Como Sérgio Mendes se tornou um dos músicos mais celebrados no mundo

06/09/2024

Powered by WP Bannerize

Isabela Yu

Por: Isabela Yu

Fotos: Katsunari Kawai/Divulgação

06/09/2024

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 136 da revista NOIZE, lançada com o vinil de Nightingale, de Gilberto Gil, em 2023.

Anualmente, Sérgio Mendes viajava ao Japão acompanhado da esposa, a cantora Gracinha Leporace. Em 2022, o casal retornou ao país após dois anos sem apresentações no exterior para uma rodada de shows em cidades como Tóquio e Osaka. Apaixonado pelos filmes do cineasta Akira Kurosawa e pelos designs do estilista Issey Miyake, o pianista brasileiro pisou do outro lado do mundo pela primeira vez em 1963. O encantamento nunca foi embora, foi se aprofundado a cada visita – e já foram mais de 30 turnês. “Sou fã de tudo, da comida à estética e à arquitetura. Adoro a música tradicional japonesa, amo o som do shakuhachi, que é uma flauta milenar”, diz o artista em entrevista à Noize. 

*

Em maio de 2023, o casal saiu de Los Angeles, a cidade escolhida como casa desde 1964, e aterrissou no Japão. O pit-stop japonês antecedeu uma apresentação em um festival de jazz em Seul, na Coreia do Sul. Com 18 datas marcadas até o início do ano que vem, Sérgio e Gracinha estão na estrada com a turnê In The Key of Joy, cujo repertório se debruça nas faixas do disco de mesmo nome, lançado em 2020. A última vez que o músico tocou no Brasil foi em 2015, sem contar uma participação no show da Fergie, em 2017, sendo que ambas ocasiões aconteceram no Rock in Rio. 

Depois da Ásia, a próxima parada será na Dinamarca, especificamente no último dia do festival Heartland, onde será um dos headliners, ao lado do cantor havaiano Jack Johnson e do britânico Robbie Williams. Nos próximos meses, vai visitar a França, Espanha, Reino Unido, Canadá e diversas cidades dos Estados Unidos. Hoje em dia, a banda traz Gracinha nos vocais – a parceria musical foi iniciada no fim dos anos 1960, antes mesmo do casamento, no início da década de 1970 – , o baterista Léo Costa, o baixista André de Santana, o guitarrista Cléber Jorge e o percussionista Gibi. “É uma banda alegre, que transmite a alegria da nossa música”, conta Sérgio. 

Após quase dois anos sem pisar nos palcos, retomar o ritmo das viagens tem um sabor especial, especialmente depois de pegar covid, ainda que estivesse vacinado. “Fiquei caído, cansado, mas sem complicações. Agora, estamos em pé de novo”, divide o pianista. Durante o período em casa, ele revisitou a coleção de álbuns de jazz de Thiago, o único filho que seguiu o caminho dos pais. Além de cantar e tocar, o caçula é colecionador de discos de vinil e o responsável por introduzir novidades à família. 

Para um dos responsáveis pela internacionalização da bossa nova, a música atual peca por um motivo principal: “Sinto falta da melodia e da canção. Como na música do Tom Jobim, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Cole Porter. Hoje em dia, tem muita coisa repetitiva, até meio monótona, que eu entendo, mas não tenho interesse. Conversei com o Quincy Jones outro dia, e ele disse a mesma coisa. Acabou a melodia, agora é aquela coisa colada uma na outra”. 

Com quase 40 discos lançados desde o debut Dance Moderno, em 1961, o niteroiense de 82 anos soma três prêmios Grammy e uma indicação ao Oscar por Melhor Canção Original em “Real in Rio”, dobradinha com Carlinhos Brown para a trilha sonora da animação Rio, lançada em 2011. “Ontem, a Gracinha me mostrou um vídeo da minha neta de dois anos cantando a música do filme, e fiquei emocionado. Como é forte a coisa da melodia, né?”, lembra o artista. 

Ao longo de três anos, Sérgio desenvolveu a trilha sonora do desenho em parceria com o diretor Carlos Saldanha e diversos colaboradores. Como a história do protagonista, a arara azul Blu, se passa no Rio de Janeiro, o samba precisava se destacar. Para isso, decidiu gravar as percussões no Brasil e finalizar o restante em Los Angeles. “Acho que tem outro sabor quando, por exemplo, quando você grava com o Pretinho da Serrinha e ele traz o sobrinho dele pro estúdio. Tem toda uma atmosfera rítmica diferente, ainda que tenha percussionistas brasileiros em L.A.”, pontua. 

Nestas seis décadas longe de Niterói, o músico retornou todos os anos para ver a família. Mesmo com saudade de casa, ele permaneceu nos Estados Unidos. “Não pensei em voltar de vez, porque a gente nunca sabe o dia de amanhã. Não imaginei que viria para os Estados Unidos ou viver tantas coisas que não planejei. A minha vida foi assim: vivendo pela serendipidade, pelo acaso dos encontros”, reflete Sérgio. 

Atravessando gerações 

Em 1962, aos 21 anos, Sérgio viajou para o exterior pela primeira vez para participar do famoso show que lançou a bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York, ao lado de João Gilberto, Tom Jobim, Stan Getz, entre outros. Foi nesta ocasião que conheceu o saxofonista Cannonball Adderley e acabou precisando adiar a passagem de volta devido ao convite pra gravar o disco Cannonball Plays Bossa Nova (1962)marcando a sua primeira aparição na paisagem estadunidense. Entre idas e vindas nos anos seguintes, ele embarcou de vez com a primeira esposa e o primogênito após alguns meses da instauração da Ditadura Militar no Brasil. 

Na época da mudança de país, aos 23 anos, ele era um músico em ascensão da geração que se apresentava nos clubes cariocas do Beco das Garrafas, em Copacabana. Acompanhado pelo sexteto Bossa Rio, o grupo instrumental ficou conhecido como “bossa nova pesada”, como o jornalista Nelson Motta pontuou no documentário Sérgio Mendes no tom da alegria (2021), disponível na plataforma HBO Max. Se o estilo consagrado por João Gilberto era notoriamente minimalista, a disrupção de Sérgio foi incrementar a sonoridade com uma formação de grupo de jazz com direito a saxofone, trompete, bateria e dois trombones. 

Posteriormente, já morando fora e tocando com o conjunto Brasil 66, ele decidiu adicionar duas vocalistas à formação. “Eu queria essa mudança porque todos os meus grupos no Brasil foram instrumentais. Então, achei que seria interessante ter duas meninas cantando, uma coisa muito simples, mas sensual. E no final, esse som virou uma marca registrada”, explica.

Nesta época, no início dos anos 1960, era ainda menos comum ver músicos brasileiros fazendo sucesso em Los Angeles, a meca do entretenimento. O violonista Laurindo Almeida, que havia desembarcado algumas décadas antes com Carmen Miranda, foi um amigo que recebeu Sérgio e a família em um primeiro momento. Ao integrar o casting da gravadora A&M, fundada pelo executivo Jerry Moss com o trompetista Herb Alpert, ele viu a carreira deslanchar com o lançamento do álbum Brasil 66, de 1966. O maior hit, “Mas Que Nada”, composição de Jorge Ben Jor, gravada pela primeira vez no Samba Esquema Novo (1963), se tornou a primeira música em português a alcançar o topo das paradas – feito que se repetiria 14 vezes, chegando ao quarto lugar em duas ocasiões. 

Nos anos seguintes, o grupo foi parar na televisão, no especial do Fred Astaire, e excursionou com grandes nomes da música americana, como Frank Sinatra. “Encontros maravilhosos. Esse começo foi muito animador”, lembra o músico. O ritmo se manteve intenso nos anos seguintes, quando chegou a lançar mais de um disco por ano, sendo que vários deles venderam milhões de cópias. Em 1975, apresentou Sergio Mendes, o primeiro disco como parte do casting da Elektra, a gravadora que topou investir em Nightingale (1979). 

Como produtor musical do primeiro disco de Gilberto Gil focado no público internacional, Sérgio lembra do período em que o músico baiano morou na casa dele em Encino, no Vale de São Fernando, noroeste de Los Angeles. “Em 1978, Gil ficou hospedado durante meses com a gente, foram tempos de muita música, risada e conversa. Ele é um grande contador de histórias, encantou todo mundo, bastava ele pegar o violão para o pessoal abrir um sorriso. A personalidade é transmitida na música dele”, reflete sobre a época. 

No seu home studio, cuja construção ficou a cargo do iniciante e inexperiente ator Harrison Ford, mais um exemplo das aleatoriedades da vida, Sérgio cozinhou com Gil os sons que compõem as dez faixas do disco. A sugestão partiu do pianista justamente pela admiração, e o resultado foi positivo, agradando tanto a gravadora, quanto o público: “O trabalho dele é tão diferente de tudo, achei que seria uma oportunidade para chegar a novos públicos”, afirma. 

Um pouco antes da temporada do baiano em Encino, o Mendes e Leporace receberam outro convidado ilustre: o rei Pelé. Em 1977, Sérgio produziu a trilha sonora de um documentário sobre a vida da lenda futebolística, que, pela primeira vez, soltou a voz em um estúdio de gravação, sendo imortalizado nas faixas “Meu Mundo É Uma Bola” e “Cidade Grande”. “Foi um período muito interessante porque, na mesma época, um grande amigo e músico de jazz estava hospedado em casa, o [saxofonista] Gerry Mulligan. Então, o encontro entre Gerry e Pelé tem uma coisa meio surrealista, mas que funcionou muito bem”, conta o pianista. 

Hip hop com samba

A década de 1980 também proporcionou momentos marcantes. Ao lado do cantor Joe Pizzulo, Sérgio chegou ao topo das paradas com “Never Let You Go”, uma balada romântica com ares extravagantes e arranjo complexo. Nos anos seguintes, continuou trabalhando com outros artistas, como a cantora Sarah Vaughan e o seu Brazilian Romance (1987), e o cantor Johnny Mathis com The Island (1990). 

A virada para os anos 1990 representou um momento de retornou às raízes brasileiras com a sequência: Arara (1989) – com composições de Ivan Lins e Gilberto Gil, e Brasileiro (1992), vencedor do Grammy de Melhor Disco de World Music, e o início da parceria com Carlinhos Brown. “Eu adoro o trabalho dele, acho o Carlinhos um grande músico e compositor”, declara Sérgio. 

Um novo projeto é sempre uma possibilidade de propor novos encontros ou até mesmo reencontros. No início do novo milênio, certo dia, um rapaz bateu na porta da casa da família Mendes sem avisar. Era o rapper Will.i.am. Nascido e criado em Los Angeles, o músico não tinha nem 30 anos quando foi tentar a sorte com o ícone da bossa nova. Ele era fã da música de Sérgio Mendes desde o início da década de 1990, época em que fundou o Black Eyed Peas com o amigo de colégio Apl.de.Ap. Até hoje, o Will.i.am é um dos maiores colecionadores da obra do brasileiro, além de terem se tornado grandes parceiros criativos. 

O encontro inesperado rendeu o disco Timeless (2006), um dos álbuns de maior sucesso da primeira metade dos anos 2010. “Eu abri a porta e o vi com todos os meus discos, ele sabia tudo que eu já tinha gravado. Logo de cara, adorei o estilo dele. Falei para a gente fazer uma coisa diferente, que era unir a magia do rap com as melodias brasileiras”, lembra sobre o início da parceria. Neste disco, além da versão de “Mas Que Nada” com o Black Eyed Peas, há vocais de artistas como a diva do neo soul Erykah Badu, o crooner John Legend, o ex-N’Sync Justin Timberlake, além de Stevie Wonder e de rappers em ascensão – Q-Tip na gringa e Marcelo D2 representando o Brasil. 

Para Will.i.am, o grande feito do Sérgio foi traduzir o que acontecia no Brasil para o restante do mundo. “A bossa nova é gentil”, declarou o rapper no documentário Sérgio Mendes no tom da alegria. O filme dirigido por John Scheinfeld, responsável por esmiuçar a vida de grandes nomes da música – John Coltrane e John Lennon são alguns exemplos –, traz algo inédito na trajetória do músico brasileiro: olhar para trás. 

Desde que começou a tocar nos bailes em Niterói ainda na adolescência, a vida de Sérgio foi pautada pelo movimento e pela novidade. No início, ele não ficou à vontade com a ideia do filme, mas acabou encantando pelo trabalho do documentarista. Recheado de entrevistas com amigos de longa data e novos agregados, o documentário leva Sérgio para revisitar Copacabana e os espaços frequentados na infância em Niterói. “Não vi nada até a estreia e fiquei muito emocionado. Foi uma coisa muito linda que aconteceu”, divide o artista. 

O longa, cujo nome em inglês é In The Key of Joy, traz filmagens do processo de gravação do disco homônimo. Por exemplo, a faixa “Sabor do Rio”, com participação do rapper Common, foi gravada em um só take, sendo que a letra foi feita no improviso. Neste trabalho, há também uma canção em espanhol, “La Noche Entera”, com participação do duo colombiano Cali Y El Dandee, e a estreia da cantora Sugar Joans, filha de Joe Pizzulo, em “Samba In Heaven”. O registro conta ainda com colaboradores de longa data, como Hermeto Pascoal e Guinga

Mais de 60 anos distanciam aquele jovem pianista em contato com um peso-pesado do jazz americano. A generosidade de Cannonball Adderley nunca foi esquecida, inclusive, esta sensibilidade foi incorporada ao trabalho de Sérgio Mendes, que se manteve aberto aos encontros e a todas as possibilidades que eles poderiam proporcionar. 

LEIA MAIS

Tags:, ,

06/09/2024

Isabela Yu

Isabela Yu