.45 | Direto da Colômbia: os mistérios da cultura picotera do vinil

15/07/2015

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Stéfanis Caiaffo

Por: Stéfanis Caiaffo

Fotos: Stéfanis Caiaffo

15/07/2015

Já tive a chance de publicar as duas primeiras partes da trilogia sobre a cumbia aqui na coluna. A terceira, cujo tema é a cumbia contemporânea, já está por vir. A minha visita à Costa colombiana, porém, rendeu também inúmeras horas de conversa com Fabian Altahona, um dos principais entusiastas e certamente o principal divulgador da cultura dos sistemas de som locais, os Picós. Com extrema gentileza, ele me recebeu e me acompanhou pela cidade por cerca de uma semana. Seria impossível reproduzir aqui todas as histórias que ele me contou ao longo desses intensos dias de intercâmbio que passei não só com ele, mas também com sua família e seus amigos, bem como em contato com disqueiros e DJs locais. Ao percorrer dia-a-dia as lojas de discos, ao visitar alguns colecionadores e alguns sistemas de som nas periferias da cidade e também ao ganhar horas e horas em longos e detalhados papos sobre a cultura picotera sob as árvores que ornam a rua onde ainda hoje mora sua família, no afastado bairro de El Bosque, cidade de Barranquilla, percebi que deveria fazer uma coluna com este tema em específico.

Veja também:
.45 | Cumbia em três tempos Pt. 1
.45 | Cumbia em três tempos Pt. 2

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Se os sistemas de som jamaicanos já são muito bem conhecidos, ainda pende um olhar mais atento à cena da Colômbia, extremamente rica e original também. Além disso, na cultura picotera a cumbia não é necessariamente um início, um meio ou um fim: os Picós, nomes dados aos sistemas de som locais, eram verdadeiras antenas ligadas à música mundial pelos importantes portos que existem na Colômbia atlântica e fiquei realmente impressionado não somente com os acervos que estes sistemas de som têm, mas também com o conhecimento de causa daqueles que os mantém. A música mundial realmente soa ali e tive a chance de ouvir desde Fela Kuti até Gilberto Gil, passando por um sem-fim de música caribenha e colombiana em praticamente todas as verbenas que frequentei.

Pode-se dizer que Fabian, dentre todos que conheci, é um verdadeiro embaixador da música colombiana e de seus sistemas de som, tamanha é sua história, seu contato e seu interesse pelo tema, assim como tamanho já foi o serviço que ele prestou e ainda presta à divulgação desta cultura, seja recebendo pessoas como eu, curiosos, colecionadores, jornalistas e DJs, seja através de seu blog Africolombia, referência mundial em pesquisa sobre o tema. Abaixo, segue a tradução de algumas respostas que ele gentilmente me enviou numa entrevista por e-mail, feita a posteriori. Elas pretendem servir como divulgação inicial da cultura dos Picós. Para embrenhar-se no tema, porém, acesse o mar de informações que Fabian já publicou em seu blog ou vá pessoalmente encontrá-lo em sua cidade natal: acredite que valerá a pena!

Fabian Altahona

Fabian Altahona

Os Picós

Fabian AltahonaOs Picós são enormes aparelhagens de som colombianas, sistemas de som fabricados artesanalmente, decorados e pintados com figuras muito coloridas, ou “lâminas de fórmica”, bem como com alguns outros materiais como lâminas de metal ou um toldo ou tela onde se apresentam uma imagens representativas ou desenhos que identificam cada Picó. Esta cultura começou na costa ao norte da Colômbia, principalmente nas cidades de Cartagena, Barranquilla e Santa Marta. Eles se mantiveram como nos tempos originais entre os anos 60, 70 e 80, época onde começa o furor pelas melodias raras que chegavam aos portos da Colômbia, vindas de todos os rincões do mundo. Até mesmo nos anos 80 ainda se mantinha a estrutura tradicional do Picó: uma caixa de som de grandes dimensões, com enormes alto-falantes e cornetas. As aparelhagens tinham também seus próprios sistemas de amplificação, usualmente amplificadores valvulados. Fora isso, estruturas para os toca-discos e também grandes baús para os discos em si.

Nos anos 90 os Picós já foram incorporando novidades em termos de equipamento, como crossovers e mixers, bem como novas gerações de amplificadores mais modernos, fazendo com que o que anteriormente era analógico e monofônico passasse à tecnologia estéreo. Atualmente, graças ao resgate que venho fazendo através de meu blog Africolombia e à sua coleção de histórias e fotografias, bem como com a ajuda de muitos amigos colecionadores e amantes desta cultura, novamente os Picós voltam a ter sua forma tradicional, e estão retornando. Deve-se dizer que hoje já estão combinando a estrutura das caixas de som, bancadas e baús tradicionais com as tecnologias mais modernas de amplificação. Existem muito poucos que ainda utilizam os sistemas antigos de amplificação a válvula, como o Picó La Salsa de Puerto Rico, que existe há cerca de 35 anos no bairro El Bosque, em Barranquilla – isso para mencionar somente um deles.

A aparência clássica das caixas de som dos Picós

A aparência clássica das caixas de som dos Picós

O porto e um repertório eclético e raro

FabianOs Picós colombianos se caracterizaram e seguem tocando principalmente estilos clássicos da música, especialmente dos anos 70, ainda que isso dependa muito do picotero. Existem Picós que tocam estilos mais jovens como as Champetas Urbanas, mas sempre ouvimos temas clássicos tocando também. As músicas antigas, os clássicos, sempre se mantiveram nos repertórios. Existem os Picós chamados de Turbos, que são aqueles Picós clássicos, de caixas grandes, que regressaram. Com eles, regressou também a música mais clássica que costumavam tocar então. Os Picós tocavam também música brasileira e existem algumas melodias que seguiram tocando desde que chegaram aqui, e que seguem tocando não somente nos Picós, mas também em estações de rádio e clubes, os lugares que aqui são chamados de “estaderos de música”.

Para mencionar algumas melodias brasileiras e os apelidos através dos quais elas são conhecidas no ambiente picotero, isso porque os selos eram raspados e ninguém sabia exatamente o nome das músicas e dos artistas, posso citar as seguintes: Gilberto Gil – “Toda Menina Baiana”, conhecida como “La Mínima”, Chico Buarque – “Caçada”, conhecida como “La Culebra”, e Aparecida – “Terreiro de Mãe Nazinha”, conhecida como “La Vaca Paria”. Isso para citar somente alguns discos. Existem muitas histórias tanto sobre a chegada de discos africanos quanto sobre a chegada de melodias exóticas aqui, repertório que os Picós também costumavam tocar para além dos gêneros clássicos da música colombiana. Em Barranquilla e Cartagena, este movimento picotero e a chegada dos discos começa pelos portos. Com a chegada de mercadorias e de contrabando na região, vinham também marinheiros de todo o mundo e eles traziam suas músicas e seus discos. Os Picós fizeram e fazem parte deste movimento de compartilhamento e integração entre culturas e sempre tocaram tanto a música colombiana quanto música brasileira, mas também muita música africana e caribenha, ou aquilo que caísse nas mãos do picoteros. Ademais, com o fortalecimento da cultura, familiares e correspondentes que moravam fora do país passaram a procurar e enviar à Colômbia os mais diferentes registros musicais. A diversidade e a raridade do que se tocava eram parte fundamental para o reconhecimento de um Picó. Todos queriam ter músicas exclusivas e é por isso que, quando chegavam os discos, os selos eram raspados e as capas escondidas: na verdade, a cultura picotera vivia uma sadia guerra em torno da procura pela música mais exclusiva.

Os selos eram modificados para que não se descobrisse o conteúdo do disco

Os selos eram modificados para que não se descobrisse o conteúdo do disco

Verbenas de bairro, integração social

FabianA função dos Picós era a integração de bairro, a integração entre as famílias, a promoção da alegria de cada uma das pessoas. Eram uma alternativa de baile na vida das pessoas. Em muitos destes bailes, casais se formavam, amigos se conheciam. Os próprios nomes dos bailes já diziam um pouco da sua intenção: havia, por exemplo, o Burbujas de Amor e o Donde te Conocí. Isso simplesmente para mencionar dois. Cada um dos nomes mostrava, de certa forma, a intenção que tinha ao reunir gente, ao concentrar a massa e mostrar este espetáculo de música, som e arte, todo o tipo de gêneros musicais do mundo em um só lugar, uma discoteca mundial ambulante. Os Picós tocavam todos os gêneros, dependendo das exigências dos dançarinos e também do discurso e da pesquisa do picotero, ou DJ. Música africana, brasileira, caribenha e, claro, colombiana: Champetas criolas locais, Salsa, Vallenato e demais ritmos daqui, tudo se podia ouvir. A Champeta Urbana é uma nova proposta e já soa muito mais eletrônica, mas está na moda hoje em dia. Estas discotecas ambulantes percorriam diferentes bairros da Costa e ofereciam uma alternativa de baile para aquelas pessoas que não tinham condições ou tinham outros planos para além de frequentar, por exemplo, uma balada comercial comum e corrente.

Anúncio de uma verbena de bairro na periferia de Barranquilla

Anúncio de uma verbena de bairro na periferia de Barranquilla

Um história entre os Picós

FabianAntes de mais nada, devo dizer que nasci em Barranquilla, Colômbia, no Bairro Kennedy. Desde o princípio dos anos 80, meus irmãos maiores e também meus vizinhos estiveram ligados aos “bailes de verbenas” ou “bailes de Picós”. Alguns desses bailes eram feitos para arrecadar fundos para ações no bairro, além de servirem para divertimento e como espaço de integração entre vizinhos. O baile do bairro onde nasci chamava-se Los Mochileros Del Barrio Kennedy. Esses bailes eram organizados em datas especiais, principalmente no Carnaval. Eu, desde pequeno, lembro de Picós em funcionamento. Os bailes aconteciam fechando meia quadra da rua onde morávamos com lâminas de zinco e, em alguns casos, com palmeiras ou ramos de coqueiro, deixando algumas entradas para que as pessoas pudessem ingressar e desfrutar da festa, do Picó. Geralmente os toca-discos estavam instalados no terraço da minha casa, ou na sala. Desde a minha infância, então, me acostumei a ver um picotero colocando vinis, observando seu reflexo nos vidros pintados que ornavam os toca-discos. Lembro da minha infância nos anos 80.

Existia uma emissora AM, La Voz de Las Estrellas, e eles apresentavam todas as tardes, das 15h às 16h, um programa chamado Salsa Socca, onde geralmente iam picoteros para tocar os sucessos do momento em seus Picós. Eu não tinha dinheiro para comprar fitas cassette, então roubava fitas de meus irmãos e ia à casa de um amigo que tinha um antigo gravador para gravar os novos sucessos sobre a música que já existia nas fitas. Introduzia pedaços de papel nas bordas ou extremos das fitas para poder gravar por cima e eles ficavam com muita raiva disso quando iam escutar seus cassetes e encontravam as gravações que eu havia realizado. Recordo também que, no bairro Kennedy, onde eu morava, construíamos desenhos ou caricaturas dos Picós em folhas de papel, e também realizávamos os famosos duelos ou batalhas picoteras, isso também com os colegas de colégio ou companheiros de estudo. Às vezes também desenhava em cima de um tronco de madeira a imagem de um de meus Picós favoritos, El Dragón, e num tronco retangular uma espécie de toca-discos. Desenhava as caixas de som também, essas nas paredes do pátio de casa, e assim simulava um baile. Essa era minha maneira de imaginar um baile no pátio da minha casa.

Fotografias das fitas cassete que Fabian ainda guarda da sua infância

Africolombia, uma referência mundial

Fabian Essas vivências e lembranças dos bailes do meu bairro, junto com meus estudos na área de Sistemas, me ajudaram a criar meu blog Africolombia, um ponto de encontro entre duas culturas, a africana e a colombiana. Com o blog, com fotografias, quis mostrar ao mundo, às pessoas que não a conheciam, esta bela cultura. E também mostrar tudo isso, esses arquivos todos, às pessoas daqui da Costa que sempre se identificaram com a cultura picotera, fazer estes registros chegarem a elas, onde quer que estejam hoje. Ademais, nos anos 70 e 80 era um costume raspar ou rasgar os selos dos vinis, bem como esconder suas capas, isso para que ninguém os reconhecesse e eles se mantivessem como peças exclusivas de alguns picoteros. Com a ajuda de DJs, colecionadores e amantes dos discos, com meu blog também busquei uma maneira de catalogar toda esta informação até então desconhecida e consegui identificar muito do que se tocava então.

Estou envolvido com os Picós há mais ou menos 25 anos, desde que era pequeno, desde que vi pela primeira vez uma aparelhagem, um sistema de som. Humildemente posso dizer que sempre tive interesse e amor por esta cultura, pelo menos desde que tenho lembranças, já aos 8 ou 9 anos de idade. Sempre dediquei parte da minha vida aos Picós e isso sempre foi meu hobby. Podemos dizer que nasci ao lado de um Picó, que desde muito tempo tocavam e ainda tocam nos bairros mais humildes de Barranquilla. Tive a oportunidade de mostrar esta bela cultura ao mundo através desta plataforma chamada internet. Nunca me imaginei num avião, voando ao México e me apresentando em uma sala ao lado da pesquisadora e fotógrafa suíça Mirjam Wirz, muito menos imaginei voar à Europa para fazer isso, como já fiz também. Um dia me sentei em frente a um computador e comecei a mostrar pras pessoas as fotografias de bailes de Picós, assim como a música da minha região, a Costa da Colômbia. Nunca imaginei que isso pudesse ter tanta força. Há poucos dias, meu amigo Lucho Meza, lendário picotero em uma das aparelhagens mais importantes e representativas de Barraquilla, a quem admiro e respeito há muitos anos, apresentou-se em um baile internacional em Madrid, na Espanha. Mostrar esta bela cultura ao mundo, ajudar para que este sonho se torne realidade, isso me dá uma alegria imensa. Ele talvez tenha realizado um sonho ao atravessar o mar e representar nosso povo e seus colecionadores, todos aqueles que antes permaneciam no anonimato, na marginalidade e na obscuridade das periferias da Costa e agora se apresentam em grandes festas na Europa. Neste caso, em Madrid, em uma festa organizada por uma aparelhagem que é uma réplica de um Picó colombiano e chama-se Chico Trópico. Já recebi pessoas de várias partes do mundo para documentários e buscas de registros em vinis colombianos e afro-latinos. Também já tive a chance de tocar a música picotera em outros lugares e vejo que o público sempre gosta e se anima, que gosta de nosso estilo, de nossa proposta. Agora tenho planos de difundir nossa cultura em outros países, como França, Inglaterra, Estados Unidos e muitos mais, qualquer lugar onde me convidem para ir com este projeto que tanto me apaixona.

O blog Africolombia é referência mundial em pesquisa sobre a música colombiana

O blog Africolombia é referência mundial em pesquisa sobre a música colombiana

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15/07/2015

Stéfanis Caiaffo a.k.a. Dr. Caiaffo é residente da Festa VooDoo, em Porto Alegre, e da festa Bossa Negra, em Santos.
Stéfanis Caiaffo

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