Entrevista | Mano Brown e Criolo: da sobrevivência à potência

15/08/2018

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Vitória Proença

15/08/2018

Vinte quilômetros separam os bairros do Grajaú e do Capão Redondo em São Paulo. Uma distância que, em uma cidade grande, pode afastar moradores, mas que aproximam vivências. O dia a dia da periferia, da comunidade à violência urbana (e de tantas outras ordens), dos bailes à pobreza, faz com que indivíduos trilhem seus caminhos acompanhados por resistência, resiliência e sobrevivência.

Criolo, do Grajaú, e Mano Brown, do Capão Redondo, tiveram suas vidas entrelaçadas pelas experiências comuns de periferia, de pobreza, de racismo e de violência. Mas, também, pela arte, pelo rap, pelo sucesso e pela admiração mútua. A força de sua arte está na potência de transformação: Criolo e Mano contrariaram estatísticas e lugares comuns. Hoje, suas trajetórias fazem o rap ocupar novos espaços, elevam vozes marginalizadas e deixam marcos valiosos na música brasileira.

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As duas feras embarcaram em uma tour juntos, revisitando os sucessos de suas carreiras solo. O show já passou por São Paulo, Rio de Janeiro e por Porto Alegre, no último dia 10 de agosto, no palco do Pepsi On Stage. Na última sexta, conversamos com Mano Brown e Criolo em um papo exclusivo sobre o encontro na tour, passado e legado. Leia:

Foto: Vitória Proença

Criolo, qual foi o papel que o Brown teve na sua vida? E, Brown, que papel o Criolo teve na sua vida? Como começou essa primeira relação entre vocês?
Criolo: Eu posso começar falando, não por uma hierarquia- porque a música rap nunca propôs hierarquia- mas acho que até por uma condição natural de uma história da música preta, periférica, brasileira aonde Mano Brown, KL Jay, Edi Rock, Ice Blue, que de modo natural, expressando seu sentimento, sentimento do fundo do coração, não sei se percebendo ou sem perceber, estavam expressando o sentimento do coração de várias pessoas, de várias quebradas de todo o brasil e de todo o planeta. Eles estavam falando sobre possibilidades, apontando coisas erradas, apontando atrocidades sociais, apontando o descaso, o desespero, o sofrimento, a fome, a mazela, a doença social que existe quando um ser humano olha para o outro e se acha melhor. Isso tudo traz uma reverberação medonha. Mas, ao mesmo tempo, falando de um orgulho que nasce de um coração, daquele que não é visto, mas que também bate. Então, pra mim, isso foi de uma força extrema, força propulsora, criadora. Um sentimento de respirar e não me sentir sozinho, um adolescente escutando racionais MC’s… pra mim é muito forte. Embora nós tenhamos uma idade um tanto próxima, ele [Mano Brown] já tava a mil anos luz à frente, puxando o bonde pra abrir portas pra vários e vários- e eu tô nisso também. Eu fui uma pessoa que foi privilegiada pela força do rap desse MC que tá aqui, na nossa frente. Tamo celebrando ele aqui em vida, e celebrando vários outros parceiros da época dele- uns tão aqui com a gente, outros já não tão mais- mas que tiveram um papel fundamental não só nas artes, mas numa construção de pensamento e de valorização da história do nosso povo, sobretudo nessa contemporaneidade que achavam que éramos apenas seres zumbis programados pra morrer ou pra matar. Nós também pudemos mudar essa programação pra criar e pra amar.

Poxa, Brown, e você? Quando entrou em contato com o som do Criolo e a figura dele, qual foi o sentimento em relação a ele?
Mano Brown: Então, a fama do Criolo chegou primeiro do que a música, eu já falei isso pra ele e em outra entrevista. Eu ouvi falar sobre ele, sobre o Criolo, mas não chegava a música dele. As primeiras coisas que ouvi sobre ele ainda eram em uma época antes da internet, então a informação demorava a chegar. Mas eu ouvia falar sobre ele, sobre as coisas que ele fazia, sobre os trabalhos que ele fazia, alguns fãs já vinham falar sobre ele, mas a música dele ainda não tinha chegado. Até então, a gente sabia que o Criolo Doido, na época, era um rapper. Ele conheceu os Racionais em uma época que antecede muito o momento em que eu o conheci, por ele ser mais jovem também, e era um outro mundo também. A maneira como a minha música chegou na dele é diferente da maneira que a musica dele chegou em mim, já tinha um universo todo de hip hop funcionando, e ele chegou com uma nova proposta, uma vertente diferente, que já abrangeu a música brasileira, ritmos brasileiros,… eu sei que alguns MCs já tinham tentado fazer antes e que de uma certa forma antecederam ele. Mas o Criolo fez isso de uma forma mais pronta, uma coisa mais natural, uma coisa da batida afrobeat que me marcou no trabalho dele de longe.

Essa união de ritmos que o Criolo representou muito, com esse olhar mais recente, já tava em outros momentos do rap e até no Racionais mesmo- com samples de Tim Maia, trazendo o blues em algumas faixas, o funk, o soul. Considerando isso, qual é o peso simbólico desse encontro de vocês no palco hoje, enquanto pessoas que abriram o rap para outros lados?
Mano Brown: Tem muitas coisas a se considerar. A cada momento eu vou lembrar de uma. Eu acho que momento político do país tem muito a ver com essa junção. O momento do nosso movimento do hip hop mesmo como música, como gênero, se fixando no Brasil como uma música madura, uma música adulta. Eu acho que representa isso também, uma coisa madura. Um rap maduro, com rimas maduras.

Criolo: Mas a gente pode falar sob vários aspectos sobre a celebração desse encontro. Durante a nossa pequena passagem nesse planeta, dessa passagem- que eu acho que tem outras- já falaram que a gente não ia passar dos seis anos, porque não tínhamos alimentos e nutrientes suficientes. Depois que não passaríamos dos 13 anos, porque a violência urbana ia nos absorver. Depois, que não iríamos estudar porque não tínhamos condições de estudar. Depois, que iríamos morrer no chão de algum lugar, com alguém nos explorando em algum tipo de trabalho. Então, a sociedade fez questão de falar para nós a cada segundo do dia que a gente ia morrer. Mas a gente tá vivo e vai entrar no palco do sul do país, em Porto Alegre, cantando canções escritas há 30 anos, há 20 anos. A gente pode olhar por esse aspecto. A gente pode olhar também pelo aspecto da celebração da criação, celebração da tentativa, porque o Brown – escuto ele falando em alguns momentos nossos uma coisa muito séria, que às vezes passa batido: as nossas tentativas, os nossos processos de criação, não tem nada ganho, a gente assume o risco. Ele é um homem consagrado. É uma voz na América do Sul, uma voz da América Latina, uma voz do mundo. O Brown é reconhecido em qualquer lugar do mundo, qualquer planeta que você for, em todos os continentes. Então, quando ele segue o coração dele, e ele fala “eu vou fazer o álbum musical da minha cabeça, eu vou dirigir esse álbum”, e faz um Boogie Naipe (2016) lindo, espetacular, ele fez, mas ele assumiu o risco também. Porque existe todo um olhar cristalizado de um legado que se imagina que não se pode mexer. Ele, enquanto mente pensante, enquanto artista, falou “eu vou correr um risco”. E ele sabe que isso é seu ganha pão também. Ele nunca teve apadrinhamento e nunca foi de aceitar apadrinhamento. E eu tenho orgulho de falar que ele, nessa pequena epopeia, foi um brasileiro que recebeu indicação ao Grammy [Mano Brown foi indicado à categoria de Melhor Álbum Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa no Grammy Latino de 2017 com o disco Boogie Naipe]. Entendeu? Isso, pra nós, é uma conquista muito grande, por uma construção de vida aonde a arte se mistura com a tentativa do viver. Porque, quando a gente fala vida, talvez na minha cabeça venha o dissabor da sobrevida, de onde eu saia pra cantar e eu não sabia se voltava de morte morrida ou de morte matada. Mas que me sentia vivo por cantar duas músicas no palco e voltar o cara mais feliz do mundo com a cabeça com o dobro de sonhos. Então, ele assumiu esse risco, também tem esse outro aspecto. É uma construção que não permite enxergar isso, por tudo aquilo que o sistema fala que não é pra enxergar, como também você pode ver as chancelas que o sistema exige. O cara tem uma indicação ao Grammy! E aí?

E agora Sobrevivendo no Inferno (1997) é matéria de vestibular, né? [o álbum foi incluído na lista de leituras obrigatórias do vestibular de 2020 da Unicamp] Como você se sente nesse ponto da sua trajetória? Em que algo que foi criado de forma totalmente orgânica e espontânea tá sendo chancelado por um sistema que justamente que o questionou tanto?
Mano Brown: Então, eu tenho que voltar 20 anos atrás pra lembrar como eu era quando eu fiz essas músicas com os caras. Hoje é fácil falar, “pô, foi isso, foi aquilo”, o tal do risco que a gente correu na época. Eu sabia pouco sobre a vida, e o retorno que isso me trouxe foi muito.

Criolo: Importante, porém tardio.

Você se sente orgulhoso?
Mano Brown: Me sinto, tem que se sentir orgulhoso. Isso não é algo desprezível, nem sempre a gente vai ser estudado na vida. Alguma coisa, um pensamento seu, uma coisa que você falou que tá sendo considerado relevante ao ponto de ser posto em análise. Se às vezes em um diálogo você fala uma coisa relevante, você já fica orgulhoso, imagina um disco? Ou uma música inteira? Esse tipo de coisa é uma realização.

Mas é um pouco irônico ao mesmo tempo? Ou será que não?
Mano Brown: É, eu sabia pouco sobre a vida. No momento que eu sabia pouco, eu tava escrevendo coisas que seriam estudadas dali pra frente. Mas eu sabia pouco. É estranho, é difícil responder o que eu sinto. Pode até parecer uma frieza minha, mas também não era uma coisa que eu esperava, entendeu? Eu não esperava, realmente. Eu tinha ouvido falar, que o Tupac tava sendo estudado em algumas faculdades dos Estados Unidos. Lembro quando chegaram dizendo “tão dando aula de Tupac”, e eu pensei “nossa, aí sim, caralho, Tupac!”. Aí os caras colocam o Racionais, é outra relação, a gente nunca sabe realmente a importância que a gente tem. No Brasil é diferente, a coisa é turva. Esse disco saiu em um momento conturbado da minha vida. Não tem como eu esquecer daquele passado quando você me pergunta. É uma coisa estranha.

E hoje, qual é a contribuição que você gostaria de deixar?
Mano Brown: Ah, a minha verdade, a minha transparência. Jamais passar uma realidade maquiada, ou uma realidade conveniente, que me agrade. Sempre ser transparente. O que mais eu posso passar de importante?

E você, Criolo? Qual a contribuição que você quer deixar na música hoje?
Criolo: Eita. . . eu acho que eu tô aqui pra aprender. Tenho muito o que viver ainda, muito que aprender. A gente vai só saber lá na frente.O conhecimento, a fome do saber, é uma cuia de encher que não encher. É infinito. Nós somos ainda muito pequenos. Não dá pra eu mensurar o tamanho da minha pequeneza no que tá posto.

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15/08/2018

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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