Uma queda de luz durante a última faixa do bis despertou a face mais lúdica e despreocupada de Marcelo Jeneci em seu show no Bar Opinião, em Porto Alegre, na noite do último sábado. O músico encarou com bom humor a interrupção do gran finale, fazendo alegremente com que todo o público esmagasse o silêncio cantando “o melhor da vida é graça”. Nem parecia o mesmo Marcelo mega sereno com quem conversei antes do show.
Jeneci esteve em Porto Alegre para a turnê do segundo álbum, De Graça (2013), e o público o recebeu com a doce advertência de que o esperavam desde 2010, quando lançou Feito pra acabar, primeiro disco solo. A última apresentação do músico por aqui foi naquele mesmo ano, porém, antes do lançamento do álbum. Para matar a vontade e o “atraso”, a apresentação reuniu sucessos dos dois trabalhos.
“Eu tô apaixonada por essa cidade”, exclamou Laura Lavieri, companheira de palco de Jeneci, logo depois de cantar as primeiras músicas do show. A dupla de vocais conversou com a plateia ao longo de toda a noite como se o palco nem existisse. E em algum momento a divisão realmente não separou artistas e público: quando Jeneci resolveu cantar no meio de todo mundo, fez fotos e vídeos com os celulares que surgiam à sua volta e ainda contou com o auxílio de uma fã, que reconectou o cabo que havia escapado do microfone do cantor.
“Alento” e “Nada a Ver” vieram em ritmo solar animando já nos primeiros minutos – e o público respondeu à altura, mostrando toda a empolgação guardada para o encontro. Em seguida vieram “A Vida é Bélica” e “Tudo bem, tanto faz”, que lembram as pinceladas de melancolia em De Graça, álbum em que Jeneci surge quase como um novo artista, muito mais intenso.
O setlist foi alinhavado assim, de forma bem equilibrada, intercalando canções leves e alegres com outras mais carregadas. Ainda no início da noite, as promessas amorosas de “Pra Sonhar” foram cantadas em coro. Não fosse o conjunto de vozes, quase daria para ouvir as palpitações dos (muitos) casais que absorviam abraçados o romantismo de versos como “Largo tudo/ Se a gente se casar domingo/ Na praia, no sol, no mar/ Ou num navio a navegar”. Impossível não se contagiar pelo clima terno que tomou conta.
“Felicidade” foi certamente a música mais solicitada da noite e finalmente chegou no bis, entre “Feito pra acabar” e “De Graça”, ambas faixas que nomeiam os álbuns de Jeneci. Foram-se as luzes (não só no Opinião, mas em boa parte do bairro Cidade Baixa), porém o silêncio não deve ter durado nem um segundo. Laura olhou para Jeneci com um sorriso surpreso, enquanto ele já corria para a beira do palco e contagiava a todos cantando um refrão ritmado por palmas.
Ninguém ficou em silêncio. A energia daquele momento espontâneo parecia ser bem mais forte do que a eletricidade que faltou.
Fotos do show: Samuel Reginatto
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Fotos da passagem de som e entrevista: Ariel Fagundes
Depois de uma passagem de som cuidadosa, encontrei Marcelo Jeneci no camarim. A entrevista teve ritmo de uma prosa solta, mesmo com o tempo curto que o músico tinha antes de entrar no palco. “Eu não vou mais voltar pro hotel, então a gente tem tempo para conversar tranquilos aqui” explicou Jeneci, fazendo questão de não apressar ninguém.
De Graça já tem quase um ano desde o lançamento. O que mudou no álbum?
Eu acho que ele está começando a fazer efeito agora, porque esse primeiro semestre foi meio zoado por causa da Copa e o disco foi lançado de uma maneira um pouco fragmentada demais. Creio que eu não fiz um lançamento muito bem amarrado.
Por quê?
Acho que por falta de direção. Eu estava mais a fim de fazer música e botar ela à disposição, mas faltou um trabalho todo de fazer lançamento junto com clipe, etc, para fazer a chegada. E acredito que isso está acontecendo agora. Ou seja, uns nove ou dez meses depois de quando ele foi lançado, a gente está vivendo muito essa situação de sondar o Brasil inteiro, sabe? Eu sinto que a quantidade de público praticamente dobrou e acho que isso é o espelho que a gente tem para entender como o disco está indo. E acho que ele [o disco] ganhou força também com o show, sabia? A galera que vem no show tem feito uma divulgação boca à boca bem legal.
E a tua percepção dele [do disco] mudou?
Continuou a mesma. Acho que na hora de encerrar ele eu já estava com muita clareza do que ele era, sabe? Continua a mesma.
Você surgiu como um artista mais tímido, que quase não aparecia nas imagens do álbum Feito para Acabar. Agora você não é mais estreante e encara sério o público na capa de De Graça. Esse último álbum serviu como uma maneira de aceitar o seu protagonismo como artista?
É, acho que ele já é resultado disso. É uma fotografia bem honesta dessa mudança, dessa nova fase, desse novo ciclo – pós 30 [anos], pós primeiro disco. E após ter parado de me preservar tanto, ter me jogado mais um pouco na vida, em tudo que se pode experimentar dela. O De Graça traz um pouco disso.
Ele tem mais a tua cara?
O outro tinha a minha cara daquela época, esse tem a minha cara dessa época. Os dois são bem honestos comigo.
E como foi a sensação de ser indicado ao Grammy Latino?
Eu acho do caralho, porque o De Graça, de alguma maneira, não teve tanto destaque quanto Feito para Acabar. Apesar de não esperar nada e não entrar muito nessa de premiação. Acho que o prêmio para quem faz música de verdade vem do povo. Não curto muito essa onda de premiação. Tipo, eu não vou lá. Naturalmente eu não vou no dia do Grammy, sabe. Mas eu fiquei feliz porque pelo menos nesse Grammy ele foi reconhecido como um álbum, é cogitado como o melhor álbum do ano.
E foi um disco que me deu muito trabalho, me fez um bem horrível. Foi bem intenso, bem catártico o período da confecção dele, e a notícia da indicação do prêmio vem como um prêmio em si. Tanto tempo depois, no mesmo dia em que eu tinha acabado de cantar uma música inédita minha com a Elba Ramalho num DVD dela, numa sequência de dez shows, um depois do outro.
Então veio tipo uma festa surpresa, sabe? É um momento de colher o que foi cultivado.
E por que fez um “bem horrível”?
Porque no segundo disco é tudo um pouco difícil de fazer, sabe? E nesse eu tive uma preocupação estética muito grande, muito maior do que no primeiro. No primeiro eu estava muito mais preocupado com as canções. Nesse eu queria fazer um disco nada low-profile e que falasse à altura dessas bandas que estão desenhando o cenário internacional indie, e que tivesse um pouco dessa característica de algo muito bem produzido. Por isso que me fez um bem horrível, porque deu trabalho para deixar ele desse jeito.
Você fez um show de graça em uma praça de São Paulo, de um dia para o outro. Como isso aconteceu?
A gente fez o lançamento lá no Sesc e tinham acabado os ingressos rapidinho e tal, aí duas semanas depois eu resolvi anunciar esse show de graça. Fui lá na praça, eu e Isabel [Isabel Lenza, namorada de Jeneci e parceira em composições em De Graça], a gente foi escolher a praça, escolher o cantinho, varremos lá. Muito afim de fazer, sem nenhuma outra questão. Era aniversário da cidade e eu falei “Pô, eu queria tocar. Por que não? Ah, vou”. Aí chamei um amigo advogado que foi comigo numa delegacia para avisar que ia rolar o show. A gente avisou no Facebook e aí colaram umas 1.200 pessoas, um fim de tarde muito bonito. Eu não imaginei que fosse repercutir tanto, sabe? Acho que repercutiu mais do que o lançamento do disco para a imprensa.
Você acha que os espaços públicos são aproveitados pelos artistas ou tem como fazer acontecer mais surpresas assim, na praça?
Acho que esse assunto está no ar, né? Acredito que isso devia acontecer mais aqui. A gente é muito novato em fazer com que a nossa cidade seja legal para quem não tem grana também. São Paulo é legal até a metade. Depois, só é legal para quem tem grana. Eu acho isso muito chato. Então essas situações de entretenimento gratuito, seja o que for, têm que acontecer mais. O “De Graça” toca de algum modo nesse assunto.
É que é uma iniciativa bem diferente, né.
É, eu achei legal. E agora espero o apoio de alguma marca para fazer isso rodar pelo Brasil, né, porque não dá para bancar tudo, toda vez.
Você afirma que “o melhor da vida é de graça”. O que você está tentando dizer que é o melhor da vida?
Eu acho que são os encontros e os reencontros. Acredito que cada um vê o mundo de um jeito. A gente inventa o mundo que vê, né? E o seu deve ser bem diferente do meu, de dele, do dela [apontando para todos que estavam na sala]. E acho que essa possibilidade quase infinita do mesmo mundo sendo visto de outro jeito é o melhor da vida, porque eu acho extraordinário viver. E quando tem troca assim – troca mesmo, altiva, quando você se debruça sobre o assunto do outro e vice-versa – eu acho que é o melhor que pode acontecer na vida. Isso para mim está mais perto da amizade, né.
Eu acho a amizade melhor que o amor.
Mas você não acha que podem andar juntos?
Acho que andam juntos. Mas se tivesse que escolher… É o amor dentro da amizade. Acho a amizade sem cobrança e acho isso mais bonito.
