Entrevista | Racismo, machismo e apropriação cultural aos olhos de Emicida

02/08/2016

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: José de Holanda/Divulgação

02/08/2016

Faz pouco mais de dez anos que o Emicida começou a soltar suas primeiras rimas nas batalhas de MCs de São Paulo e quanta coisa mudou de lá pra cá. Hoje, com dois discos elogiadíssimos, o rapper goza de uma posição privilegiada no cenário musical, onde seu talento é reconhecido e prestigiado e o teor do seu discurso não tem necessidade alguma de ser moldado a interesses comerciais externos.

Emicida é um artista independente que sabe trabalhar em parceria com o grande mercado da música sem ser deglutido por ele. O sucesso de um disco com críticas tão pesadas quanto as Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa… (2015) ilustra o potencial de atuação dele enquanto um músico legitimamente popular. Enaltecendo as raízes africanas (que são tanto dele quanto do próprio Brasil), Emicida faz um trabalho didático que, muitas vezes, é negligenciado por instituições sociais básicas como a escola e a família.

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Ainda é raro ouvirmos dos pais e professores informações sobre a África que não se baseiem ao redor do racismo e/ou do que houve no período da escravidão. Na entrevista que você lê abaixo, o rapper lembra que seus “livros de história foram os discos” e a sua obra atual também se propõe a passar esse sentimento em quem a ouve.

Conversamos também sobre o vínculo sentimental e artístico que Emicida tem com sua mãe, Jacira Roque de Oliveira, a Dona Jacira que participa da faixa “Mãe” e do clipe de “Boa Esperança”. O debate sobre apropriação cultural também está na entrevista, assim como a resposta de Emicida às acusações de que seu clipe mais recente, “Madagascar”, apresenta um olhar machista.

Leia abaixo a entrevista feita em parceria com Lucas Neves.

Você já disse várias vezes que foi salvo pela literatura e pelo hip hop. Como se sente proporcionando isso para outras pessoas hoje?
Eu sinto que eu devia ler mais (Risos). Tá ligado? Acho que eu tinha que voltar a estudar. O que eu acho mais interessante disso na minha carreira é que eu consigo ser um ponto que atrai o olhar da molecada pra uma coisa, prende a atenção deles, e fala tipo: “Meu, da hora, mas olha isso aqui também”. Aí a gente pode apresentar uns livros, um outro tipo de referência pros moleques se construírem enquanto seres humanos. Eu gosto muito de pensar que construo minha carreira passeando por essa linha, a gente consegue criar um contexto foda, se diverte fazendo isso, e ainda tem uma base educacional muito grande no que fazemos. Não é o principal? Não, não é. Mas é uma coisa que é importante pra caramba dentro do que a gente faz e que nasceu de uma maneira natural, meio involuntária até, mas é incrível ver a força que isso ganhou. E é um espaço que eu não tive quando era menor, eu não tive alguém que falasse pra mim: “lê”. Tá ligado? Quem me falou pra ler foi o hip hop, através das músicas. Tem uma coisa muito louca, na nossa geração a maioria de nós não teve pai. Quem foram nossos pais? Foram os caras que nós ouvíamos nos discos. Foi assim que construímos o que é ser um homem adulto, o que é ser um ser humano. Claro, com orientação das nossas mães, só que construído com esse norte apontado pela cultura. Eu falo isso na “Ubuntu Fristaili”: eles não vão entender que nossos livros de história foram os discos. Tá ligado? Isso é profundo pra caralho.

Sobre isso de atingir o público, o último disco tem melodias bem pop e um discurso super forte. Isso foi pensado pra que o discurso entrasse mais fácil no iPod das pessoas?
Eu já estava no iPod das pessoas. [Isso] é um tipo de ambição comercial que eu não tenho. Tipo, “ah, vou fazer a música desse jeito porque assim mais pessoas vão ouvir”. Isso é uma parada que, graças a Deus, é muito distante da minha maneira de ver o mundo. O que acontece é: a música fala diretamente com meu estado de espírito. Eu tô num momento mais tranquilo da minha vida. Mais maduro… E quando você começa a se sentir mais velho, mais maduro, você começa a querer conversar, querer entender mais. O disco passeia por esse lado muito mais porque eu estava disposto a criar um disco que dialogasse, que conversasse com você, independente de você ser um preto de favela ou ser um maluco branco do condomínio. Foi baseado nisso. E você vê, foi uma coisa involuntária, foi uma atmosfera que a África me trouxe. A África me fez refletir sobre humanidade, que é um ponto que todos nós temos em comum, então se a gente tem esse ponto em comum, vamos iniciar o diálogo [a partir] disso. Eu não acho que as músicas do disco que são mais leves sejam necessariamente vazias. Tem muita coisa bacana que tá dizendo coisa importante pra caramba só que de um jeito musical. Desde o Doozicabraba [e a Revolução Silenciosa, EP de 2011] eu tava por fazer alguma coisa assim. Você vê que no Doozicabraba já tem uma coisa mais de se arriscar na melodia. Tipo, o refrão de “Zica, Vai Lá”, “Licença Aqui”, “Viva”… Sabe? Eu também tava andando mais com o Rael, vendo o Rael cantando eu queria cantar também. Mas ele canta de verdade, eu canto mais no Photoshop.

A luta contra o racismo sempre apareceu na sua carreira, mas nesse disco isso foi mais presente ainda…
Você acha?

Acho. Porque veio essa questão da África, de trabalhar os ancestrais… Parece que, ao atingir esse ponto de já estar consolidado, por já estar nos iPods, você conseguiu expandir esse discurso.
Mas tem uma parada muito louca aí, acho que a gente olha isso pelo ponto de vista errado. O disco, principalmente. Particularmente, eu não acho que o disco tenha como tema mais forte a luta contra o racismo. A gente já foi alimentado de tantos esteriótipos sobre a África que a gente espera isso, então encontramos em algumas coisas que podem ter um duplo sentido uma alusão a isso. Tem uma coisa que foi proposital: “Boa Esperança”, que foi o primeiro single do disco, veio muito forte falando disso. Então marcou o disco inteiro, tipo “essa vai ser a temática”. Mas existia uma viagem que era muito mais profunda. A gente é alimentado com muita informação torta sobre a África, acreditamos que a escravidão definiu o continente, sabe? Tudo que a gente recebe sobre a África se baseia em escravidão e racismo. Então, o disco abre e fecha passando por mil coisas. Ele passa por mil temas justamente pra dar a ideia de pluralidade gigantesca, tem mil coisas dentro da África e a gente fala de racismo. Que é uma coisa que foi levada pra lá, tá ligado? É a maneira como o Ocidente olha pra África, não é a maneira como a África olha para o espelho. Então, eu queria tentar encontrar uma coisa que fosse mais parecida com uma pessoa africana olhando no espelho. Mesmo que eu seja um afro-descendente estrangeiro, ainda assim eu queria tentar viver no meio dos caras. Por isso que eu fiquei andando no meio das feiras dos caras, fui andar lá nas quebradas junto com eles nesses lugares que a gente fala nas músicas porque eu queria viver o dia a dia dos caras. Queria comer a comida que eles comem, dar risada com os caras, chorar com os caras, tá ligado? Pra gente poder ter uma experiência de vida onde eu falasse: “Mano, isso aqui é valioso pra caralho”. Tá ligado? Então, o racismo ele acontece no disco, é uma das pautas? Sim. Dentro da minha voz é até meio óbvio que isso aconteça. Mas existe uma outra construção, acho que é uma reflexão de intelectualidade mesmo, de beleza, de força, de sutileza. Por exemplo, eu acho que o ponto do disco mais forte sobre racismo é “Amoras”, o gol é “Amoras”, tá ligado? “Boa Esperança” é um arregaço, é um soco na cara que as pessoas gostam por causa do peso, por causa da quantidade de soco que tem no meio da música. Agora, aonde a gente deve se concentrar é em “Amoras”. Porque é ali que o racismo destrói as crianças. Tá ligado? Eu acho que a gente chega atrasado na vida das pessoas. E quando você tem uma experiência tipo “Amoras”, você tem uma chance de começar a conversar com os pequenos. Dar força pra que eles vençam essas barreiras, se elas vierem aparecer, a gente torce pra que não, mas a gente acredita que vai. Então você começa a alimentar essa auto-estima desde o começo, essa necessidade de você se sentir forte, se sentir bonito, se sentir inteligente, e ver referências ao seu redor, isso é importante pra caramba. E é, pra mim, o grande ponto do racismo, que ninguém vincula, porque acham que parece uma conversa infantil, mas é ali que tá. E o vazio dela me é interessante justamente porque não tem a palavra [racismo] nenhuma vez, é uma conversa de um pai com uma filha, da lógica da criança, e a lógica da criança desconsidera que uma pessoa de pele preta e uma pessoa de pele branca tem uma vida mais sofrida ou menos sofrida dentro da sociedade. É simplesmente entender que por ter a pele escura como uma amora madura ela também é bonita e doce.

A gente vê o rap hoje cada vez mais consolidado como uma face da música popular brasileira e isso tem trazido mudanças ao rap, você acha que o rap perde com isso um pouco da sua marginalidade sendo uma coisa mais…
Mercadológica? Talvez?

Talvez mais mercadológica. Hoje ele transita melhor…
Porque é visto como uma coisa musicalmente relevante, talvez.

É, e isso principalmente por seu DNA brasileiro. Porque o rap feito no Brasil soa diferente do rap americano.
É diferente de todos os raps do mundo.

Exato.
Eu acho que a primeira gravação de rap com samba foi em 1988 na Zona Norte [de SP]. Ironicamente, os caras se chamavam The Brothers Rap, tá ligado? Esses caras não tiveram a repercussão que mereciam naquela época, é um disco que pouquíssima gente conhece, inclusive no rap.

Você como essa parada é significativa pra nós. O rap sempre esteve buscando representar a cultura brasileira. Porque a gente cresceu ouvindo Fundo de Quintal, Jair Rodrigues… Tanto que a gente colocou o Jair Rodrigues como patrono [do rap] por causa do “deixem que digam, que pensem, que falem”. Musicalmente falando tem uma semelhança, mas não tinha um vínculo direto do Jair Rodrigues com a cultura hip hop, isso aí foi uma coisa que a gente construiu e que a gente se identifica porque realmente tinha uma célula parecida. Então, o rap sempre reverenciou a música brasileira, o que se entende por MPB é um conceito bem preconceituoso e é ele que exclui os outros gêneros musicais. O que eu acredito que podemos fazer é tentar fazer com que esse gênero seja mais abrangente, tá ligado? Eu acho que o Wesley Safadão é música popular e é brasileiro, mas ele não é considerado MPB. Esse tipo de preconceito que se criou em volta de um termo que parece tão abrangente pra mim é uma coisa muito prejudicial para a arte brasileira. Eu acho que o rap tem ajudado a desconstruir isso. Quando o Criolo canta com Ney Matogrosso, quando o Racionais canta com Almir Guineto [do Fundo de Quintal], quando o Emicida tá com a Vanessa da Mata ou com Caetano Veloso ou com a Elza Soares ou mais ainda, quando as pessoas abaixam a guarda e observam a nossa obra sem nenhum tipo de preconceito, com os olhos limpos, entendem que dentro daquela construção tem vários elementos de música brasileira. Sempre teve.

Com relação ao discurso marginal, aquilo é um ponto de vista que é característico de onde viemos. A gente olha a sociedade de um mundo diferente. Mesmo estando do outro lado, passeando por lugares que são economicamente favorecidos, o nosso olhar ainda é o olhar de lá. Então eu acho que esse é um tipo de linguagem do qual a gente não vai se desconectar. O que me entristece várias vezes é ver uma marginalidade forçada. Isso é uma parada que eu olho com muito cuidado porque algumas tendem a ser irresponsáveis com esse esteriótipo. A pessoa que às vezes nem é moradora de favela, não é nem preto, tá ligado? Mas acredita que uma das coisas mais bacanas do hip hop é fumar um baseado e poder falar gíria, agir como eles acreditam que a gente age majoritariamente na periferia, tá ligado? E mostra que eles têm uma visão muito distante de lá também.

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É uma forma de apropriação.
É uma maneira de apropriação, mas é uma maneira de apropriação burra superficial. Porque eles acreditam que a coisa mais foda que nós temos é uma criminalização que empurram pra lá, tá ligado? Eu não preciso disso. Porque eu de terno e gravata com a Bíblia embaixo do braço vou tomar um enquadro ali como se eu fosse um bandido, tá ligado? Eu não preciso ter um milhão de tatuagens, embora eu tenha (Risos). Tá ligado?

Chama muita atenção as constantes homenagens à sua mãe na sua obra. Qual é o papel que ela teve pro Leandro se tornar o Emicida?
Eu acho que… A minha mãe foi bem dura, ela não reconheceu a música que eu faço durante muito tempo. Até que, sei lá… Depois que sai no jornal você vira um artista de verdade. Isso é uma parada foda. Ela teve um receio muito grande por causa da carreira do meu pai, né mano. Meu pai era DJ e ele foi um cara que… se frustrou com a música, foi parar na bebida e aí acabou morrendo. Tá ligado? Ela tinha medo, sinto que ela tem muito medo de eu engrenar por esse caminho. Ela só baixou um pouco a guarda quando viu que eu era bem mais responsável. O que eu coloco nas músicas com referência à minha mãe são conversas que a gente nunca teve porque a gente é muito fechado, somos muito distantes mesmo estando próximos. E felizmente a música é o lugar onde eu me sinto livre pra fazer isso, é como se fosse um divã. São temas que às vezes a gente nem dialoga em casa, na grande maioria das vezes. “Crisântemo” fala sobre a morte do meu pai, tá ligado? E eu e minha mãe nunca conversamos sobre a morte do meu pai, só dentro do estúdio. Quando saiu de lá, a gente não tocou no assunto. Até hoje.

Tem rolado um certo modismo em relação à cultura africana, vários produtores gringos foram gravar coisas lá, por exemplo. O que você considera uma apropriação, digamos, boa disso e o que é uma apropriação ruim? Quando você nota que ela é prejudicial e quando ela é respeitosa e aí sim é uma troca de culturas?
Cara, eu sou um molequinho preto que nasceu lá no [bairro] Cachoeira, cresceu por ali, e era fã de desenho japonês, tá ligado? Cresci vendo o mundo de uma maneira muito global. Essa pauta que as pessoas levantam quando falam sobre apropriação cultural é referente a alguns elementos do entretenimento que… o problema não é uma pessoa branca usar um turbante ou tocar conga. Sinceramente, se ela fizer isso de uma maneira bacana eu vou levantar e aplaudir. O problema é quando você pega esses elementos e desconsidera o contexto colocando como se você não tivesse encontrado com uma pessoa negra no caminho. Tipo, quando você faz um editorial de moda na favela e não tem um preto, esse é o problema. O grande problema ainda está na maneira como você se apropria disso e não se preocupa em devolver nada pro lugar de onde aquilo surgiu. Tá ligado? É uma coisa extrativista, ruim, que só arranca e não replanta, tá ligado? Acho que esse é o ponto problemático dessa ideia de apropriação cultural. Mas pensando daqui, das Américas, onde nós nascemos, [vemos que] nossa história é definida pela apropriação cultural. [Você] tá pisando num chão que foi roubado dos índios. Tudo é apropriação cultural, o que a gente precisa entender é quem são os vilões e como essa estrutura transforma a origem das coisas em elementos invisíveis. É uma conversa longa, não é uma conversa fácil, mas é uma conversa que eu acho foda ter e que eu acho que as pessoas têm que parar de tratar isso como uma birra, tá ligado? Tem que parar de tratar isso como se a gente fosse um clubinho. É um fato. Aí a Folha coloca um editorial de moda falando sobre cabelo crespo e coloca uma menina branca na capa. Sabe? Isso é vergonhoso. Vergonhoso pra Folha, vergonhoso pro jornalismo em si. No país que é o maior país preto fora da África.

Só pra encerrar, você lançou há pouco o clipe de “Madagascar” e ele motivou algumas críticas…
Já tem críticas, já? Já começou?! (Risos)

…sobre hiper sensualização da mulher, algumas pessoas acusaram o vídeo de mostrar um contexto machista.
Uh!

Como você responde isso? Já pensou sobre isso? Sim, não, nada a ver?
Não sei… Essa conversa vai tendendo pra um moralismo que eu não tenho. Tá ligado? A gente fala de liberdade, liberdade, liberdade… a primeira coisa que as pessoas fazem quando sentam na frente do computador é virar polícia. Ficam enquadrando os outros, tá ligado? Tem que dar uma lanterninha e um apito pra elas e deixar elas do lado de fora fazendo segurança do bairro. Tá ligado? Porque mano… Sinceramente, pra mim é uma opinião. Pra mim é engraçado, tá ligado? Eu tenho me mantido distante de… eu gosto do Twitter! Sabe por quê? Porque é 140 caracteres, até as pessoas burras lá falam pouquinho. O Facebook tem feito uma coisa meio problemática na cabeça das pessoas, elas não estão usando a ferramenta da melhor maneira. Poderia ter vários debates fodas, inclusive sobre isso que você está falando. Mas não acho que a gente tá engrenando por esse caminho. O vídeo é lindo, as meninas estão lindas e felizes de terem feito ele e eu também. Acho que é isso. A molecada que gosta da música se identificou e se viu dentro do bagulho, tá ligado? A gente não fala sobre isso na música? Sobre cada dia que você olhar pra sua mulher se apaixonar por ela de um jeito diferente? A gente desenhou isso no vídeo, tá ligado? Várias mulheres como se elas fossem cada uma uma continuação da outra. Sabe? Cada dia você acha uma beleza diferente na sua mulher. É isso. Qualquer conversa que saia desse campo é uma conversa que eu não tô muito interessado em ter. Porque eu faço música pros meus fãs, tá ligado? Faço música pra quem gosta do Emicida. Não tenho que me explicar pra quem não gosta de Emicida.

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02/08/2016

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

Ariel Fagundes