Ao comentar uma de suas últimas respostas durante a entrevista com um “enquanto houver luz…”, Alessandra Leão completou minha deixa com: “… a gente tá vivo!”. Este é o cerne de ACESA, robusto projeto da cantora, compositora, percussionista e produtora musical que culmina no disco de mesmo nome lançado no YouTube no dia 17 de novembro, e nas plataformas digitais no dia seguinte. Quando Alessandra se revela mais acesa do que nunca, isto não significa que ela está no apogeu de sua luz. Significa que, para além da máxima potência, ela agora se revela consciente de que o estar ACESA é um movimento cíclico, e que o importante é aproveitar o que se pode tirar de melhor de cada iluminação. Do toco de vela, da brasa, da lua cheia, do sol a pino, o estar ACESA se impõe como um grito que barra o apagar de uma chama, o obscurantismo total, a tristeza que nos conduz à apatia.
Contemplado pelo edital Rumos Itaú Cultural 2017-2018, o processo se deu a partir de uma residência artística, na qual a artista dialogou com líderes espirituais, mestras, mestres e músicos por meio de caminhadas livres, sem rota ou ponto de chegada definidos. O conteúdo foi registrado em vídeo e deu vida a uma websérie, já disponível no canal oficial da artista no YouTube. Dessa experiência, ela migrou para a produção do álbum ACESA, no qual não chega sozinha. O produtor musical Caê Rolfsen divide com ela a produção e os arranjos, além de assumir os synths. Leão revesa as percussões com Mestre Nico, Abuhl Junior, Guilherme Kastrup e Maurício Badé. Entre as 10 faixas e três vinhetas que organizam o disco, cruzamos com Mestre Barachinha, do Maracatu Estrela Dourada, Mestra Nice Teles, do Cavalo-Marinho Estrela Brilhante, das cirandeiras Severina, Dulce Baracho e Lia de Itamaracá, da coquista e cirandeira Mestra Odete de Pilar, da Aldeia Ibiramã Kiriri do Acré, de Minas Gerais, dos músicos Siba, Caçapa, Helder Vasconcelos e Nilton Junior, além das cantoras Juçara Marçal, Laura Tamiana, e da também rabequeira Renata Rosa.
Abordando a espiritualidade, festa, sexualidade, tônus e transmutações pessoais, ACESA, na verdade, evoca o estar vivo em seu estado visceral. Do impulso elétrico dos synths e do impulso da mão que toca o tambor, Alessandra Leão celebra e reivindica a consciência do aqui enquanto houver agora. Conversamos com a artista sobre as etapas do longo projeto, a forma com a qual lidamos com as tradições populares, as buscas por novas sonoridades entre orgânico e sintético e os perigos de recusar o movimento. Ponha o disco para tocar e siga abaixo para conferir a conversa inteirinha!
Alessandra, muito obrigada por ter topado conversar com a Noize; também aproveito a ocasião para parabenizar você por esse feito que é o projeto todo de Acesa: residência artística, websérie e disco. Quando ele nasce em você e quais foram as primeiras bases levantadas?
“ACESA” é um projeto super longo, de antes da aprovação no edital Rumos, do Itaú Cultural, de onde vem o aporte financeiro. Uma parte dele sempre precisou existir no meu trabalho, por conta da escola musical que venho, em que se fala muito sobre essa música que é feita, entender da onde ela vem, além do desejo muito grande de que as pessoas conheçam esse repertório, saibam e discutam sobre ele. E não é só musical, é um repertório artístico muito amplo, envolve várias linguagens. Acho que ACESA parte dessa vontade de dizer: “Olha que maravilhoso esse mundo”, “Olha que música foda”, “Olha que artistas fodas”. O Rumos é um edital super abrangente, é por isso que o acho tão foda. Quando o encontrei , achei essa forma de viabilizar essa ideia que já era tão antiga de poder mostrar quem são essas pessoas, é no sentido de querer que mais e mais pessoas conheçam esses artistas maravilhosos. E “ACESA” me aqueceu muito a alma, principalmente pelas conversas em caminhada, que funcionaram como residência artística para o disco dentro do projeto. A caminhada em deriva é um tipo muito específico. Não há ponto de chegada, você tem apenas o ponto de partida, e é interessante como isso atravessa o processo da conversa, como isso transforma a própria criação. Eu canto e componho muito enquanto eu caminho. As caminhadas em deriva servem de processo de criação para muitas áreas, são processos fortes para muita gente. Existem muitos estudos e muitas pessoas praticando, exercitando isso filosoficamente, e a Vânia Medeiros, que é minha parceira de longa data, é artista visual e lançou um livro chamado Cidade passo (2017), inspirado na pesquisa de mestrado dela em Arquitetura e Urbanismo, e, a partir disso, comecei uma série no meu Instagram chamada “música passo” (acesse aqui), mais como um registro poético meu, como uma primeira materialização pública disso. Agora, se desdobra em disco, ACESA nasce muito dessas caminhadas. O livro de Vânia me moveu muito por eu ter achado um nome para uma coisa que eu já fazia muito intuitivamente.
Essas caminhadas livres são uma etapa capital para os resultados alcançados, né? Quando você percebeu que precisava de um espaço de residência artística neste projeto? Como essa experiência modificou você enquanto artista?
No Brasil, a residência artística conta com escassez de recursos, mas também de uma falta de entendimento, principalmente na área da música. Acho que em outras linguagens, como as artes visuais, o teatro, a dança, existem processos grandes de imersão. Na música, a gente meio que vai fazendo, né? Eu sempre gosto de pensar um disco com conceito mesmo, com uma certa dramaturgia, de pensar as coisas interligadas, gosto dele como uma obra mesmo. Acho que isso tem muito a ver com a escola estética da qual venho, a que sempre cito e reverencio: a cultura popular. No Maracatu, não tem fronteiras, não é só música, nada é só uma linguagem, as coisas são muito fluídas. Maracatu é música, é também poesia, dança, artes visuais [ Alessandra toca uma gola de vestimenta típica do Maracatu, que tem pendurada na parede] Isso faz parte da da brincadeira, é tudo junto. É a vida, né? A vida se dá nessa forma entrelaçada mesmo.
De certa forma, eu venho buscando ter esse atravessamento de linguagens no meu trabalho desde sempre, querendo que a música possa ser fruto disso. Gosto muito de fazer trilha para teatro, gosto da música também da música à serviço de uma outra narrativa. A trilogia de EPs [formada por Pedra de Sal (2014), Aço (2015), e Língua (2015)] tinha como disparador não um disco, mas um livro, o dei para todo mundo ler, para que todo mundo mergulhasse naquele assunto e fossem atravessados por ele. Isso az parte do jeito que eu gosto de trabalhar, gosto que as pessoas entrem no processo logo cedo; no Macumbas e Catimbós, por exemplo, a equipe de fotografia e de direção de arte estava junto desde antes da gente colocar o pé no estúdio. Uma coisa alimenta a outra, transforma a outra. O ACESA nasce, então, da imersão que fizemos eu, Vânia, o Luan Cardoso, que é cineasta, e o Caçapa, que é músico, e nós quatro acabamos assinando a direção da série. Todos que foram entrando no projeto, foram apresentados a todo o percurso já realizado, para que também pudessem se amalgamar.
Muitas vezes é impossível pensar em residência artística no Brasil, pensar em um tempo para a criação. É inviável pelo dinheiro, muitas vezes, pela logística da vida mesmo. Às vezes é quase um luxo, quase tido como uma frescura. Acho que a criação pede um tempo de presença que, muitas vezes, a gente só consegue se parar e abrir um tempo para isso. Essa foi uma provocação para mim em ACESA, parar e abrir um tempo para isso. A forma de pensar os meus encontros mudou muito por conta disso. Sou uma pessoa que se interessa muito pelo outro, de saber como aquilo mexe com você.
Por acaso você relaciona isso à simbologia de algum Orixá?
Sim. A rua ensina, ela é movimento e, pensando nas macumbas, ela é o lugar onde o jogo acontece. Você não sai na rua sem pedir licença e autorização a Exu para atravessar, sem pedir a presença das Pombagiras ali com você, e esse é um projeto muito guiado por eles, com muito pedido de licença, muito pedido de proteção pra tá na rua, para que aqueles encontros acontecessem na forma de sua potência e sua plenitude. ACESA me transforma nisso, é um processo que a caminhada em deriva já convoca. Se eu caminho para ir até o centro, por que tenho que resolver uma coisa x , meu foco de atenção também passa pelo deslocamento, mas está no ponto de chegada. Uma conversa que se faça em uma caminhada em deriva, se a gente se coloca à disposição para se perder, para que a rua responda, para que o caminho mostre o que fazer, pra onde ir, é algo que vai nos exigir um estado de presença muito grande, quase uma meditação. Ela convoca você a olhar para o caminho, entendê-lo, observar o espaço, o modo como ele atravessa a caminhada e meu ritmo, como tudo isso vai depender do clima…
Alessadra, às vezes sinto que a cultura popular é colocada no lugar do regionalismo, e também como se, por ser orgânico, ancestral, fosse algo do passado, que apontasse para o lado oposto ao da inovação. Como foi para você, então, buscar novos caminhos para ACESA a partir da troca com quem está na linha de frente da manutenção da tradição popular?
Nossa, esse é um tema que dá umas três horas de conversa. Quem tem esse olhar é quem não tem proximidade com a tradição popular, é quem a olha de longe. Nada é estático; a tradição não é estática, nunca foi, nem vai ser. Um Cavalo-Marinho hoje é muito diferente do Cavalo-Marinho que eu conheci há 25 anos. Acho que pensar na tradição como algo estático é como entender que os artistas que estão ali, envolvidos naquela cultura, fossem meros reprodutores, e não artistas-criadores.
Por exemplo, o Maracatu de Baque Solto é uma brincadeira na qual a poesia vem no improviso, uma brincadeira que dura umas seis, oito horas. É uma temporalidade muito dilatada, né? Ainda mais se a gente pensar no hábito do mercado e do expectador de música, que vê um show de uma hora e, depois, vê um de duas horas, mas achando que tá longo demais. Ou que vê um repertório em que a música tem que ter três minutos, que mais do que quatro minutos é uma música muito longa. Tem uma outra temporalidade posta. Mas o Maracatu é algo que tá sendo criado e recriado todo o ano, cotidianamente; uma gola, como essa aqui [Alessandra toca na mesma gola que compõe sua parede] tem muitos artistas por trás, que estão repensando esses desenhos, bordando novas peças, mudando traços, se atravessando por novos olhares, mantendo também essa estética, porque é uma escola visual, mas que está em transformação. O material que se usa em uma gola hoje não é o mesmo que se usa há 50 anos, logo, já não é a mesma.
Pra quem acha que a tradição é algo estático, congelado, eu digo: é muito mais rápido do que você imagina. A poesia gira durante oito horas, a criação tá sendo feita ali na sua frente, na sua cara, está dialogando com tudo que está acontecendo no mundo e naquele espaço; Toda a tradição que tem improviso vai falar sobre o cotidiano, então, é algo que tá sempre em transformação.
Eu não vejo o meu trabalho como uma inovação da tradição, vejo o meu trabalho como o som que tá na minha cabeça. Não quero fazer resgate de nada, aliás, resgate é uma palavra que, nesse caso, eu combato sempre. Ela pressupõe que as pessoas que são da tradição e mantêm os grupos são incapacitadas de manter aquilo. Incapaz sou eu de manter aquilo! Eu tenho a tradição popular como um escola estética, musical, que também me forma enquanto gente. Eu não quero melhorar nada, o Maracatu é perfeito! (risos)
Você disse que poderia ficar três hora falando sobre isso, mas conseguiu sintetizar de uma forma bem poderosa. Lamento o fato de que, muitas vezes, o status quo condiciona um olhar para essas tradições que está muito conectado ao próprio processo de colonização ao qual fomos submetidos nos Brasil…
Esse olhar de que a gente precisa resgatar, salvaguardar… é muito delicado, é um processo muito colonizador. Quando escuto isso, existe um subtexto nesse pensamento que às vezes não é verbalizado, é oculto, de que é justamente esse pessoal “preto”, “indígena”, “pobre”, “analfabeto” que não sabe fazer, que não tem condição de manter a tradição. Eu digo: “Quem não sabe é tu!”. É uma visão que vêm carregada de muitos preconceitos. Normalmente, quando se fala em resgate, se vê a figura de uma pessoa branca, acadêmica, que venha pra contar aquela história e dizer como é. Eu acho que a gente já estamos em um tempo de mundo em que a gente pode dar um passo pra trás e dizer “Como é para você? Me conte você a sua história”. A gente já está num tempo de mundo em que podemos andar juntos. Eu quero que as pessoas escutem artistas como Odete cantar, que entendam que, mesmo se não virarem grandes ouvintes dessa música, ela é uma joia, porque colocar isso enquanto algo menor é algo cruel, ainda mais quando se leva isso para o mercado da música. O show de Odete vale menos que o meu, a contratação do grupo de Ana do Coco, o Coco do Novo Quilombo, é muito baixo. O Maracatu recebe um cachê ridículo. Então, isso não é só traduzido em questões subjetivas, mas também materiais. Os palcos de cultura popular são os que têm os piores sons, as piores estruturas, as piores luzes, as piores contratações, as que mais demoram a serem pagas, então isso é reproduzido e amplificado em todas as etapas em que a gente lida com a cultura popular.
Com certeza. É muito importante um comentário como esse, para que a gente consiga fazer essa discussão circular pelo próprio circuito independente e seus agitadores culturais…
Eu já ouvi coisas do tipo: “Não vou pagar um cachê alto, senão vou inflacionar o mercado”. Pois, inflacione! As pessoas merecem se sentir respeitadas e valorizadas por aquilo. Você não pode não pagar um valor alto para não inflacionar o mercado, pelo amor de Deus, paga essa grana.
Nossa, só imagino sua indignação, Alessandra. Bem, minha próxima pergunta retorna ao disco ACESA; a mistura entre percussão e sintetizadores fazem do álbum inauguram um novo momento dentro da sua carreira. Do ponto de vista da produção musical, quais foram os principais desafios na hora de equilibrar e entrelaçar o orgânico e sintético? E que e novas percepções você sente que só foram alcançados pela incorporação do sintético?
Bem, já na trilogia de EPs, que teve produção musical de Caçapa – arranjos quase todos dele -, a gente começou a usar os sintetizadores junto das guitarras, essa foi a primeira experiência de músicas minhas com synths. Sinto que ACESA foi o disco em que eu mais tive dúvidas sobre a formação instrumental. Depois de Macumbas e Catimbós, um disco todo só de percussão e voz, e de ter vindo de outros discos com cordas e percussão, cordas e bateria, eu tinha a sensação de que eu poderia ir para qualquer lugar, o que é desafiador porque também dá uma perdida. Mais uma vez, a deriva atuando nesse processo. Em ACESA, eu tinha como pontos de partida o coco e a ciranda, mas eu tive muita dúvida de que sons seriam esses que viriam, de que banda seria essa, já pensando em palco. Foi um período muito difícil e demorado até achar essa formação, mas acabou que, quando eu comecei a fazer a produção com o Caê, definimos que seria essa percussão mais tradicional do coco e da ciranda, que não é tão fundamentada no ilu, mas, sim, no bumbo, alfaia, surdinho, e que pensaríamos os sintetizadores como se fossem instrumentos de sopro, já que a ciranda tem uma linha de sopro muito forte. Então, o disco não tem harmonia em acorde, os sintetizadores fazem linhas melódicas, o que tem a ver com meus outros discos também porque Caçapa compõe muito usando a técnica do contraponto, e pra cá pedi pra Caê fazer isso, seguir esse caminho de linhas melódicas, não tanto de harmonia, o que define muito o caminho estético do som. Às vezes ele dizia “Vamos colocar um acorde aqui, vai resolver tão mais fácil…” e eu dizia “Não, a gente vai quebrar o juízo pra achar a melodia daqui!” risos. Quando as melodias se juntam, elas formam uma harmonia. A escolha do sintetizador se deu por eu achar que ele é um instrumento muito misterioso e maravilhoso; você parte de um impulso elétrico e, a partir dele, você pode gerar muitos sons diferentes, infinitas combinações de sons porque você vai mexendo nos parâmetros de sons, vai sintetizando e recombinando eles. Acho que ele traz esses elementos muito fortes, muito amplos que ele permite a criação de sons muito amplos, tem esse tesão em buscar os sons. Outra escolha, que acho muito assertiva, é que tudo é tocado, então, mesmo eu utilizando vários elementos da música eletrônica, com os samples e o próprio sintetizador, tudo é tocado. Não tem separação entre o que é uma coisa e o que é outra.
A partir de todo esse novo processo, das caminhadas livres, e de novas sonoridades, como foi compor liricamente para ACESA?
Existem muitas temporalidades. “Levanta o Pó” foi uma composição que fiz pra Elza Soares em 2017, para o Deus É Mulher (2018), mas acabou não entrando no disco, mas acho que é a mais antiga do repertório. “A Hora é Minha” eu fiz para Lia de Itamaracá, para Ciranda Sem Fim (2019), e também não entrou, mas eu queria muito que ela gravasse – acho muito que a hora é de Lia mesmo, ela está em um momento da vida e da carreira dela muito potente e bonita, é como deveria ter sido desde o início. As outras eu fiz ao longo do processo do disco mesmo, algumas durante a residência. Fiz muitas caminhadas sozinhas, várias nasceram disso. Quando eu comecei a fazer a produção em si do disco, só “Borda da Pele” que não estava finalizada, quando Caê entrou, fechamos a segunda parte em estúdio. Eu tive muita dificuldade de criar, apesar disso parecer contraditório, já que eu estou lançando um disco, mas o lanço em um tempo em que eu nunca li tão pouco, nunca compus nem escrevi tão pouco, nunca me dediquei e estive presente tão pouco pra escrita e pra criação. Essa dificuldade do tem pandêmico, com tantas mudanças e tantas perdas. Acho que esse disco tem o impulso muito forte de Caê, que é muito rápido, tem muitas ideias. E é um disco feito em muitas madrugadas, o que, para mim, é realmente muito difícil. “Pé de Baobá” fiz para Guitinho da Xambá, que faleceu no começo do ano, e até acabei dedicando também para outros amigos que infelizmente partiram em 2021. Mas foi feita muito pra ele, a partir de uma história de um pé de Baobá que ele plantou. O velório de Guitinho, que é da Nação Xambá, foi uma cosia muito profunda, é um ritual em que se canta muito. Em meio à tristeza da sua partida, tinha a frase: “já comeu, já bebe, já dançou”, que é linda. Quando a entidade incorpora no terreiro, ela trabalha, dentro do candomblé, da jurema e da umbanda, cantando, bebendo e dançando. Foi uma coisa que ouvi muito nesse velório dele e que foi tirando um pouco da minha tristeza, e me fez entender que nós, aqui, somos essas entidades incorporadas, que a gente tá aqui também pra comer, beber e dançar. E o trabalho da gente que se dê assim ao longo dessa vida. Então, apesar de ser uma música que fala de uma despedida, acho que ela é carregada de muita vida, que é o grande legado de Guitinho. Daqui pouco sou eu, daqui a pouco é você, todos nós vamos. Estamos aqui pra quê? Vamos repensar pra quê a gente tá aqui. Eu tô aqui pra beber, comer, rezar, cantar, que o trabalho se dê dessa forma, que a minha existência se dê dessa forma.
De acordo com o release, ACESA é um grito, um suspiro, um convite aos usos do corpo. Como esse convite à experiência do corpo como plataforma do transe pode nos ajudar em momentos tão caóticos e de crise, como os que estamos experimentando aqui no Brasil?
Um pouco antes de lançar esse disco aconteceu uma coisa, que acontece em todos, que é sentir um cagaço. Antes dos discos irem pro mundo, sempre me dá um “Meu deus, será que é isso mesmo que eu deveria ter feito?”, “Será que vai fazer sentido? E fazer sentido nesse momento do mundo?”, sempre tenho essa angústia. Em ACESA, a gente estava em um processo muito intenso e, de certa forma, meio fragmentado, então, eu demorei muito pra ouvir o disco inteiro. Quando ouvi, a primeira pergunta, o primeiro cagaço que me deu foi: “Será que é um disco muito festivo pra esse momento do mundo?”. Eu já tinha me perguntado isso, obviamente, e era esse o desejo, que fosse mesmo um disco potente pela festa, pela dança, pelo transe. O transe pela festa, não apenas o transe religioso; o transe da música, do deslocamento, do movimento, que tem o seu sagrado de muitas formas. Mas eu me perguntei isso no ACESA, será que não está um disco muito feliz? No lançamento de “Borda da Pele”, um ou dois dias antes de subir pra plataforma, eu me perguntei: “Será que eu não coloco outra música? Essa tá muito forte, muito convidativa…”. Mas não, era só meu medo falando. Quando fui conversando com pessoas, me desarmando, me permitindo ouvir o disco com mais afastamento, eu senti em mim um desejo de dançar que há muito tempo eu não tinha. Senti um desejo de voltar a andar na rua, que fazia muito tempo que não tinha e, além de ter muito medo, senti vontade de encontrar com outras pessoas, de trocar mais com essas pessoas, senti vontade de ler o mundo. Quando eu consigo me afastar da produção, o disco me convida a me movimentar, a me mexer, a aceitar a alegria. convida a me mover e mexa, que eu aceite alegria. Acho que a gente tá num momento muito difícil como sociedade, planetariamente falando, mas, falando de Brasil, tá foda. Esse ciclo de depressão, ansiedade, de pânicos, e falo isso bem por mim, nos coloca num lugar de apatia de criação e de luta. É mais difícil de levantar da cama, tudo fica mais difícil e mais penoso, e como, dentro desse penoso que já tá tão grande, a gente ainda vai brigar? Como a gente ainda tenta botar as coisas no lugar? Acho que ACESA vem desse lugar da potência da festa, que já vinha antes mesmo da pandemia, esse acender pela festa, pela música. Eu acho que cantar esse repertório agora me lembra o quão potente é o estado de festa, de celebração. E que a gente pode fazer isso no meio do luto, que a gente pode e deve fazer isso em meio à tristeza, que a gente pode e deve ter essa alegria presa entre os dentes pra poder gritar, pra poder brigar, porque é esse êxtase, esse corpo pós-festa que tá cansado, mas tá dizendo “Que delícia que foi aquela noite!”, “Que delícia que foi amanhecer no Maracatu”, fui pra uma festa, cheguei de manhã em casa, e você acorda no outro dia, pode estar cansada, ter ressaca, mas você tem o lugar de um vigor que foi renovado ali. Isso pode acontecer de várias maneiras. Acho que as tradições ensinam isso, essa força do corpo e da alma, esse acender do corpo e da alma, porque é pra isso que a gente tá vivo: pra beber, comer e dançar (risos).
Alessandra, você falou muito do movimento, então, me ocorre perguntar justamente sobre o contrário: quando recusamos o movimento, a quem ou ao que estamos servindo?
[Alessandra fica um momento pensativa, em silêncio] Vieram várias coisas na cabeça: estamos servindo à Bolsonaro, mas estamos servindo à essa energia que ele materializa, que é a da tristeza, da ignorância, da apatia. Ele, talvez, materialize isso tudo, pelo menos pra mim. A gente tá servindo a esse projeto de poder que quer que a gente não cante, não toque, não pense, não se movimente, não dance, não transe, não goze, não se liberte, não desfaça os preconceitos, o oposto ao que o movimento nos convida. O antimovimento é a morte, é o estático, e não há nada estática na natureza. Um Orixá não vem num terreno porque tá parado, ele vem pelo movimento. A energia do mundo toda tá em movimento. O não movimento é a morte.