Formada em 1968, a Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou é considerada a banda beninense de maior projeção internacional. Originalmente chamado Orchestre Poly-Disco, o grupo foi criado pelo saxofonista Mélomé Clément, falecido em 2012, mas já no início de sua trajetória incorporou o nome de Cotonou, a maior cidade do Benim.
Com dezenas de singles e LPs lançados, a Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou é responsável por conectar as múltiplas musicalidades de seu país natal às referências estrangeiras do funk, do jazz, do rock e da música psicodélica. É assim que a mídia internacional costuma descrevê-la, no entanto, o saxofonista Augustin Pierre Loko, mais conhecido como Pierre Loko, explica que a espinha dorsal da Orchestre é a espiritualidade vodu do Benin. “Nossas composições sempre foram modos de agradecer aos vodus”, diz Pierre em entrevista exclusiva à Noize.
Conversamos com o saxofonista original da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou durante a passagem do grupo a São Paulo, por ocasião do Sesc Jazz 2023. Abaixo, você confere a nossa conversa.
Eu gostaria de perguntar sobre uma curiosidade que eu tenho, que cena beninense é essa? Porque aqui a gente conhece a história já a partir do Mélomé Clément, reunindo os músicos e formando a orquestra. Eu queria entender a cena local, as referências locais, li em algumas entrevistas que, no início, a música de James Brown, Otis Redding, Johnny Halliday, Beatles e outros artistas norte-americanos da época fizeram sentido para o grupo. Mas e no Benin, quem foram e como eram os sons dos artistas que motivaram a jornada de vocês?
Sabe, lá no Benin nós já temos tudo. Nós adotamos nossa música tradicional, tem uma parte que a gente nunca vai deixar. As músicas estrangeiras que chegavam, então, não nos influenciavam diretamente, era apenas um som que escutávamos na rádio, porque na nossa terra temos mais de 64 ritmos, danças, cantos, é daí que vem nossa verdadeira inspiração.
Na nossa terra, é o vodu que manda, cada vodu tem sua dança, suas canções, seus ritmos, sua comida. Lá no Benim, muitos se nutrem do vodu, levam ele a sério, porque quando você faz isso, você obtém bons resultados, você vai e vem, sabe o que você fez, e você continua fazendo seu trabalho a favor do vodu. Nossas composições sempre foram modos de agradecer aos vodus.
Tem gente vindo do mundo todo para conhecer o Benim. Quando chegar lá, você vai entrar em contato com esses ancestrais que vão te dar a resposta.
Aproveitando que estamos no tema, como se dá a espiritualidade e a política nas composições das músicas?
O que tem que saber primeiro é que somos nós, os seres humanos, a própria política. Assim, não temos como diferenciar a política da espiritualidade, pois elas andam de mãos dadas. Se a política quer continuar, durar, ela precisa voltar-se para a tradição, sobretudo em período de crises políticas, a política não pode mexer na tradição, ela deve respeitá-la, senão não há política.
Li em algumas entrevistas que mais de 50 músicos já passaram pela orquestra. Também acho interessante o convite que vocês fazem a outros artistas, por exemplo, li entrevistas em que Angélique Kidjo disse ter aprendido música no quintal da Orchestre. Gostaria de entender como funciona essa troca de saberes intergeracionais, eu vi que o baixista e o baterista da formação atual são bem jovens e partilham espaços com os membros mais antigos. Gostaria de saber como se dá essa parte pedagógica da troca de saberes ao longo dessas décadas.
Nós fazemos isso porque sabemos que temos o dever, a responsabilidade, de deixar algum legado para a juventude. A gente não pode morrer, ir embora com o que surge da nossa tradição. Ela é para todos nós. Para que esconder isso? Tem que ventilar, deixar circular os saberes para que as pessoas possam fazer suas próprias escolhas. Para nós isso não é nem uma questão a ser explicada, porque apenas é assim. O Daomé [o antigo Reino do Daomé existiu de 1600 a 1904 onde hoje é o atual Benim] é a base disso tudo e tudo que a gente pede para Deus ele nos dá. Temos muitas coisas para receber e oferecer. Faça o que quiser da sua vida sempre respeitando as leis da vida.
Sei que a orquestra nasceu em torno de seis anos depois da independência do Benin. Eu compreendo, a partir dos meus estudos, os movimentos da música, do cinema, da moda, da arte, nessa época, nessa fase do continente africano, como movimentos de reimaginação cultural, como forma de afastamento dos resquícios coloniais e reafirmação dos valores locais. Percebo a orquestra como fruto desse movimento. Desse modo, me interessa muito saber como essas transformações políticas afetaram as composições da orquestra, e qual seria um marcador de diferença entre uma primeira fase e essa fase de reaparecimento?
Tudo o que a gente faz vem de inspiração do nosso povo e para o nosso povo. Como consideramos nossa música uma responsabilidade com o povo e consideramos que nele está a dimensão do sagrado, também vamos acompanhando as movimentações dele. O atravessamento da política é absolutamente natural, porque estamos enredados com a população.
Isso também se conecta com o pensamento de que tudo que temos para a vida é a morte, então fazemos um modo de vida para chegarmos bem à morte. Lá a morte não é estrangeira, ela anda de mão dada com a vida, e para cuidar da vida tem que cuidar da morte e por isso você não pode ter medo de nada, não pode ficar bravo inutilmente. Assim, você vai viver bem e muito tempo.
É por isso que a gente carrega cada momento nas nossas costas, para que a gente possa cantar cada um deles, que a gente possa cantar o valor da vida, para que a gente faça de nossa vida uma vida sagrada. Essa é a nossa maneira de compor.
Entrevista: Nathalia Grilo
Tradução: Anaïs Sylla
Revisão e edição: Daisy Serena
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