetano, que coincidentemente nasceu no mesmo dia de seu filho, 25 de janeiro. “Um Tom” é mais que um tom qualquer – é o Tom de Caetano. No primeiro verso da música, parece que o pai já anuncia, como quem faz uma profecia: “Um tom pra cantar” .
Apesar disso, de início, Tom não demonstrou tanto interesse pela música. Caetano conta, achando muita graça, que o caçula, ainda pequenininho, pedia para o pai parar de cantar para embalar seu sono – o contrário dos irmãos mais velhos. Virou futebolista, jogou no Fluminense, mas acabou aprendendo a tocar e demonstrou ter tino pra coisa.
Em 2021, a canção “Talvez”, parceria sua com o pai, ganhou o Grammy Latino de Gravação do Ano. E antes, em 2014, ele formou a banda Dônica, na qual tocava também Lucas Nunes, que acabaria sendo o produtor de Meu Coco (2021), disco mais recente de Caetano. Falando em Meu Coco, o álbum também conta com a presença dos filhos: os três fazem coro com ele no final da faixa-título e “Sem Samba Não Dá”, Tom toca violão em “Autoacalanto” e Moreno faz a percussão em “GilGal” e “Você-Você”.
Entre os dilemas e as idas e vindas típicas de uma relação entre pais e filhos, o tempo foi passando. Na carreira de Caetano, a musa-Brasil dividia espaço de inspiração com as vivências mais particulares: tornar-se pai, descobrir-se de novo refletido nos filhos, como num espelho convexo. Essa relação tem afirmado a sua presença, para a nossa sorte, nos palcos, com o lançamento do show Ofertório.
No repertório, está também “Um Tom” – que, no disco Livro, Caetano canta com falsetes que lembram os do próprio filho Zeca, que é quem hoje canta a canção ao irmão, mais de vinte anos depois. Outra presente é “Um Canto de Afoxé Para O Bloco Do Ilê” – quem já assistiu a apresentação ao vivo em que Caetano divide o palco com um Moreno ainda criança e agora vê pai e filho já maduros, inevitavelmente se emociona – ainda mais porque, agora, é Tom quem faz o backing vocal quase infantil que um dia foi de Moreno.
Emocionante também é a performance de “Boas-vindas” – e aqui, peço licença para prolongar esta cena: Zeca toca a canção que seu pai fez enquanto o esperava chegar, quando Moreno já era crescido. Seu irmão também está lá, assim como o caçula, que nem havia nascido. Fico me perguntando como deve ter sido para Caetano quando tocou essas canções com todos os seus filhos pela primeira vez.
A motivação para o lançamento de Ofertório veio do próprio Caetano: “Se tem uma coisa capaz de me dar felicidade é sair com meus filhos. Mas também foi um truque, porque os filhos crescem e vão ficando distantes da gente. Acho que quis fazer esse show para tê-los perto de mim”, confessa, em entrevista à Folha de S. Paulo.
Ofertório joga luz à paternidade, mas o álbum é mais que isso: trata-se de uma celebração da família através da música. “Ofertório” é o nome da canção que Caetano fez para o aniversário de 90 anos de sua mãe, Dona Canô. “
A canção toca no cerne do nosso feixe temático: as relações familiares, a família de inspirações que assaltam os quatro modestos mas entusiasmados criadores, a visão total que, como nenhuma outra dimensão do conhecimento, a religião expõe”, disse, em carta aberta sobre o álbum-show. A mãe é a voz, o pai, o tanino e o mel. “Minha mãe, meu pai, meu povo”.
No palco, os quatro reforçam o que é basilar: todo mundo precisa de uma mãe. As irmãs Maria Bethânia e Nicinha também são evocadas – enquanto Betânia é celebrada em “Reconvexo”, Zeca entoa “Alguém Cantando” – esse alguém que canta é Nicinha, vocalista da faixa lançada originalmente no álbum Bicho (1977). A voz profunda de Nicinha ecoa no timbre semelhante ao de Zeca Veloso, dom familiar.
É curioso pensar que a primeira manifestação de paternidade no fazer artístico de Caetano Veloso foi censurada e que hoje, aos seus 80 anos, ele pode de fato celebrá-la com Moreno, junto a Zeca e Tom, em um canto à família. Mas, para Caetano, a celebração desse encontro de ideias e gerações é apenas o começo: “Quero viver até mais de 100 anos”, disse em entrevista a’O Globo. “Quero ver mais e mais meus filhos e os filhos deles”.
Após assistir ao ofertório dos Veloso, é possível ter uma certeza – que é reforçada pelo próprio Caetano em sua carta-aberta sobre o disco: é preciso enternecer. Através do conceito de família, que, no Brasil, muitas vezes é usado como escudo para o ódio e a intolerância, Caetano propõe a simbologia do amor. “Que nossa aventura familiar contribua com a construção do Brasil”, conclamou. Que assim seja.
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