Entrevista | O território sonoro-afetivo do novo disco de Antônio Neves

22/02/2021

Powered by WP Bannerize

Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: Lucas Martins/Divulgação

22/02/2021

Ouvir A Pegada Agora É Essa, disco recém lançado pelo multi-instrumentista e arranjador carioca Antônio Neves, é como transitar pela cidade do Rio de Janeiro. Quem mora ou já visitou, sabe, quem não, pode pegar carona no álbum que leva o selo da britânica Far Out Recordings. Em algumas faixas, como “Luz Negra“, você pode sentir-se dentro do metrô, vendo os vultos de pedaços das estações por entre as janelas. Em “Simba”, pode se imaginar caminhando pelas ruas de Jacarepaguá. Já “A Pegada Agora É Essa” evoca os ensaios nas quadras das escolas de samba ou rolêzinhos em Madureira.

Os cenários são múltiplos, alguns pouco concretos mas extremamente atmosféricos. Em seu segundo trabalho de estúdio, Neves consegue registrar uma cartografia da capital fluminense feita a partir de seus afetos: seus amigos, seus parentes, suas influências, seus sons, dos ruídos de brigas de esquina, da atmosfera de farra e folia ao ritmo quase de transe que envolve músicos em uma noite de gafieira. Filho do também músico Eduardo Neves, Antônio mistura seu agora e seu desde sempre na elaboração de um álbum aterrado no free jazz imagético, barulhento e nada piegas. Ao lado de parcerias de peso, como o próprio pai, Ana Frango Elétrico, Hamilton de Holanda, Marcos Esguleba e Alice Caymmi, ele oferece um registro capaz de representar o jazz brasileiro desviando dos estereótipos.

*

Antes do lançamento que rolou no último dia 18, batemos um papo descontraído com Antônio sobre a produção do disco, os caminhos percorridos até à pegada final e lançar um disco por um selo estrangeiro. Ouça o álbum e confira o que rolou logo na sequência:

Com bastante risco de soar clichê e piegas, não sei se tem outra pergunta pela qual poderia começar que não seja: afinal, que pegada é essa? 
É engraçado, eu gosto de inventar uns jargões às vezes, ficar brincando com isso. ‘A pegada agora é essa’ virou um jargão que eu tava usando pra tudo! Sei lá, tô fazendo um churrasco, chego pra galera com uma tábua cheia de carne, a galera fala ‘Que isso?!’, e eu respondo: ‘A pegada agora é essa’. É um jargão que eu repetia pra galera e começava a repetir pra mim. Na hora de gravar o disco, foi muito uma parada tipo ‘Cara, faz do teu jeito, faz livre, faz na sua pegada’. Óbvio que eu propunha umas linhas de baixos, umas paradas assim, mas deixava os caras darem uma pirada, sabe? ‘Irmão, faz como você quiser, descasca tudo aí’. É uma coisa meio assim, ‘a pegada agora é essa aí mesmo, segue, segue!’. É um jargão do tipo… faça do seu jeito, mas não se leve tão a sério. 

Mesmo sendo uma coisa descontraída, esse jargão foi tomando uma proporção em que você se deu conta de que, ok, esse era o nome do disco. 
É, é o nome do disco, e tinha que ser.  Meus amigos mais próximos que também estavam gravando, os técnicos, a galera já falava: O nome é esse. Mas começou como uma brincadeira!

Algo bem RJ, né? 
Isso, algo bem RJ, você chega, sei lá, com 10 cervejas num lugar, e a galera fala: “Que isso?”, e você responde: “A pegada agora é essa” [risos]. 

Adorei [risos]! Você falou no seu perfil no Instagram sobre planos de se mudar que foram impedidos pela pandemia, e também sobre o estopim pro disco ter sido uma noite insone depois de assistir um documentário do Quincy Jones. Como foi o processo de erguer as bases do projeto e a partir daí e formar a banda nuclear do disco? 
Exatamente! Cara, então, eu já tinha ideia de gravar um disco novo que ainda não tinha nome, apesar do jargão já estar existindo. Já tinha na cabeça mais ou menos quem eu poderia chamar, mas ainda não tinhas as músicas ou nada além disso. Aí eu vi o documentário do cara lá e achei bizarro a quantidade de coisa que o maluco fez, como ele se relacionava pra fazer os feats, que os músicos que ele chamava eram amigos dele, enfim, achei muito foda, principalmente porque ele colocava tudo pra frente. Eu pensei: ‘O que eu tô esperando?’ Fiquei a noite inteira pensando nessa parada e resolvi chamar os caras que são meus amigos, que sei que eu sou fã número um dos caras. No dia seguinte, já botei no papel, anotei o nome de todos os músicos e liguei pra eles. Todo mundo disse sim. Duas semanas depois já tinha gravação de baixo e batera, na outra semana já tinha de outra coisa, isso tudo no final de 2018. Foi isso, eu tinha uma ideia na cabeça e saí do ócio. E o Quincy tipo, tem uma discografia bizarra, cheia de gente foda, fala dos músicos com maior carinho… percebi que não tinha como dar errado. Todos são meus amigos e acho que essa intimidade ajuda no resultado da música, por essa intimidade. 

E os convidados para os feats? 
Chamei dois baixistas que eu conhecia e também quis revezar mais as percussões, quase que um pra cada música. Entre os feats tem o meu pai fazendo a flauta da última faixa, e, pô, ele é o cara que mais me incentivou a ser baterista, a ser músico. Na primeira faixa tem a Leda, ela foi quem ajudou a me criar, ela trabalhava na casa da minha vó como faxineira e a gente é muito íntimo, se fala todos os dias, é uma pessoa muito importante pra mim e eu acho que ela em um jeito de falar muito carioca, e eu queria retratar isso de uma forma intensa na música, queria muito a voz dela. Foi a primeira vez que ela foi gravar alguma coisa, ela não é uma cantora, mas como eu tava fazendo o disco com muitos amigos íntimos, achei que tinha que botar uma parente minha.  

A voz dela é incrível, deu pra perceber que ela fez com um feeling muito dela. 
É, é muito dela, rolou só uma pequena direção, tipo ‘imagina que agora tem gente brigando!’. Mas ela improvisou, é ela quem inventou tudo ali! Bom, aí tem o Marcos Esguleba, percussionista da banda do Zeca Pagodinho e do Paulinho da Viola, ele é da Unidos da Tijuca há anos, um cara foda, do samba. Ele tem uma banda com o meu pai chamada Pagode Jazz Sardinhas Club, uma banda instrumental cheia de humor, engraçada pra caramba e muito boa. E ele é tipo um tio, conheço o filho dele, ele me conhece desde criancinha, foi quem me deu o meu primeiro instrumento – um tantã; chamei ele, ele topou. Já Alice Caymmi, conhecia ela de tocar por aí, da gente ir pros bares, chegamos a fazer uns dois shows há um tempo. Quando veio a ideia de fazer essa música do avô dela, do Dorival, “Noite de Temporal“, eu sabia que tinha que chamar a Alice e também o companheiro dela, o Filipe Castro, percussionista baiano que também colaborou nessa faixa. Já “Luz Negra”, com a Ana Frango Elétrico, bom, a gente já tá trabalhando há algum tempo, uns três ou quatro anos juntos. Entrei pra banda dela, uma coisa que eu nunca esperei. Gravamos a música e chamei ela inclusive pra fazer a arte do disco, capa de single, ela fez isso também. Sou fã pra caralho das coisas dela, a gente ficou amigo pra caralho. Liguei pra ela para convidar pra gravação de “Luz Negra” e ela ficou ‘’Luz Negra’? Nelson Cavaquinho? Nunca cantei um samba’. Eu falei pra fazemos, ela confiou e rolou. Em “Forte Apache”, pensei muito no Hamilton de Holanda porque essa música meio alaúde, meio bandolim. 

Ana Frango Elétrico e Antônio Neves (Foto: Lucas Martins/Divulgação).

Desde quando você vem investigando a voz à serviço do instrumental? E como foi esse processo da voz não exatamente sobre o canto, mas sobre a vocalização?
O Pa 7 (2017) também tem várias vozes. Eu já fiz muitos bailes de samba de gafieira, principalmente na Lapa, e chega um momento que você está só tocando; não que você não esteja prestando a atenção, mas só tá ali querendo tocar com a galera. Eu sempre ouvi muita música instrumental, desde criança, meu pai é saxofonista e flautista, é até raro eu ouvir uma música que não seja instrumental, mas o vocal sempre esteve presente nas músicas que fiz, ainda mais quando traz uma imagem. 

Sim, é tudo muito imagético. O álbum parece muito povoado pra mim. Sinto que a cada canção, todos os elementos que estão ali trazem uma paisagem diferente. A canção cantada pela Alice Caymmi, por exemplo, parece como um lamento, uma lenda triste… 
Essa parada foi surreal! Fui gravar essa voz em são Paulo porque ela tava morando lá na época. Já estava tudo montado quando ela chegou, e ela fez tudo aquilo em apenas um take. Lembro de ficar arrepiado, emocionado. Ela ficou apenas meia hora no estúdio e foi embora para casa. Inclusive, para os instrumentos, tudo foi gravado em, no máximo, dois takes. 

Mas era um objetivo seu criar essas paisagens e atmosferas? Você deu algum direcionamento? 
Eu sabia mais ou menos. Se eu chamasse o Eduardo Farias e o Luiz Otávio, os pianistas, eu já sabia que eles criariam muitas atmosferas e que eu ia gostar disso. Um toca piano elétrico e o outro acústico. Sobre as vozes, rolaram direcionamentos. Pro Esguleba eu só disse o nome do disco e disse pra ele fazer o que quiser. E aí esse negócio da ‘turma de baixo’, ‘turma do meio’ é puro improviso, ele inventou tudo isso daí em um take só. A Ana foi super ativa, ouviu a faixa, já veio com uma proposta de colocar um efeito na voz, por exemplo.

Antônio Neves e seu trombone (Foto: Lucas Martins/Divulgação)

Antônio, você é baterista e trombonista. Se com a bateria você teve essa proposta de ser mais itinerante, que lugar o trombone, que você ergue na capa, ocupa nesse território musical que é A Pegada Agora É Essa
Se for falar de trombone, o timbre dos meus dois discos sou eu e Joana Queiroz, e eu já queria também trazer uma coisa mais grave, que é o clarone. Em todas as faixas, eu e Joana estamos tocando as melodias juntos, são sempre dois instrumentos, Mesmo assim, acho que ele apareceu de uma forma bem minimalista, praticamente só tocando as melodias, sempre junto do clarone, já que essa soma dá num timbre que eu gosto muito. Mas acredito que o lugar dele é só de apresentar a melodia e deixar a galera brincar porque acho que às vezes a música instrumental pode se perder um pouco numa coisa de pirotecnias, técnica, erudição… acabei colocando ele de uma forma só a apresentar a melodia na divisão que eu pensei, os naipes simples, umas pontuações. Queria deixar uma maçaroca, deixar os pianos quase como se fossem dois cachorros brigando, deixar esse bolo falar mais que a melodia. 

Eu gostraria muito que você falasse sobre essa proposta de um jazz mais free, sem muita erudição, que serve de plataforma pra dialogar com ritmos brasileiríssimos e populares, como o partido alto, o jongo, e também sobre essa estética de samples que ajuda a povoar essa atmosfera do álbum, algo que me remeteu à tradição de hip hop e funk. 
Os samples a gente meio que fez lá no estúdio, na hora. Eu falava pro Angelo [Wolf], técnico de som que mixou: ‘Cara, a gente tem que colocar uma imagem nessa parada. Sei lá, barulhos aí … trovão! Coloca trovão! Vamos procurar os sons aí, bicho, pelo amor de deus [risos]’. Já o som do fósforo foi riscado mesmo, por exemplo, já na intenção de trazer mais imagens. Gosto de associar som à imagem. Em “Luz Negra” tem uns sons de uma manifestação de 2013 aqui no Brasil que achamos em um vídeo no Youtube. Em “Forte Apache” tem umas coisas de velho oeste, enfim, foi uma pesquisa de tentar buscar essas imagens. Sobre os ritmos, as levadas são aproximadas ao afrobeat e piano acústico é meio jazz. A caracterização dos ritmos brasileiros eu deixei total na mão dos percussionistas que chamei. 

A Pegada Agora É Essa é o segundo álbum de estúdio de Neves(Foto: Lucas Martins/Divulgação)

E como tá sendo a experiência de lançar por um selo fora do Brasil?
Tá sendo uma honra! Nós mostramos um single pra eles [Far Out], eles gostaram, e, cara, acho que aqui no Brasil é muito difícil você divulgar um trabalho, principalmente instrumental, além de independente. Acho que isso é até um problema de educação, aulas de música em escolas são muito precárias, as pessoas não têm contato com instrumentos. Em outros países, as pessoas têm contato com as bigbands desde cedo, aprendem a tocar trompete ao cinco anos. Tem voz no meu disco, mas eu ainda o considero instrumental, estou muito nesse meio.  Achei que lançar fora poderia ser algo capaz de abrir portas, ainda mais em um selo especializado em música brasileira. Chegar em outros países com o Pa 7 já foi muito mais difícil, ficou muito mais na minha bolha aqui do RJ. Tô feliz, com uma super expectativa. Espero conseguir fazer show com essa galera, esse disco não seria nada sem os músicos.

Tags:, ,

22/02/2021

Brenda Vidal

Brenda Vidal