O mundo está dentro de Stéphane San Juan. E os fatos comprovam. Francês de nascimento, é filho de pai argelino com descendência espanhola e mãe nascida no Vietã e criada em Madagascar com sangue italiano e alemão. E foi justamente esta mistura que fez com tenha se sentido tão bem quando chegou ao Brasil, por volta de 1996. “Aqui, todas as pessoas têm descendências de todos os países, e isso ajudou a me sentir em casa”, conta ele, que resolveu ficar de vez em 2002, depois de já ter vivido em lugares como Mali e Inglaterra.
E foi o Brasil que, segundo o próprio San Juan, ofereceu o maior desafio de sua vida. Baterista há 25 anos, ele sempre buscou a evolução e, justamente por isso, decidiu sair do fundão pra assumir a frente como compositor e intérprete. Seu primeiro disco solo, “Système de Son”, acaba de ser lançado, e traz um repertório intimista e, ao mesmo tempo, coletivo já que contou com a parceria dos amigos que fez no Brasil. Tulipa e Gustavo Ruiz, Kassin, Alberto Continetino, Domenico Lancellotti e Wilson das Neves estão entre eles. Os dois últimos, aliás, são os responsáveis pela descoberta da possibilidade de trocar a bateria pelo microfone.
“Cheguei no Brasil tocando com Moreno Veloso, Domenico e Kassin, no +2, e já foi impressionante pra mim estar numa banda em que a ideia era trocar a figura principal em cada disco, e quando a gente se conheceu, em Londres, era a fase em que Domenico sairia da bateria pra ser o cantor. Adorei isso, achei lindo. Ele já virou meu ídolo”, conta. “Então, quando conheci Wilson, ele virou meu guru. Ele é impressionante como baterista, aí fui ver e ele também estava fazendo um trabalho como cantor e compositor. Pensei: dois grandes músicos brasileiros fazendo isso, então o caminho é esse.”
Foi Das Neves também que incentivou San Juan a compor. “Ele tinha um samba-canção e me falou que uma letra em francês daria certo. Fiz várias até acertar, e a música, chamada ‘Rue de Mes Souvenirs’, entrou no primeiro disco da Orquestra Imperial, ‘Carnaval Só no Ano que Vem’ (2007). No show de lançamento, cantei a música com a Thalma de Freitas no palco, e a partir dali comecei a ter vontade de cantar mais e fazer mais músicas.” E o desejo era o de fazer algo rico musicalmente e com letras que tivessem alguma coisa pra contar. “Se tivesse feito o disco com 20 anos, não teria sido assim. Ele é fruto de muitos anos de experiência, vendo como funciona, acompanhando a visão de outros artistas. Ouvindo, você pode ver que é um disco feito no Brasil, tem uma onda bem daqui, mas também é francês. Eu canto em francês, não é uma música obviamente brasileira, não é um sambinha cantado em francês.”
“Retornado”, a sexta faixa de “Système de Son” , foi a primeira música a ser composta. “Ela é bem influenciada pela época em que eu morava na África Ocidental, mas a letra é em português. Então, chamei o amigo Quito Ribeiro, que é um compositor baiano, pra fazer a ligação entre a Bahia e a África.”
Todas as outras músicas que completam o disco possuem letras em francês, inclusive “Ô Chance”, um samba-canção que homenageia o mestre Das Neves.
A mistura segue em faixas como “Les Êtres Humains”, na qual ele conta com a parceria do cantor senegalês Nalla N’Doye, da americana Gabriela Riley e do rapper libanês Clotaire K, que canta rimas em árabe.
Os elogios que vem recebendo pelo álbum fazem San Juan “ganhar o dia”, mas pra ele, o disco já deu certo apenas pelo fato de existir. “Estou muito animado, pois consegui chegar até aqui, mas me sinto como um principiante, com o privilégio de já ter bagagem”, comemora. “Sei como tudo funciona, já aprendi bastante, mas é muito legal porque eu precisava de um ar fresco. Estou cantando, ensaiando com uma banda que montei aqui no Rio. Logo, faço shows de lançamento, no Rio e em São Paulo. Depois, virão outros shows. Sou profissional desde os 17 anos, já trabalhava com música nessa idade, pagava minhas contas. Aí, morei num monte de lugar, em vários continentes, e continuei sempre trabalhando com música e pagando as contas. Pra mim, isso já é um sucesso: conseguir viver do que eu gosto.”
3 PERGUNTAS, 3 CONSELHOS
Durante a conversa com San Juan, fizemos 3 perguntas cujas respostas valem pra vida. Anota aí.
Existe segredo pra viver do que gosta, algo que muitos de nós desejamos?
Vem bastante do foco. Se é isso que eu quero fazer, tenho que me ajudar, fazer todo o necessário pra poder assumir todas as situações. Como baterista ou percussionista, tenho que saber os ritmos. Logo no começo, eu passsei por situações em que não conseguia. Participei de uma banda senegalesa, e eu não conhecia a música senegalesa. Assim que fui aprendendo, vivendo o máximo de situações diferentes. Nunca procurei a facilidade, mas o desafio. Eu poderia ter ficado na França, tocando nos bares e dando aula, mas não era isso que eu queria fazer. Eu queria conseguir acompanhar qualquer estilo musical. Todas as viagens que fiz foram pra isso, foram a minha universidade. Me formei viajando, tocando e tentando arrumar o máximo de situações em que tinha dificuldades. Cada vez que elas surgiam, eu estudava. Muita dedicação e muito foco. Abri mão de tudo pra poder viver esse sonho e quando cheguei aos 40 anos, fiquei feliz de ver que estava no Brasil, que já tinha tocado com um monte de gente. Meu jeito de tocar evoluiu bastante e fiquei a fim de fazer esse trabalho solo.
Wilson das Neves falou que você é o francês mais brasileiro que ele conhece. Como se adaptar tão facilmente a um lugar diferente?
Tem uma coisa, que é difícil hoje em dia, mas pra se adaptar a algum lugar, a gente tem que ser bastante atento e aberto de espírito e saber ouvir. Eu vejo as pessoas conversando, mas na verdade, cada uma fala e não escuta a outra. Pra se adaptar, você simplesmente senta e observa o lugar, escuta e vê o que acontece. Quando pisei pela primeira vez no Brasil, me senti em casa. Não consigo nem explicar isso. A França fica longe, mas culturalmente, me senti mais próximo dela. Antes daqui, morei em Londres, que é mais perto da França, mas culturalmente é bem diferente. Estava morando no país vizinho mas onde me senti menos longe foi aqui. Todo mundo me tratando como brasileiro. Obviamente, não sou nem nunca vou ser, mas eu me sinto bem perto do povo brasileiro. A terra me acolheu, mas pra me adaptar, também fiz minha parte. Música é vida. Música é comunicação. A arte sempre vem de uma pessoa. Sou muito curioso e apaixonado pela natureza humana. Tem até uma música no disco que fala sobre o ser humano, “Les Êtres Humains”. Se você não encontrar as pessoas, não vai encontrar o país.
Vivemos um momento em que, por questões políticas e econômicas, muitas pessoas sonham em sair do Brasil. O que teria a dizer a elas?
Existe um pouco de fantasia. É uma coisa que você encontra em qualquer país, essa ideia de achar que fora é melhor que aqui. Muitos brasileiros que pensam nisso nunca foram pra fora. Uma vez que você vai, passa a entender os privilégios de ser de onde é. A gente começa a valorizar a nossa cultura. Eu já vi muito brasileiro, africano, cubano, que fica sonhando ao ver filme americano, mas muitas vezes, você chega lá e é bem pior que aqui. Tudo vem do interior. O exterior não muda tanta coisa. As dificuldades e as facilidades vêm de dentro. As pessoas ficam achando que, mudando de lugar, vai dar tudo certo, mas eu não acredito muito nisso, não, pois se você quer fazer alguma coisa, tem que fazer primeiro em casa. Se conseguir fazer em casa, talvez vá fazer em outro lugar também. Eu era músico profissional na França, realizei meu sonho lá, tocando, gravando discos, fazendo turnê. Consegui isso na minha própria casa e, depois, em oujtros lugares. Talvez tenha mais oportunidade em Nova York, mas por ter mais oportunidade, a fila é grande, né? Ás vezes, é bom lembrar que, no reino dos cegos, quem tem um olho só, é rei. Sendo estrangeiro, tenho uma visão sobre o Brasil que me faz ver muita coisa positiva, algo que alguém que tenha nascido aqui e nunca saído talvez não vá enxergar.
Fotos: Eduardo Martino