Entrevista | Marcelo Callado abraça fragilidades e forças no novo disco “Caduco”

27/06/2019

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Rafael Donadio

Por: Rafael Donadio

Fotos: Caroline Bittencourt /Divulgação

27/06/2019

De cara limpa há sete meses e travando lutas diárias, o músico Marcelo Callado escolhe bem suas palavras para compor o terceiro disco da carreira solo, Caduco, lançado hoje (27) nas plataformas digitais pelo selo Rockit! e em K7 pelo selo Abismmo.

Dentro do universo musical desde criança- quando era levado pelo pai para todos os blocos de Carnaval do Rio de Janeiro-, as guerras pessoais, emocionais e ideológicas desse carioca de 39 anos não poderiam ser travadas de outra forma. Cada uma das 10 canções do novo trabalho pode ser visto como um diário de batalha que registra pensamentos, vivências, melodias e viagens.

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Nas escrituras do cotidiano de Callado, a dificuldade de viver e se relacionar de cara limpa com as situações à sua volta sem uso de qualquer droga que altere seu humor. O aprendizado da solitude com todos desafios e benefícios. Os obstáculos necessários para se viver novos hábitos, novos amores. Praticamente, uma nova vida.

Dando a cara a tapa, o músico escolheu a forma mais crua para falar dos sentimentos mais íntimos. “Queria que aparecessem as imperfeições que possuo, que isso não fosse mascarado, alterado. Isso tem a ver com essa nova maneira de viver, ‘sem efeitos’, com clareza e sobriedade”, declara sobre o foco nos arranjos simples e diretos e o não uso de efeitos em instrumentos e vozes.

O processo de gravação e produção durou apenas 10 dias, um dia para cada música. Chegava no estúdio com harmonias, letras e melodias já prontas e gravava uma base, que variava entre guitarra, violão, piano e voz. Na maioria das vezes, a voz já valia junto com o instrumento da base harmônica, ao vivo. Depois, os arranjos eram feitos. A produção foi toda de Callado e Martin Scian. Os instrumentos foram todos gravados por Callado, exceto alguns pianos e violoncelos de Cian e um baixolão de Melvin Ribeiro.

O músico é presença marcante na cena da música carioca, principalmente como baterista. Manda Chuva, Detentos e Zabumbayê Muhammeds foram as primeiras bandas em que tocou, ainda adolescente. Com Carne de Segunda, a música se tornou algo mais sério. Depois, vieram Canastra e Lafayette e Os Tremendões, além de Do Amor, Caetano Veloso, Nou Leblon, Jonas Sá, Ava Rocha, Nina Becker, Negro Leo, Rubinho Jacobina, Branco Mello, Jorge Mautner, Silvia Machete, Tripa Seca e outros.

Depois de Meu Trabalho Han Solo Vol. II (2015), o compacto Callado Compacto (2016) e Musical Porém (2017), Marcelo agora chega com alma desnuda, lírica sincera e sonoridade que vai de Captain Beefheart And His Magic Band a Paulinho da Viola. As influências ainda passeiam por Neil Young, Roberto Carlos, Lou Reed e alguns outros. Essas referências podem ser conferidas na playlist que ele montou no Spotify.

Antes de cair na estrada para divulgar o trabalho, Callado conversou com a NOIZE sobre as composições, o processo de gravação, o uso de drogas, a situação do Brasil e algumas coisas mais. O músico também fez um faixa a faixa. Solte o player e confira tudo a seguir:

Em outras conversas nossa, você me disse: “Meu processo de composição começa por algo que sinto necessidade de falar com palavras, aí, depois, tento encaixar a música”. Quais necessidades surgiram para colocar em palavras no disco Caduco?

Venho passando já há um certo tempo por um processo de grande mudança em minha vida que gira muito em torno da decisão de não usar nenhum tipo de droga que altere meu humor, no sentido de estado de espírito. Isso talvez pareça pouca coisa, mas é algo que gera mudanças em vários outros aspectos da vida, na maneira que com a qual você se relaciona com tudo à sua volta. Nesse disco, acho que vieram à tona as palavras relacionadas a essas mudanças.

Por que o título Caduco?

Me sinto um pouco caduco em relação a tudo que se faz musicalmente por aí. Parece que não estou muito consonante com nada do que ouço hoje em dia, o que não quer dizer que não goste de coisas atuais, mas que não me identifico. Pode, e deve ser exagero, mas me sinto um pouco assim. 

O álbum foi gravado em 10 dias, uma faixa por dia. Como foi esse processo de produção?

Isso mesmo. A ideia era terminar uma faixa por dia para fazermos um álbum rápido. Portanto, não haveria muito tempo pra grandes esforços mirabolantes de overdubs e etc, o lance era focar em arranjos simples e diretos. Eu já tinha as harmonias, melodias e letras feitas. Chegava no estúdio, e gravava uma base, que variava entre guitarra/violão/piano e voz. Na maioria das vezes a voz já valia junto com o instrumento da base harmônica, ao vivo. Depois ia completando o arranjo de acordo com a ideia que fosse pintando na hora. Eu gravei quase todos os instrumentos, com exceção de alguns pianos e violoncelos gravados pelo Martin Scian (coprodutor do disco) e um baixolão gravado pelo amigo Melvin Ribeiro. 

Todas as composições já estavam prontas ou teve música criada na hora, dentro do estúdio?

Todas já estavam prontas, com exceção da música “Meio Dia”, que surgiu de uma pequena “levação” de som solitária e despretensiosa que fiz no estúdio enquanto Martin e Sarah [Abdala] arrumavam os equipamentos e que gostei. Pedi então pra eles gravarem rapidinho e depois coloquei por cima um poema que tinha feito anteriormente.

No texto de apresentação, fala-se da gravação das vozes: “O som que vem da caveira, sem uso de nenhum programa de correção ou afinação digital”. Por que essa escolha? Tem relação com a letra de “Meu Feito”: “Construindo sem efeitos, vou mostrando os meus defeitos, à vontade, do meu jeito. De perto ninguém é perfeito”?

Tem relação, sim. Não queria muitos efeitos em nenhum instrumento, muito menos na voz. Queria que aparecessem as imperfeições que possuo, que isso não fosse mascarado, alterado. Isso tem a ver com essa nova maneira de viver, “sem efeitos”, de cara limpa, com clareza e sobriedade. 

Você montou uma playlist no Spotify com músicas que inspiraram o disco. Vai desde Captain Beefheart até Paulinho da Viola. De que forma essas músicas influenciaram Caduco?

Muitas delas em ideias de arranjos, instrumentações…, outras pelas letras, pela clareza na forma em que as mensagens são passadas, pelos assuntos em si, e por aí vai.  

Nas músicas de Musical Porém (2017) você já falava sobre renovação e recomeço. Uma das questões era a vida sóbria e saudável. Em “Só Por Hoje”, você fala novamente sobre isso, sobre parar de usar drogas. Como foi cantar e expor essa parte da sua vida?

Difícil, mas necessário. Não é fácil abrir esse tema de forma tão direta, mas o bem que me faz e que pode fazer a outras pessoas que possam estar passando pelo mesmo que passei e passo, já me faz ter vontade de tê-lo abordado dessa maneira.

O que o uso ou não uso de drogas interfere na sua produção?

Nas composições, sinto pouca diferença pois nunca fiz música chapado, com raríssimas exceções. Agora, quanto à produção, controle e foco, sem dúvida nenhuma, estar sóbrio faz com que tudo seja bem menos doloroso e dependente.  

Que diferenças você enxerga entre Musical Porém e Caduco?

Musical Porém é um disco duplo, com muita informação propositadamente. Ali, quis colocar, de uma vez, todas as músicas que tinha feito e que julgava relevantes na minha pequena história como compositor, até para esvaziar a cuca e poder escrever novidades. Foi também um álbum em que comecei com a ideia de tocar vários instrumentos na mesma faixa, não só os percussivos, mas ainda sim tem um festival de amigos participando. No Caduco, quis trazer mais objetividade. Gravar quase tudo eu mesmo, mais rápido, com menos instrumentação, menos músicas e mais foco. É muito mais conciso, direto e bem menos prolixo.

Em 2017, a situação já não era muito favorável, mas agora existe quase que uma guerra contra a cultura. Você sentiu diferença durante a produção dos dois trabalhos?

Na produção, diretamente, não, pois tanto num quanto noutro eu não dependia de nada e de ninguém para bancar a feitura dos discos. Eu mesmo banquei a parada com meu dinheiro. A diferença está no que acontece em nossa volta, isso sim está visivelmente pior do que antes. Menos incentivo, menos trabalho, menos dinheiro, todos perdem, e a tendência é piorar. É triste e revoltante. Fora a guerra contra a cultura, que já é algo tremendo, esse governo pode gerar um caos econômico, em que os artistas, principalmente os independentes, serão prejudicados direta e indiretamente pela falta de diminuição do poder de compra e de investimentos em geral.

Há poucos dias, vi uma publicação falando do show da Tripa Seca (projeto realizado por André Paixão, Marcelo Callado e Renato Martins). Vocês lançaram poucas músicas com esse projeto. Tem alguma produção em andamento?

Sim. Vamos lançar um disco com 10 músicas inéditas agora no fim do ano. Estamos bem empolgados. Adoro trabalhar com eles quatro. 

Faixa a Faixa

“Só Por Hoje”

A ideia da feitura dessa canção surgiu da minha necessidade pessoal de encontrar uma maneira nova de viver, sem drogas. Achei que escrevendo e cantando sobre isso de forma tão direta e simples, eu conseguiria me ajudar nessa caminhada difícil que é ficar limpo e, ao mesmo tempo, talvez, ajudar outras pessoas que passem pelo mesmo perrengue. Ela serve quase como um mantra que repito pra mim mesmo diariamente.

“Hora Grave”

É um poema do Rainer Maria Rilke, com tradução do José Paulo Paes. Quando o li pela primeira vez, já o fiz com uma melodia, e gosto muito da ideia que o poema me passa, uma espécie de solitude universalmente compartilhada.

“Meu Feito”

Fala sobre encarar a vida de cara limpa, sem “efeitos”, de uma maneira geral, mas também fazendo uma ligação com um relacionamento num momento de crise, onde se precisa respirar e acreditar que tudo pode melhorar.

“Meu Sol”

Veio de um poema que havia escrito para a Inti, minha namorada. Inti em Inca era o nome do deus do Sol, aí fiz toda uma relação de palavras. Musiquei o poema e mandei pro Do Amor, pra entrar no disco novo da banda, aí o Ricardo fez o complemento harmônico da parte final. A música acabou não entrando no disco Do Amor e veio parar aqui, no Caduco.

“Nosso Beijo”

Um poema musicado. Gosto, pois foi a primeira música, eu acho, que fiz no piano, instrumento do qual não tenho nenhuma noção.

“Exit/Exist”

Já tinha essas duas palavras anotadas há muito tempo pois achava que conseguiria armar uma boa relação entre exit [“saída “em inglês] e exist [“existir” em inglês]. Aí, inspirado pelo disco EXIT (2017), do Dado Villa-Lobos, retomei a ideia e decidi trazer pra perto do tema da mudança de hábitos também. O bacana é que dá pra sair do micro e enxergar como algo maior também, relacionado a situações mais plurais. Destaco o solo de piano animal do Martin.

“Corais Laranjas”

É a música mais antiga do disco. Ela foi criada em maio de 2014 e é uma parceria com meu compadre Gustavo Benjão. O que acho engraçado nela é que podemos observar dois pontos premonitórios em sua letra. O primeiro diz respeito a parte que fala ‘se um maracanazo se repetir’, e naquele mesmo ano a tragédia da copa de 1950 se repetiu, não no Maracanã, mas nas Minas Gerais, com o 7X1 [A partida pela Copa do Mundo de Futebol Masculino no Brasil, em que a seleção brasileira perdeu de 7×1 para a Alemanha] . O outro é que nos referimos ao palhaço Bozo dos anos 80, dizendo que se voltassem a reprisar seus programas seria algo divertido, bacana, e para o espanto geral, de fato, em 2018, um certo ‘Bozo’, reapareceu, mas no caso não foi e nem está sendo nada bacana, nem divertido.

“Demodê”

Uma brincadeira, um jogo de palavras meio engraçadinho, que trata um pouco das dificuldades em manter-me atualizado, assim perdendo a dama. Gosto muito do arranjo dessa. Foi inspirado no Captain Beefheart And His Magic Band.

“Meio Dia”

Surgiu de uma pequena levação de som solitária e despretensiosa que fiz no estúdio, enquanto Martin e Sarah arrumavam os equipamentos. Eu gostei e pedi pra eles gravarem rapidinho. Depois coloquei por cima um poema que tinha feito anteriormente, enquanto lavava a louça em casa.

“Contrafluxos”

Outra parceria com o Gustavo. Fizemos essa harmonia e melodia para a trilha de um filme em 2017. No final do ano, coloquei a letra sozinho. Gosto da passagem: “um copo vazio está cheio de amor”. Também vale ressaltar que os ruídos no começo da faixa foram gravados com meu celular pelas ruas do Rio, mais especificamente em bueiros de saídas de ar no Leblon, e em frente as escadas rolantes da estação de metrô da praça General Osório.

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27/06/2019

rafaeldonadio@gmail.com
Rafael Donadio

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