Fotos: Ariel Fagundes
“Mais do que as artes visuais, por exemplo, que dizem respeito ao olhar, a música diz respeito a tudo. Ela é muito ligada à pele, à musculatura, tudo isso. Então acho que as pessoas continuam sentindo com a Bossa Nova quase o mesmo que a gente sentia na nossa época.”
Gilberto Gil
No centro do palco, cercado pelos três músicos que o acompanham na turnê de Gilbertos Samba (2014) – o filho Bem Gil (violão, guitarra, percussão e flauta), Domenico Lancellotti (bateria, percussão e MPC) e Mestrinho (sanfona e percussão) –, Gilberto Gil beberica seu chá de erva doce enquanto repassa o repertório com o cuidado que exige um ensaio final. A “passagem de som” antes da apresentação do último sábado, em Porto Alegre, vai um pouco além do que sugere a expressão. Durante mais de uma hora, Gil repassa as canções de João Gilberto que toca desde os 16 anos com o cuidado de quem ainda as estuda. “A cada cem anos nasce um, e a cada 25 um aprendiz”, canta, em “Gilbertos”, canção composta para costurar o repertório do disco-tributo ao gênio misterioso, recluso e inconteste da Bossa Nova. Além de “Gilbertos”, Gil incluiu no álbum “Eu vim da Bahia”, por ser a única de suas composições gravada por Gilberto; a homenagem instrumental “Um abraço no João” (referência a “Um abraço no Bonfá”, tocada no show); e “Desde que o samba é samba”, de Caetano Veloso. “É uma coisa mais recente do repertório dele”, contaria à NOIZE e a outros jornalistas mais tarde, depois da passagem de som, “e que eu coloquei também pra marcar a importância do Caetano na própria obra do João, como um grande hermeneuta, digamos assim”. E ri com vontade. “Caetano é isso, tem sido isso, e, além do mais, é um samba maravilhoso”.
Além dessas canções, Gil optou por gravar apenas as imortalizadas na voz e no violão de João em seus primeiros álbuns, que desconcertaram criativamente sua geração. “Tem ‘O Pato,’ ‘Doralice’, ‘Desafinado’… todas de quando ele apresentou ao mundo aquela originalidade extraordinária, inventiva”. Quando um colega pergunta se ele teve a chance de mostrar as canções a João, Gil responde que não, o que não surpreende ninguém. “Eu não vejo João Gilberto há muitos anos. Por ocasião da realização do disco, já próximo à gravação, tentei falar com ele. Também tinha que pedir autorização pra uma música, não consegui….”, lamenta. Antes que eu pudesse perguntar que canção era essa que ficou fora, outro repórter é ágil ao fazer uma nova pergunta e eu paro de prestar atenção por alguns segundos, pensando em “Ho-ba-la-la” e “Bim Bom”, as poucas que pude lembrar como de autoria de João. Todo o mundo sabe que João não precisava escrever: era bom demais em roubar canções alheias. Transformava em clássicos composições de contemporâneos seus como Dorival Caymmi, Ari Barroso, Tom Jobim e Roberto Menescal apropriando-se e dando a elas qualidades de originais.
“E podem mesmo falar mal, ficar de mal que não faz mal”
Me pergunto se Gilberto Gil seria acometido pelo frio na barriga que diz sentir quando sobe ao palco se mostrasse uma de suas interpretações a João, notório neurótico, dono do ouvido mais exigente da música brasileira. Por julgar estarem mal conservadas e por terem sido remasterizadas sem sua autorização, João briga há mais de duas décadas com a EMI pela guarda das masters originais dos álbuns Chega de Saudade (1959); O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), que reúnem as faixas selecionadas para o disco de Gil. Se para alguns a escolha por reler antigas canções ao invés de apostar em composições próprias pode parecer uma opção mais fácil para um veterano, outros conseguem sentir a responsabilidade desafiadora que é reinterpretar cada uma daquelas músicas, já cristalizadas por João como arte inaprimorável. No ensaio, ou melhor, na passagem de som, Gil já deixa derramar no palco um pouco da paixão com que toca cada uma delas.
Componente ou não desse senso de responsabilidade em relação à obra de João, Gil também parece ter o ouvido irritadiço daquele que homenageia. Dividido entre aprovar ou reprovar a acústica do Teatro do Bourbon Country, ele entremeia as canções ensaiadas com uma série de onomatopeias tentando explicar o que o desagrada no som dos fones, da percussão, dos graves, dos agudos… Quando interrompeu com uma careta a performance de “Rio, eu te amo” logo nos primeiros acordes e já na metade do show, me contorci de vergonha na poltrona pensando que ele faria alguma reclamação aos técnicos de som. Mas não passava nada, só esquecera a letra. “Ah, a velhice”, lamentou, divertido. Constrangimento nenhum, nem lá nem aqui.
Na passagem de som, outra esquecida de letra já havia maravilhado as poucas testemunhas. Pela entonação e pelas palavras escolhidas ao reclamar de si mesmo para os colegas de palco, Gil nos levara ao início de “Irene” e à conversa que Caetano deixa escapar – como um presente inesperado ou a cereja da gravação – no disco homônimo de 1969. “Ah, meu Deus!”, Gil exclama, do mesmo jeito que fez aos 27 anos quando “tava com cara de quem não ia cantar”. Quase um baião, “Irene”, foi composta por Caetano em seus dias finais na prisão, quando buscava consolo na lembrança do riso de sua irmã mais nova. Presos no mesmo dia, considerados uma ameaça ao regime militar, Gil ganhou no cárcere a companhia confortante de um violão (com o qual conceberia “Cérebro Eletrônico”, “Futurível” e “Vitrines”), Caetano não teve a mesma sorte, o que não o impediu de compor.
“Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço”
Em quartos individuais situados em diferentes quartéis na Vila Militar de Deodoro, no Rio de Janeiro, Gil e Caetano tiveram experiências bem diferentes. Enquanto Caetano teve de se acostumar à hostilidade dos guardas, Gil era tratado com simpatia. Na época, soldados e alguns oficiais o saudavam com a expressão “aquele abraço!”, bordão de Chacrinha que começava a “viralizar” e cuja origem Gil desconhecia. Foi a canção que surgiu depois, um hino à alegria, à liberdade e ao Rio de Janeiro, que encerrou o show da última sexta. Quando voltou para o bis, Gil surpreendeu, mas não exatamente de forma positiva: com uma carreira repleta de sucessos de público e de crítica, optou por fazer jus ao sentido original do termo “bis”, repetindo “Desde que o samba é samba”. Foi com um pouquinho de frustração que o público foi embora depois do clássico abraço de despedida.
“Aquele Abraço” também foi inspirado pelo exílio obrigatório que sucedeu sua prisão. Quase cinco meses depois de serem encarcerados, embarcaram para Londres orientados a não voltarem (“se voltarem, saiam do avião direto para a Polícia Federal para nos poupar o trabalho de procurá-los”, disse o agente que os acompanhou). Foi a primeira viagem de Gil à Europa, para onde ele vai todo o ano desde 1978, quando fez sucesso sua performance no suíço “Montreux Jazz Festival”. Depois de cancelar a turnê de 2014 para curtir a Copa do Mundo no Brasil, ele embarca ao velho mundo no mês que vem não para apresentar Gilbertos Samba, mas para contemplar os diversos sucessos da carreira com canções como “Palco”, “Domingo no Parque” e “Toda menina baiana”. “Desta vez estou indo passear com Flora”, a empresária Flora Gil, sua esposa desde 1988, “vou fazer assim: de quatro em quatro dias uma cidade e um show, pra pagar a viagem. É só eu, violão e Flora na luz”.
“O coração tem razões que a própria razão desconhece”
É com “Aos pés da Santa Cruz” que Gil abre o show e faz com que algumas das perguntas feitas na pequena coletiva, minutos antes, comecem a ser respondidas. Na verdade, Gil parece eliminar a necessidade da pergunta. Como João, que sintetiza um sentimento sobre o qual pensadores se debruçam desde que o mundo é mundo com “é amor o ho-ba-la-la” e, pronto, está tudo dito. É um sujeito que já mergulhou em gêneros como rock, reggae, pop, baião, que com seu violão ajudou a construir o que hoje chamamos de música brasileira e que transmite tudo isso quando senta num banquinho e simplesmente toca um samba. Parece mais preocupado em estar ao invés de ser.
Sem os terninhos de João, mas impecável em um figurino da Osklen, Gil, em seu palco minimamente adornado, faz jus à elegância inventada pelo outro Gilberto. Antes, na entrevista, eu havia me preocupado em saber como ele se sentia revivendo as canções que o fizeram começar a tocar violão e a largar o acordeon que o acompanhava desde os 7 anos (influência de outro mestre, Luiz Gonzaga). “Esse disco é um disco pra mostrar que de alguma maneira eu imito João”, respondeu. “Todo o meu lado suave, ameno, mais ligado a samba, a esse jeito brasileiro, tem a presença muito forte do João. É quase intencionalmente uma vontade mesmo de soar como ele, de ser como ele, de conseguir interpretar a canção da maneira que ele interpreta, ver a canção da maneira que ele vê”.
Gil segue o show com “Você e Eu” e “Tim Tim por Tim Tim antes de saudar a plateia. O acordeon presente em sua história brilha nas mãos de Mestrinho que, como os outros músicos, tem sempre um sorriso no rosto. A presença de Domênico na bateria dá a algumas canções batuques mais potentes, suingados. Os sambas mais rasgados, como “Mancada” e “Meio de Campo”, criam um deslocamento daquela unidade “tão suavemente lisa”, como define Gil, da Bossa Nova. “Minha versão tem uma certa abrasividade, uma coisa de lixa”. Literalmente, já que lixas são usadas pelos músicos como instrumentos percussivos. A ressalva foi o arranjo ousado e ruidoso de “Desafinado”, que quase causa certo desconforto ao vivo. Minha vontade era que Gil estivesse sozinho no palco, como fez ao cantar “Ladeira da Preguiça”, feita para Elis Regina. Depois da bela execução da canção escolhida provavelmente por questões geográficas, o gauchismo de Elis, Gil fez questão de lembrar com carinho da Pimentinha.
O notório e histórico afeto cheio de gratidão por Elis já meteu Gil em uma grande saia-justa. Por lealdade à amiga, uma das primeiras intérpretes a cantar e gravar suas canções, participou da “Passeata contra a Guitarra Elétrica” por ela liderada em 1967. Justo Gil, que tanto ajudaria a modernizar a música popular brasileira. Quando a entrevista coletiva estava prestes a acabar, consegui fazer uma última pergunta, falando justamente sobre afetos que podem nos colocar em enrascadas.
“Com a fé de todo crente, a razão de todo ateu. Eu que sou ele que é ela, ela que é você e eu”
“Marinar vou eu, votar na Marina, marinar. Marinar vou seu, sonhar que a menina vai chegar. Vai chegar pra tomar conta da gente e a gente vai contar com a benção de Jesus Nazareno, o axé de Oxalá (…)”
Trecho de “Marina Morenar”, canção feita por Gil para a campanha presidencial de Marina Silva.
NOIZE: Gil, como você explicaria o seu apoio à candidata à presidência da República Marina Silva àqueles que se identificam com você e com a sua obra, libertários, mas não se identificam com ela, mais conservadora?
Gilberto Gil: Mas eu também tenho posições conservadoras, todo mundo tem…
N: Mas você é assumidamente a favor da descriminalização das drogas, por exemplo.
G: A escolha que a gente faz em relação a lideranças, pessoas que vão liderar instituições, ou situações, conjuntos de processos ligados à vida de todos nós… essas escolhas são feitas em função de afinidade, quer dizer, as mães dos homens mais terrivelmente ruins, os piores que a gente possa encontrar no mundo, têm por eles um sentimento que a gente não pode explicar. Por que que uma mãe gosta de um filho mau? [Risos].
N: Acho que provavelmente é culpa delas eles serem maus…
G: Não, não tem culpa, a humanidade é assim, a gente tem que gostar. O afeto, o sentimento de identificação, de aproximação com alguém, não se dá essencialmente por conta dos aspectos positivos que esse alguém tem. Se dá por uma série de razões que a própria razão desconhece [ri]. Então, no meu caso, ainda que eu não compartilhe desse sentimento que muitos têm de rejeição à Marina, por acharem que ela tem posições que eu acho que ela não tem [frisa, com o olhar severo], não é por causa disso. Por exemplo, eu acho Marina muito parecida comigo e essa é uma das razões, por exemplo, que me levam a me inclinar por ela. Talvez pessoas que tenham algumas posições mais parecidas comigo não são tão parecidas comigo quanto ela.
N: Mas vocês são parecidos como?
G: Parecidos. Eu vejo como ela é no mundo, como ela se move no mundo, como ela está no mundo, o conjunto das coisas dela, do diálogo dela com a vida é parecido com o meu. [Ri novamente]. Isso me atrai nela, me dá esse sentido de confiança, que é exatamente o que caracteriza e define a palavra “votar”: o voto é deposição de confiança. Além de historicamente ela ter significados brasileiros que são importantes, ainda que você possa encontrar qualificações interessantes em outros candidatos, e essas existem de fato, tanto na Dilma quanto no Aécio, até mesmo em candidatos menos conhecidos, como a Genro, o candidato do PV e tantos outros. No fundo é isto. A gente vota mais por simpatia do que por qualquer outra coisa, e simpatia tem intensidades variadas de pessoa pra pessoa. Aécio é meu amigo, Dilma é minha colega que eu respeito muito, mas neste momento Marina é que mais me atrai.