Em novo álbum, “Mycelium Network”, Tha_Guts busca inspiração nos cogumelos

13/06/2022

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Por: Gabriel Bernardo e Vitor Karpss

Fotos: Divulgação

13/06/2022

Cada novo disco lançado, ao mesmo tempo em que apresenta ao mundo uma narrativa extremamente íntima e pessoal, dá materialidade a uma rede de relações necessárias para a sua germinação, servindo como registro de um processo que contém elementos coletivos que se expressam através do artista. Em Mycelium Network, que será lançado na íntegra no próximo dia 17, Tha_Guts constrói um ecossistema sonoro que é fruto de suas experimentações que misturam texturas analógicas e digitais e seu vasto conjunto de referências, tendo como produto um álbum extremamente maduro, capaz de nos tocar profundamente com suas paisagens contemplativas e envolver com grooves minimalistas e poderosos.

Os micélios são redes naturais, formadas por fungos, que correm no subterrâneo, conectando o ecossistema vegetal. O trabalho de Augusto Pereira, que se apresenta artisticamente como Tha_Guts, contribui analogamente com a conexão entre diferentes atores do cenário cultural brasileiro. Augusto criou em 2021 (com seu parceiro A. Cittolin) a dsrptv rec., gravadora que elevou o panorama brasileiro de produções em música eletrônica e já lançou 14 trabalhos. Reunindo um catálogo diverso e multifacetado, o selo tem como horizonte o fomento de composições complexas e texturizadas, sem obrigação com a pista, mas também explorando o potencial da música eletrônica em fazer dançar.

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As conexões e uma percepção ecossistêmica são motores que movimentam o trabalho de Tha_Guts, seja como artista ou articulador cultural. Por onde passa, produz redes e investe em um desenvolvimento do cenário que só pode ser coletivo. Musicalmente, esforça-se na sustentação de paradoxos que tensionam os limites do fazer artístico. Sua música combina de maneira muito sensível referências antigas e atuais, paisagens contemplativas e dinâmicas, instrumentos acústicos e elétricos, texturas analógicas e digitais, grooves minimalistas e intensos, tudo isso em narrativas encharcadas de sentimento.

Com capa de Gabriel Rolim e masterização de RHR, Mycelium Network traz um conjunto de cenas que se conectam de maneira sutil através do subterrâneo do disco. Paisagens e elementos vão e vêm de maneira circular, criando um território familiar que oscila entre momentos de maior introspecção e nostalgia e pontos de ebulição e euforia, todos carregados de uma intensidade muito sincera. Para criar este fluxo de sensações, Tha_Guts utiliza uma combinação de instrumentos acústicos como pianos, vozes e trompetes com beats minimalistas, grooves consistentes, elementos costurados com samples de sons da natureza e do cotidiano.

Arte: Gabriel Rolim

O disco é aberto por “Jacques”, música que se apresenta através da textura nostálgica das gravações em fita e da tranquilidade do som da água correndo, ferramenta muito utilizada na estética lo-fi. As vozes de pessoas conversando ao fundo e o barulho dos copos batendo lembram o conforto de uma sala de jantar, o que adiciona à nostalgia a sensação de uma memória estranhamente familiar. O piano e a voz aconchegante enchem a cena de beleza, o que fica acentuado pelo uso da nota sensível da escala menor harmônica.

“Burning In My Soul” dá sequência ao álbum com um groove mântrico, aquecido por um vocal de fundo que remete às labaredas de uma fogueira, enquanto a percussão, em contraponto com os granulados da fita, lembram os estalos da lenha. Os loops de vocais dão um tom urbano e moderno. Em “Deeper”, retornamos a uma paisagem introspectiva, onde melodias paralelas e polirritmia em espiral nos conduzem à profundidade do inconsciente, enquanto a voz, no imperativo, comanda e exige coragem: “go deeper”. A faixa termina com a chuva caindo e uma sensação de solidão. As referências aos primeiros trabalhos de Nicolas Jaar ficam evidentes nos beats minimalistas e melodias emotivas que percorrem o disco.

“Saudade [Piano Mix]” é um lamento em Si Menor, onde o piano assume o drama e a exuberância máximas. Os sons de sala de jantar retornam no início da faixa, criando a sensação de aconchego, que contrasta com o pranto tocado no piano de maneira despretensiosa, como em uma canja na madrugada de um boteco. A track termina com o canto dos pássaros, que anunciam o fim da chuva. A forma como os sons do segundo plano ganham evidência na composição da cena lembram a música programática, um tipo de música que evoca imagens extra-musicais.

A partir de “Error”, o disco tem uma virada de chave, assumindo fluxos que conduzem mais à pista. Modulações digitais e elementos robóticos dão forma a uma faixa que se comunica através do grave e tem menos elementos dispersos. “Real Song” parece começar com um pulso acelerado, mantendo o groove de pista e adicionando camadas de vocais que se misturam a um baixo levemente ácido, mas ainda aveludado. A forma como o trance comparece de maneira discreta, dando cores épicas às músicas, lembra os trabalhos de Four Tet.

Em “Saudade”, vozes, brindes e pássaros retornam mais uma vez, e a paisagem deixa de ser segundo plano e torna-se protagonista, entrando nos loops que dão o ritmo à track e confundindo-se com os demais instrumentos. Um mosaico ganha corpo com o beat e o baixo, que estavam ausentes na “Piano Mix”. Em “Time”, a chuva volta e uma voz em francês lembra a televisão ligada. Uma voz canta em inglês e outra filosofa sobre o tempo em português, apresentando vários idiomas na mesma música, recurso muito utilizado por Manu Chao, assim como samples do cotidiano. O som de um objeto que cai e rola, dando a sensação de perdermos algo, aparece novamente. O piano Rhodes faz a ponte entre elétrico e acústico e o trompete se encarrega de dar o tom dramático, conectando o final do disco com o restante do álbum.

Mycelium Network é um disco conceitual que soa extremamente generoso. Tha_Guts pega o ouvinte pela mão e conduz de maneira aconchegante, mesmo que por vezes melancólica, em um passeio pelo percurso narrativo do álbum. Um trabalho que aposta nas conexões como marca da nossa passagem pelo mundo, e que apresenta um repertório que mistura os traços do que consideramos “cultural” e “natural”, evidenciando que nossas existências são fluxos de relações, e que tais dicotomias também não passam de invenções. Dessa forma, ao apropriar-se da imagem dos micélios enquanto inspiração filosófica para sua produção artística, Tha_Guts mobiliza discussões importantes e atuais sobre nossa forma de entender a realidade e se relacionar com ela.

Foto: Divulgação

Uma grande distinção que se apresenta de forma radical quando confrontamos algumas visões de mundo alternativas e não hegemônicas com o pensamento racionalista e antropocêntrico europeu, imposto ao mundo a partir do violento processo de colonização, é a maneira de conceber os seres e suas relações. Enquanto o Iluminismo e a Modernidade consolidaram uma concepção individual, onde cada parte do mundo está separada e existe de maneira independente, muitos povos originários sustentam cosmologias em que todos os entes, humanos e não humanos, orgânicos e minerais, físicos e espirituais, estão conectados.

Diferente deste modo de vivenciar o mundo, onde nossa existência está conectada, a cultura ocidental impôs à condição humana uma sensação de descontinuidade extremamente angustiante. Este tema foi explorado pelo escritor francês Georges Bataille (1897-1962). Ele propõe que as transgressões efetuadas pela humanidade em relação aos seus próprios interditos, aos pactos de sociabilidade, seriam uma maneira fugaz de superar o sentimento de desconexão, práticas que ele chama de erotismo. Nesse aspecto, a arte pode ser pensada como atividade erótica, na medida em que dá expressão aos afetos que constituem nossos corpos, atravessando-os e produzindo contato.

As linguagens artísticas, ao tomarem de empréstimo elementos da natureza e da cultura, produzindo novas configurações, podem contribuir na superação de tais dicotomias, típicas do Ocidente. Além da arte, a ciência tem se interessado cada vez mais pela sabedoria da natureza, para além da mera objetificação. Neste aspecto, o micélio é uma formação misteriosa que serve de inspiração filosófica. As redes produzidas pelas hifas dos fungos, como os cogumelos, que conectam grandes extensões de ecossistemas vegetais, permitindo a troca de informações e nutrientes, dão pistas interessantes de como a realidade é fluida e interdependente, algo evocado por Tha_Guts em Mycelium Network.

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13/06/2022

Gabriel Bernardo e Vitor Karpss