Boogie Week 2023: um ponto de respiro para a cultura negra

12/12/2023

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Bruno Barros

Por: Bruno Barros

Fotos: Grazielle Salgado/Divulgação

12/12/2023

Em sua terceira edição, a Boogie Week escreve seu nome na aquecida rota de festivais no Brasil. Realizado na semana da Consciência Negra, o evento, desenvolvido pela produtora Boogie Naipe, apresentou um programa diverso e plural. Foram shows, painéis de conversa, sessão de cinema com crianças da rede de escolas públicas, além da premiação que abriu a semana de Cultura Preta.

A experiência do festival da Boogie Week, realizado no último dia da programação, trouxe diferentes expressões da música negra, passando pelos toques afro-brasileiros do bloco Ilú Obá de Min, o pop eletrônico travesti de Linn da Quebrada, o rap R&B de Duquesa e o flow de MC Luanna. Uma chuva fraca que ia e voltava por toda a tarde não espantou o público, crescente em fluxo constante até o grande momento do evento, no início da noite. 

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A sequência de Yunk Vino com a participação de Danzo manteve a atmosfera do festival com o público interessado, interagindo com os shows. MC Carol de Niterói agradeceu à plateia com seu habitual bom humor: “Eu não ficaria na chuva pra me ver”. A artista, que vive um novo momento de sua vida, esteve à vontade no palco, gaguejando apenas ao cantar partes de algumas músicas dos tempos da ___taria. 

No backstage, MC Carol explicou pra Noize o fato de estar sendo observada pelo namorado. “Eu fiquei nervosa de cantar. Ele estava no palco e achei engraçado ele olhando pra mim”. Sobre o sentimento de compor a programação do festival, ela explica: “Eu tô muito feliz. Estou aqui num evento que tem Mano Brown, BK, TZ da Coronel, que eu queria muito ver. Um festival criado e executado por pessoas negras”, destacou a cantora, feliz, apaixonada e amando “o momento da carreira e do relacionamento”, em suas palavras. 

Foto: Grazielle Salgado/Divulgação

Dentre os artistas nacionais, a Boogie Week ainda destacou o grupo Pixote, celebrando 30 anos de carreira, BK, TZ da Coronel e a Bateria do Vai Vai, que encerrou a noite de apresentações. Com um segundo palco na lateral, as trocas entre os shows foram confortáveis. Por ali discotecaram Lys Ventura, Th4ys, festa Punga e DJ Cia. Do início ao meio da tarde o público foi predominante jovem, os que chegaram mais cedo. Ao cair da noite pelas 18h30, o público que se mantinha, aumentou consideravelmente. 

Às 19h quando Jared Samuel Erskine – o October London – subiu ao palco e encontrou aquela banda comandada por Silveira e Brown – que assistia a tudo, extremamente emocionado no fundo do palco – a magia começou. “Trabalhar com os músicos foi provavelmente uma das minhas melhores experiências no palco. Você pensaria que tocamos juntos há anos”, contou October London à Noize. 

À vontade, Jared fez o show de seu disco mais popular, The Rebirth of Marvin (2023). Nas palavras de Brown, que subiu ao palco ao final da apresentação, estavámos presenciando ali “o retorno do Messias”, referindo-se ao cantor norte-americano. Juntos, eles promoveram um dos pontos altos da noite, cantando uma música criada em colaboração, “Pequena América”, que unia trechos em espanhol, português e inglês. “Minha interação com Mano Brown foi como a sensação de se conectar com seu irmão que você não via há anos porque ambos trabalham muito. Foi fraternidade o dia todo”, comentou Jared.

De fato foi um grande momento de um encontro único no tempo. Um artista negro americano, destacado, em ascensão, que conquistou Snoop Dog e Mano Brown e tem muitos anos de funk/soul/R&B por aí, sendo recebido por um ícone no Brasil. Um ídolo, uma referência estabelecida por uma contribuição inestimável a partir do rap. Apoiado por (bem) mais de 50mil manos e manas, e monas. “Nós nos conectamos em muitos níveis além da música. Nós dois temos um grande amor pela união e por cuidar da família com o nível de sucesso que recebemos”, diz London sobre Brown.

Mano Brown e October London (Foto: Grazielle Salgado/Divulgação)

O artista norte-americano saiu do palco agradecido e prometendo voltar. “Eu já sabia que o Brasil seria um lugar onde a música falaria primeiro. Muitas vezes, em muitos lugares, a música está em segundo lugar na lista, e é o negócio em primeiro lugar.  Em vez disso, deixamos a música ser o guia para encontrar esse entendimento mútuo”, afirmou October London.

Esse foi um pequeno fragmento da noite de shows da Boogie Week, que fechou uma grandiosa semana. A celebração de abertura, no feriado de segunda-feira, dia 20 de novembro – na Casa Natura Musical – teve abertura, intervenção e cortejo do Ilú Obá de Min que entrou tocando pra Exú. A programação teve ainda DJs, uma performance solo da jovem harpista Débora Jordão e show da MC Tha com Mahal Pita. O III Prêmio Griô Boogie Week, entregue na ocasião, concedeu homenagem à Beth Beli, fundadora e diretora do bloco Ilú Obá de Min, e a Emanoel Araujo, artista plástico, escultor, museólogo, fundador e curador do Museu Afro Brasil, falecido em 2022. A honraria póstuma foi recebida por Wellinton Souza, Conselheiro da Associação Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, e pela  coordenadora de Produção e Programação do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, Zélia Peixoto. Emocionada, Beth Beli dedicou sua premiação às memórias da Brasilândia, bairro em que nasceu e cresceu. “Eu preciso referenciar meus ancestrais, foram eles que me colocaram aqui, por isso, esse prêmio não é só meu, é nosso”, declarou Beli.

A Boogie Week teve sequência com uma série de conversas em torno de processos criativos, técnicos e de aspectos do tempo. Na quinta-feira, a mesa “Conexão humana e tecnologia negócios da música para além do ‘business’” reuniu Stephanie Aguiar e Silas Martins, da OneRPM, e Rincon Sapiência, para conversar sobre distribuição musical nos tempos de hoje. O papo denso, que renderia um workshop, foi mediado por Kaire Jorge, diretor executivo da Boogie Naipe. Na quarta-feira, a conversa “50 anos de Caminhada Hip Hop como expressão política e social” reuniu Edi Rock, Nelson Triunfo, Soberana Ziza e Cris SNJ. Mediada por Stela Yeshua, a conversa teve tom de celebração, com trocas de afagos e reconhecimento ao lembrar de passagens importantes da cultura no país. 

Já a mesa de terça-feira reuniu artistas com trânsito nas artes visuais contemporâneas, explorando questões macro a partir da perspectiva de cada um dos convidados. Compuseram o diálogo Manuela Navas, Diego Mouro, Novíssimo Edgar e Maxwell Alexandre, com a mediação da pesquisadora e curadora Nathalia Grilo. Na conversa, sob o título de “Janelas e espelhos – representatividade nas artes visuais e na construção da autoimagem”, as ideias convergiram em torno das armadilhas postas na ideia de representatividade, pela interferência no processo criativo em si. 

“Falar que nós artistas negros representamos, nós somos a cara da produção, acho isso muito forte. Acredito que estamos todos tentando escrever as nossas vivências de acordo com a linguagem de cada um”, pontuou a artista visual Manuela Navas. Para Maxwell Alexandre, o lugar da representação facilmente coloca o artista negro na posição da cobrança por uma atuação política. “Uma palavra que tá muito do lado do artista nesse sentido é o ativismo. E acho que ‘ativismo’ é uma palavra que te coloca numa posição de confronto socialmente, política e eticamente. Eu tenho muita dificuldade em me colocar como alguma coisa. E gosto muito da ideia de não ter responsabilidade”, refletiu o artista que, na semana seguinte ao festival, foi agraciado como Homem do Ano na Cultura pelo prêmio da revista GQ – que também deu a Mano Brown a distinção máxima como Ícone do ano.

Para Diego Mouro, atualmente em exibição com a exposição solo “Povoada”, no Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, é importante trocar com artistas e colegas de profissão. “Talvez esse seja o grande ouro que aprendi sendo educador. Me ajuda a enxergar outras possibilidades quando eu troco com quem já tá lá há mais tempo. Porque cada um aqui ocupa o mercado de um jeito. Só aqui são cinco maneiras diferentes que a gente pode falar de como é o mercado, como é viver de arte”, apontou. 

Multiartista, Novíssimo Edgar abriu um pensamento como conselho aos mais novos: “Não se iludir é uma coisa muito importante. Porque exatamente quando você quer estar nesse lugar, e você recebe um convite para estar, você pode querer fazer qualquer coisa pra fazer parte daquilo” alerta o artista. “Acho que o mais importante pra um artista é saber o que é inegociável e também salvaguardar em sete chaves os seus segredos e mistérios. Isso consegue trazer uma leve película de proteção”.

Foto: Grazielle Salgado

Maxwell Alexandre trouxe um ponto na mesma linha da atenção ao trabalho de artista. “A maioria da galera fica com essa ideia do artista iluminado. E isso foi uma coisa que eu mapeei muito bem quando comecei a ser artista, de ver que a galera não trampava. Achava que o bagulho era vernissage. Esse romance, essa atuação, o que é se parecer com um artista?’ Vai atuando como ser um artista e esquece de bater ponto”. A pesquisadora que compõe dois importantes trabalhos de arte contemporânea no país, a HOA Galeria, de Igi Ayedun, e as investigações do próprio Maxwell Alexandre, Nathalia Grilo sintetizou: “Esse que eu sinto ser o grande limiar. Acompanhando artistas, eu vou percebendo que na hora que ele passa a ser operário, e vem a consciência de que ele vai bater ponto, se depara com a realidade. Porque a galera que ainda não entrou no mercado às vezes tem um pensamento romântico de que os artistas que são representados por galerias estão muito bem viajando, expondo em feira. Esse ócio desse artista, essa visão maculada, eu fico pensando onde foi criada?”.

Realizado pelo selo e produtora Boogie Naipe, a Semana de Cultura Preta Boogie Week foi concebida pela CEO Eliane Dias. Advogada, Eliane tem sua trajetória entre a produção intelectual para a formulação de políticas públicas, cultural, artística e social à frente da operação da carreira dos Racionais MC’s e na gestão de artistas da Boogie Naipe, entre esses Mano Brown. Ao seu lado na produtora, está Kaire Jorge – filho mais velho com Brown, sócio e diretor executivo, além de diretor do selo Label Records.

Da concepção para execução – entre uma equipe majoritariamente feminina e negra -, chamou atenção a facilidade de acesso à informação. Uma comunicação clara e concisa. Os ingressos do festival variaram entre R$60, no lote social inicial para todo o público, até R$160, o valor cheio na semana do festival. Os artistas puderam realizar seus shows sob uma estrutura de festival que não deixa a desejar a nenhum outro realizado em São Paulo, para um público verdadeiramente interessado. Da realização da Boogie Week à publicação dessa matéria, pude circular em outros festivais e shows e reforçar essa percepção da diferença na recepção e interação entre um público que tem relação com a obra e contexto de um artista periférico para um público aleatório de grandes eventos, que por vezes mimetiza um artista/obra, do lugar do bizarro a partir do estranhamento da diferença. Considerando a tradição de festivais inclinados aos rock, ao indie e ao pop, a Boogie Week é um ponto de respiro, uma possibilidade para público e artistas negros a fim de celebrarem suas obras, interesses e subjetividades de modo íntegro. Para acompanhar e aguardar a edição de 2024. 

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12/12/2023

Bruno Barros é produtor de conteúdo independente. s.brunobarros@gmail.com | @labexp
Bruno Barros

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