De acordo com o dossiê elaborado e divulgado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) no dia 29 de janeiro deste ano – também Dia Nacional da Visibilidade Trans-, o Brasil continua a ser o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo. Nossa federação ganha essa triste medalha de ouro mesmo com a subnotificação desses assassinatos, a maioria marcada por requintes de crueldade, resultado de uso excessivo de violência. Desde 2017, através de campanha chancelada pela ONU, vemos a marca de 23 minutos tornar-se um alerta urgente da letalidade da juventude negra brasileira. A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil.
Talvez essa não seja a abertura que você esperaria para falar de música, mas a arte de Jup do Bairro é reflexo de quem assimila na pele números tão estarrecedores. É a arte de quem, dia a dia, faz da arte refúgio para não compor estatísticas tão brutais. No último dia 11, ela lançou seu aguardado e primoroso EP CORPO SEM JUÍZO. Acompanhada pela produção da fiel escudeira DJ BADSISTA, a cantora, compositora, produtora, atriz e apresentadora convoca também a parceria de um time talentoso. Linn da Quebrada, Rico Dalasam, Mulambo e Deize Tigrona formam as parcerias dessa obra.
Um passeio audacioso e impressionantemente fluído entre diferentes flows, melodias e sonoridades, guiadas por um caldeirão de influências: heavy metal, rock, hip hop, rap, funk e timbragens eletrônicas. As temáticas são tão múltiplas quanto as intersecções que compõem Jup. Condições de ordem estrutural e de ordem subjetiva se entrelaçam, formando um grande leque de assuntos. Depressão, vivência periférica, tesão, sexualidade, gênero, identidade. Denúncia social, retrato social, expressão social. De seu corpo-território, Jup traz ao mundo um EP que deveria ser incorporado nas listas de obras obrigatórias e nas provas de concursos vestibulares, tamanha capacidade de elucidar questões sociais tão urgentes.
Aqui, aprofundamos os sentidos de CORPO SEM JUÍZO e conversamos com Jup sobre produção de arte na periferia, processo de lapidação sonora, aceitação, autocuidado e cyber ghetto. Desça, confira e aprenda com ela.
Jup, qual é o sentimento de lançar um EP autoral ao lado de um time tão diverso no país que mais mata os corpos sem juízos, em seus diferentes recortes de opressão?
Tenho buscado entender os sentimentos que percorrem pelas minhas vísceras desde o lançamento de CORPO SEM JUÍZO e acredito que a melhor definição é o alívio. Me sinto aliviada em poder materializar esse trabalho, minhas memórias, aliviada em conseguir executá-lo nesse cenário que estamos vivendo e principalmente estar viva e sentindo o que pode esse corpo sem juízo. Com isso, acabo levantando ainda mais interrogações. Uma vontade de explorar, me explorar sem me explorar, em outro sentido da palavra. O mundo vive hoje uma semiótica do que corpos pretos e corpos trans vivenciam a todo instante: o medo de sair de casa e ter sua vida ceifada. Ao analisarmos os números do genocídio da população preta, o Brasil sendo campeão em morte da comunidade trans e travesti, percebemos que esse é um dos planos de aniquilação do sistema. Onde, geograficamente, vivem esses corpos? Quem são? A chacina sobre essas pessoas também é epidêmica.
O trabalho traz canções escritas por você ainda na adolescência e só foi viabilizado através de um financiamento coletivo. Há quanto tempo CORPO SEM JUÍZO tem sido gestado e com foi seu processo criação até seu lançamento?
Eu não tinha pretensões com o que estava escrevendo, não entendia que poderiam ser composições, poesias. Começo a escrever sobre meus pensamentos, materializando o que sentia naquele momento. Tinha 13 anos quando fiz minhas primeiras composições, “Corpo Sem Juízo” era uma delas. A morte do meu pai em 2007 foi uma dor muito grande pra mim, eu precisava colocar aquilo e outros sentimentos que me percorriam pra fora. “TRANSGRESSÃO” também é uma das minhas mais antigas composições. Desde então, eu ainda não sabia, mas já estava me preparando para esse EP. De lá pra cá muita coisa mudou, abri mão de algumas letras justamente por conta dessas mudanças, senti que tinha outras coisas a dizer, outras urgências. Enxergo que esses mais de 10 anos foram para captar e me sentir confiante em dar vida, finalmente, à esse Frankenstein que só poderia existir de forma coletiva. Desde o público que endossou a responsabilidade dessa construção junto comigo e minha equipe formada por Thiago Felix, Felipa Damasco, Izabela Costa e Bia Bem que vão além de uma rede afetiva que criei com minha trajetória, mas uma rede efetiva que, junto comigo, disputam espaços. A indústria musical, o mercado, publicidade não pensou no ingresso de meu corpo, não era pra mim. Agora, exerço um papel para além do hackeamento, eu quero estar em lugares que nunca imaginei, lugares que me foram roubados, dizendo o que eu quero dizer.
Seus versos são embalados pela música eletrônica, pelo funk e pelo heavy metal, e algumas canções citam artistas como Sampa Crew, Bjork, Slipknot. Quais foram suas referências musicais para o EP e como foi seu processo de lapidação sonora? Qual a importância da figura da BADSISTA em tudo isso?
CORPO SEM JUÍZO é uma grande viagem no meu universo musical juntamente com a BADSISTA. Nós temos gostos musicais muito compatíveis é isso facilita muito o nosso trabalho. Acredito que o fato pertencermos à mesma geração e ter um recorte geográfico em comum apesar da distância (eu, do Capão Redondo, periferia do extremo Sul de São Paulo, e ela de Itaquera, no extremo Leste) são pólos criativos marginais muito grandes. Nesse EP, eu quis fazer um mergulho no que gosto de ouvir e me desafiar à uma nova proposta sonora, melódica e de flow. No momento de imersão, revisitei Slipknot, Korn, Runaways, [Jimi] Hendrix e Rage Against the Machine de minha bagagem roqueira. Mas também flutuei ao som de Cartola, Nelson Gonçalves, Elza Soares e Paulo Diniz em uma pausa nostálgica do que meus pais ouviam na minha infância. E como o meu berço foi o rap nacional, quis trazer um pouco do que consumi na minha adolescência, como Expressão Ativa, Facção Central, Nega Gizza, Dina Di e SNJ também como inspiração do hip hop new school apresentado no disco.
Jup, o que um olhar como o seu, de uma artista com uma trajetória marcada pela intersecção de opressões, pode trazer de novo para a música brasileira?
Sou de uma classe de artistas que utilizam as dores causadas pelo sistema para criar sua arte. Um exercício de mexer em minhas feridas ainda abertas, em meus desconfortos, mas devolvê-lo também. Uso da minha capacidade de escrita e articulação para evidenciar essas condolências porque precisam ser ditas hoje. Que as próximas gerações possam ter outros problemas, outros venenos e outras causas urgentes e pertencentes ao seu tempo. Quero seu um presente (presente) da minha geração. Não acredito na representação una, é preciso ir para além dela. Quando falamos em pessoa, dentro de suas sentenças, não representamos nada além de nós mesmas. A guerra cultural já está instaurada a muito tempo, se eu conseguir mover mais uma soldada para esse exercício com a minha arte, já estou satisfeita.
Muitos artistas periféricos são estimulados a rumar em direção aos grandes estúdios, ao centros. Você decidiu fazer o caminho inverso e gravou seu mais recente trampo em um estúdio da quebrada. Qual é a potência desse movimento e como ele pode ecoar pelos lugares que sua arte alcançar?
Gravar na Deck9 Records foi um dos meus primeiros planos anotados em criar uma rede efetiva com esse financiamento coletivo. Quando digo que precisamos tornar nossas redes afetivas em rede efetivas, é justamente sobre isso que quero falar: comprometimento. Utilizar da Deck9 Records para a gravação do meu EP é fundamental para a narrativa do meu trabalho. VINEX, Mulambo, JP e todos os pertencidos do estúdio, além de meus amigos, são pessoas extremamente criativas e inquietas. Profissionais capacitados e com muita curiosidade. Preciso remunerar financeiramente essas pessoas, capitalizei dinheiro do Brasil e do Mundo e preciso distribuir entre os meus, fazer com que esse dinheiro fique na minha quebrada o máximo possível.
Em uma entrevista recente, você nomeou sua estética audiovisual como “cyber ghetto”. Essa busca por linguagens 3D, futuristas, esses corpos virtuais, seria uma nova forma de criar imaginários para a existência de corpos renegados? Uma versão trans periférica de “space is the place”, do Sun Ra?
Amo Sun Ra. Assistam Negrum3 (2018) dirigido por Diego Paulino, inclusive. Uma vez BADSISTA me disse uma frase que ecoa a todo momento na minha cabeça “o corpo marginal, corpo periférico possui uma tecnologia avançada de pertencer ao seu tempo”, desde então, trago essa experiência comigo. Sempre fui muito fã de ficção científica, temáticas futuristas e extraterrestres. Essa noção de tempo e espaço se converte naturalmente nas periferias quando o acesso à internet se populariza e conseguimos criar uma grande manifestação e criação de cultura. Moda, música, teatro, lifestyle… Muito do Brasil é fabricado nos guetos, becos e vielas. Pensando que o que fica na terra enquanto matéria são nossas ações em vida, porque não imortalizá-las de forma tecnológicas visando um novo futuro de inclusão e contemporaneidade desses corpos?
Você equilibra a narrativa do disco entre as facetas do ciclo nascimento-vida-morte. Hoje em dia, o que você não tem medo de deixar morrer?
Tenho reconhecido e me deliciado com minhas contradições, verdades não absolutas de quem sou. Não quero ser e estar estática. Já passei por muitas vidas, algumas tive que sacrificar para me tornar quem sou hoje. Tenho medo de em algum momento não ser flexível às novas possibilidades e performances, de caducar em minhas virtudes. Por isso, o exercício da contradição, contra tradições, sempre em busca do autêntico novo. Não tenho medo de deixar morrer que sou hoje, tenho medo do que posso não ser amanhã.
Considerando-se os privilégios e desprivilégios que cada um de nós carrega, como podemos abraçar o que há de “abjeto” em nossos corpos e celebrarmos o que somos, Jup?
É importante reconhecermos que somos o único corpo que detém as dores e delícias de ser quem se é. Me apropriar das minhas abjeções faz com que eu encontre forças nas minhas fragilidades. O processo é individual e complexo, mas o nosso entorno pode facilitar em materializar essas potências. O autoconhecimento, dissertações biográficas, pesquisas ancestrais são fundamentais para a celebração de meus avanços em descobrir o que pode meu corpo.
Existir em um país que não dá condições de existência para certos indivíduos – quando não está preparando condições de extermínio – é, no mínimo, exaustivo. Nesses tempos, agravados pela quarentena, quais têm sido suas práticas de autocuidado?
Estamos vivendo um momento de dor, medo e tristeza. E que bom que estamos sentindo isso. Significa que estamos sentido falta, que estamos nos comovendo. Mas ainda é sobre mim; minhas dores, meus medos e minha tristeza. O que vai para além de mim, de nós? O cenário é de uma guerra civil classista. Até comove, como comove. Mas move? Como tudo na vida, existem diferentes pontos nesses sentimentos. Como um cubo com sua faces, arestas e vértices em atrito. As faces são os medos, receios e anseios… E não é nada fácil enfrentá-los. As arestas são os problemas consequentes que conseguimos identificar. Temores intensos de instabilidade, insegurança, descrença. Mas também há as vértices, os pontos que por muitas vezes podem ser ignorados ou negligenciados por parecerem pequenos ou utópicos, que são nossos pensamentos dando origem a imagens, fantasias e novas perspectivas, tornando esses temores um motor de ficção. É muito confuso e estranho considerar esse período como momento de transformação, e tudo bem estarmos pessimistas com essa situação. Se pensarmos em nossa dolorosa quarentena, em nossas casas, conseguimos aplicar a visão para quem está com este direito de acessibilidade sendo rejeitado. E o quão cruel é nos colocarmos em lugares que não são os nossos. Não devemos nos colocar no lugar de ninguém além do nosso próprio e nos questionarmos no mesmo. Mas estar pessimista não significar estar derrotista.