Entrevista | Zudizilla e a música como meio de transformação de si

19/12/2023

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Erick Bonder

Por: Erick Bonder

Fotos: Lau Baldo

19/12/2023

Já havia passado das 22h30 quando entramos no camarim do Agulha, em Porto Alegre, para falar com Zudizilla, que faria o show de lançamento de Zulu: Quarta Parede (Vol. 3) naquela mesma noite. Sentado num sofazinho bebendo uma cerveja, ele estava tranquilo, e usava um boné no qual estava escrito: “ART GALLERIST/ Esta pessoa possui em seu acervo a Ópera Preta/ Os 3 volumes da incrível trilogia de Zudizilla”. Logo depois, o artista subiu ao palco e fez um show arrebatador, com duas horas de duração, deixando a plateia fervendo. 

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No início de 2020, logo antes da pandemia, Zudi (que é de Pelotas, no sul do RS), havia lançado Zulu, Vol. 1: De onde eu possa encostar o céu sem precisar deixar o chão neste mesmo lugar, iniciando a trilogia batizada de Ópera Preta. Três anos depois, para comemorar o fim deste ciclo, voltou ao mesmo local e entregou ao público duas noites com convidados especiais.

Além do jazz trio de peso, com Rob Ashtoffen (baixo e guitarra), Gabriel Gaiardo (teclado e synth) e Maurilio “Pé” Beat (bateria), Zudizilla contou com o acompanhamento de DJ Nyack e com as participações de Bart, no primeiro show, e Cristal, no segundo dia. O show se iniciou com uma fala da escritora, pesquisadora e ativista Winnie Bueno.


Ao longo da apresentação, o rapper cantou músicas do Quarta Parede, como “God Bless”, “O Preço da Guerra”, “Pequenas Coisas” e “Alvo”, mas também dos volumes 1 e 2, como “Foco nos planos” e “Sonhos Imperiais”. Como nos disse em entrevista, a trilogia fala essencialmente sobre amor, desde a perspectiva de um homem negro nascido no extremo sul do Brasil.

A música emerge enquanto espaço de criação não apenas de sonoridades, mas sim de novas possibilidades e formas de estar no mundo. Assim, Zudizilla contagiou a todas as pessoas que presenciaram sua energia na última sexta-feira à noite. Abaixo, confira a entrevista que Zudi deu à NOIZE, logo antes do show:


Tu começou a trilogia aqui em Porto Alegre, no Agulha. E agora tá voltando, três anos depois, com o terceiro volume do Zulu. No meio disso teve pandemia, tua paternidade, diversas coisas rolaram nesse meio tempo. Comenta um pouco o  que te traz de volta ao mesmo lugar, para fechar esse ciclo onde ele começou.

Apesar de ter muito discurso, muito a narrativa de luta, de enfrentamento, essa trilogia fala basicamente sobre amor. É uma ode à vida, um manifesto sobre a humanidade. E quando eu falo disso, dessa área da minha vida, é relativamente impossível eu não lembrar das minhas passagens por Porto Alegre. Porto Alegre é extremamente importante na minha construção como indivíduo e, logo depois, na minha construção como artista. Eu sou do interior do Rio Grande do Sul e, sendo de lá, o lugar mais incrível que a gente poderia visitar era Porto Alegre. As pessoas mais da hora, mais cabeça aberta, com uma visão mais ampla de concepção de vida estavam aqui, em Porto Alegre, por estar mais próxima. Então, a gente aprendeu muita coisa com a galera e depois a gente misturou no nosso liquidificador, nossa própria dinâmica estética. Era como se fosse um posto avançado para o meu reino, o meu quartel general. Eu tenho um posto avançado em Porto Alegre e sempre fiz questão de ter relações boas com a cidade. É um lugar extremamente importante para quem é artista do Rio Grande do Sul.

Tomar solidez e uma sobriedade de tranco aqui em Porto Alegre. Quando a gente lançou o primeiro volume, foi um passo muito grande em direção à carreira artística que a gente estava almejando e planejando e que tá em construção, em andamento. Passar por Porto Alegre era algo tipo: “Se a gente conseguir o carimbo daqui, dificilmente outros lugares não vão corroborar essa nossa identidade, nossa proposta”. Três anos depois, passando por coisas que amadurecem, seja na dor, seja no trabalho, seja no afeto, eu maturei muito da minha personalidade, da minha ideia. Então, dar início ao novo ciclo no lugar onde eu comecei esse ciclo antigo é o que traz à tona a saga do herói, que sempre volta para casa no final da história, entendeu? Ele sempre volta pro início, onde ele recupera a força e parte para um filme dois. Ele sempre retorna, tá ligado? E aí eu tinha que voltar para Porto Alegre para trazer o final desse projeto. Eu sempre trouxe. Passei por aqui no vol. 1 e no vol.2. O segundo eu fiz questão de lançar em Pelotas, que aí eu tinha uma questão com teatro de lá, que é um lugar privado, onde as pessoas pretas não entravam. Então para mim era extremamente importante esse segundo capítulo lá, mas finalizar ele aqui, cara, é dar de volta a energia que a galera deu pra eu começar, tá ligado? Eu estou trazendo de volta a energia que a galera colocou e depositou no Vol. 1, porque foi muita energia boa. Foi um bagulho que reverbera em mim até agora. É um disco que todo mundo escuta ele e tem ele no coração com carinho e isso pra mim é muito gratificante, tá ligado? E aí eu vim para cá devolver, mano: “Ó, terminei mesmo. Fiz mesmo. Comecei aqui e não parei no meio do caminho”. Acho que é mais ou menos sobre isso. 


Tu disse que o disco fala muito sobre amor e eu sinto que tu traz o tema da autoestima e da busca pela excelência em um lugar central. Poderia falar um pouquinho mais sobre essas questões?

Pra mim, falar sobre autoestima está no lugar de falar sobre amor, falar sobre afeto. São coisas que só existem num lugar que eu invento. Porque ser desse lugar de onde nós somos me tirou todas as possibilidades de eu enxergar o meu reflexo no espelho e gostar daquilo que eu tava vendo, entende? Então, eu acabo criando, recriando minhas possibilidades, minha história, minha própria narrativa, para que ela esteja além da tônica da dor, da temática da dor, do sofrimento, que já é um dado reconhecido por pessoas que minimamente estudam a condição negra diaspórica no mundo. Talvez, continuar batendo nessa tecla tenha dois efeitos e nenhum dos dois é positivo. O primeiro é me tornar redundante em temática e discurso, igual aos outros. E o segundo é entregar de bandeja dores e sofrimento para quem já gosta de me ver sofrer. Então, eu faço o contrário e acabo pegando o amor, que não nos é dado, não nos é permitido. Mas transformar meu amor e minha autoestima é aquilo que o meu personagem, que o meu caráter artístico, pode ter de mais potente, quando ele anda na minha frente. Quando tu cria um caráter artístico (e esse disco fala muito sobre isso), acaba criando um personagem que anda na tua frente. Ele recebe as flechadas, ele recebe as pedradas, ele recebe tudo. Mas tu sente as mesmas dores e até mais do que esse personagem. Então, eu crio essa camada de autoestima, eu crio esse lugar imaginativo de amor, para que ele também me proteja e se perpetue, tá ligado? Já que uma mentira contada várias vezes vai se tornar uma realidade e o amor para nós foi proibido, foi retirado, então vou mentir que a gente ama, para quem em algum momento a gente se ame mesmo. É mais ou menos sobre essa sobre essa ótica, sobre esse prisma, esse tipo de narrativa, que eu me debruço sobre. 


Massa. E tem várias participações no disco, né? Tem a Luedji, com quem você é casado, tem o Don L, tem a Tuyo. E tem também a participação do Paulo Galo, recitando um texto. Como rolaram essas escolhas?

Cara, no Vol. 2, eu escolhi a dedo as participações. Nesse volume, eu sabia que tinha pessoas que eu queria trabalhar, mas porque eu gosto delas. Não era muito sobre o que a música ia se tornar, mas sobre o quão próximo eu queria estar dessas pessoas. O Galo foi assim, a Tuyo foi assim. O Don L, a gente teve uma vivência durante muito tempo. A gente sempre imaginou juntar as nossas poéticas, mas eu realmente achava que eu precisava melhorar e isso é uma condição também muito própria minha, de uma pessoa preta, que tem que ser 10 vezes melhor para atingir o mesmo lugar, essa coisa que adoece a gente. Eu achava que não tinha caneta suficiente para estar do lado do Don L. E, na verdade, eu sempre tive. Eu só não tinha coragem para isso. E aí eu pensei: “Agora é o momento de eu soltar o dedo no botão e fazer um discão de rap mesmo”. Aí trouxe o Don L, que é meu amigo, trouxe a Melly, que é uma pessoa que eu amo demais e que eu apostava desde o início (e esse ano de 2023 para ela foi um ano bem premiado, a galera acabou reconhecendo a Melly como uma grande revelação, uma grande cantora). A galera da Tuyo, eu já tinha em mente de fazer um som, desde uma vez que a gente teve umas vivências muito iradas juntos. E o Galo de Luta é um cara que tava no estúdio junto com o Luke, que produziu esse disco junto comigo. Ele me disse que tava gravando com o Galo e eu falei: “Mano, pega qualquer música, qualquer barra, qualquer coisa que ele quiser falar, tu pega, que eu vou dar um jeito de usar”. E aí ele gravou o interlúdio “Tempo”, que era uma música que eu ia gravar e tirei fora pra ficar com o Galo.  

Cara, é muito sobre esse lugar de sorte mesmo. Eu aprendi a ler o universo também, tá ligado? Eu aprendi a ler, a antecipar certas coisas que o universo vai me entregar de presente. Aprendi a antecipar e estar preparado para isso porque a dádiva da vida e da existência, ela é constante, mas nem sempre a gente está preparado ou entende quando ela chega. Eu sou uma pessoa muito perspicaz para isso, para entender quando esses momentos estão chegando. A Luedji tá na minha vida desde 2017. Na verdade, eu escutava ela antes da gente se encontrar. E eu não tinha posto ela em nenhum dos dois volumes ainda. Poderia ter feito, entendeu? A gente gravou a música que eu fiz para ela  numa viagem juntos pra Ilhéus e não tinha a parte dela. A parte dela entrou por último no disco. Foi um diálogo que tivemos, numa conversa, ela me disse: “Não mano, pô, eu quero estar nesse álbum”. Então, não é muito planejado. Eu quero muito um dia ser esse artista que planeja o seu sucesso, mas, na verdade, eu sou um artista que só é grato. Pelas possibilidades de existência das coisas. Não tem muito um planejamento específico para as coisas que eu acredito. É na energia daquilo que está acontecendo, eu entendo se isso é bom, se isso é honesto. Se isso for bom, mas não for tão honesto (porque tem coisas que são maravilhosas, mas acontecem num momento errado e o cara acaba se frustrando), o barato não dá o resultado que queremos, a gente pode estar almejando algo que naquele momento talvez não fosse necessário ou que o momento já passou. Ou talvez tu tenha que segurar e deixar para depois. E aí eu tenho essa sorte mesmo, desses acontecimentos, entendeu? 


Como tu disse, o Vol.3 é um disco de rap mesmo. E o rap como o gênero sempre se banhou em outros gêneros da diáspora, que tu também citou. Tu traz muito disso no disco, certo? O jazz, o R&B, o soul. Queria que tu comentasse um pouquinho a respeito de como acontece esse processamento de influências.

Eu não sou uma pessoa que diariamente vai dar play numa música pra conhecer. Vou te dizer que raramente eu tô escutando outra coisa que não seja jazz. Mas eu sou rodeado de pessoas que escutam música sempre, então acabo recebendo muita informação. Isso eu acho que também é algo muito positivo dentro da minha existência, porque estar com os ouvidos abertos para as coisas que estão acontecendo do lado de fora me faz participar muito mais da vida dos outros do que ficar cerceado naquilo que eu possivelmente ficaria. Então, tipo, eu não escuto muito bagulho, cara. Eu não escuto mesmo. Assim, tipo eu paro no jazz. Escuto música mesmo quando eu tenho que estudar, preciso estudar tal coisa, tal ritmo, tal parada. E aí rola esse link, essa fusão de ritmos. É mais honesto com a minha personalidade do que se eu fizesse uma coisa só. Porque eu sou plural, eu realmente vivo de uma forma muito múltipla, em duas ou três frequências ao mesmo tempo, pensando, criando, desenhando, costurando, cortando. Eu crio muita coisa ao mesmo tempo. E aí seria meio que  podar parte do meu potencial criativo e me limitar aquilo que o rap me propõem, o que o mercado, que algumas pessoas enxergam. Então, o reflexo do meu espelho é essa bagunça positiva, essa salada de frutas, assim, essa multiplicidade. Porque eu sou assim, né?


Cara, legal demais. E falando do rap, na última década, principalmente, a gente viu uma ascensão muito grande do rap e da cultura hip hop, entrando em um mainstream e deixando de ser marginalizado (ou ao menos tão marginalizado). Queria que tu comentasse um pouco a respeito disso, de como tu enxerga esse movimento.

Essa mudança, esse processo que aconteceu, cara, foi a luta de muita gente. Durante muito tempo a galera que viveu e que ajudou a consolidar a cultura hip hop e especificamente a expressão do rap, lutou para que ele conseguisse pelo menos sustentar aquele que tá carregando essa cultura nas costas. No meu caso, o de MC. Mas é o lance de ter cuidado com aquilo que tu almeja. Porque o mainstream entregou muita coisa para a gente, mas muitas pessoas não sabem o que fazer com isso, tá ligado? Porque o rap que chega ao mainstream, ele tá relativamente distante do rap que se propôs a estar no mainstream e construiu essa história lá atrás. Então, a gente não sabe se é o mainstream que está com o rap ou se é o rap que está com o mainstream. E eu acho que esse é um questionamento que quem tá trampando não tem que ter, saca? Eu não paro pra pensar nisso, realmente. Eu faço aquilo que me ocorre e é agradável. E agradeço de coração, de coração mesmo, por ter pessoas trabalhando no mainstream aguentando a barra que é ser mainstream, para que eu possa simplesmente ser eu mesmo. E alvez um dia eu seja o mainstream,  só que é isso, né? Eu tenho característica. E aí eu não sei se eu consigo mudar para algo que o mercado precise que eu seja. Mas muita coisa de lá, eu tô pegando como referência , então eu acho que é saudável por um lado. Mas tu tem que estar saudável para entender que esse lugar, porque ele pode se tornar extremamente nocivo no âmbito geral.


E pra fechar: o que vem por aí? Quais teus projetos para o futuro?

Cara, eu vou dar uma descansada de disco. Porque eu lancei, durante um período muito curto, muitos álbuns. Nunca fiz isso na vida. Mas quero trabalhar ainda com shows. Ontem mesmo aqui no Agulha a gente fez um show de quase duas horas e tinha gente pedindo muita música ainda. A gente fez um show extremamente comprido e faltou música. Mano, tem música para caramba, tá ligado? Então, eu quero trabalhar mais esses shows, as possibilidades dos shows. Eu não quero ter um show que eu faço até o final do ano. Para cada lugar, para cada momento, para cada ocasião, eu vou modificando o show, porque agora eu tenho um arsenal muito grande de músicas, que consegue nos sustentar durante um bom tempo. Vou produzir coisas de outros artistas, vou dirigir coisas de outros artistas que vocês vão ver no futuro. Vou lançar alguns singles em parceria com outras pessoas e vou trabalhar alguns audiovisuais. E alguns manifestos desse trabalho, ainda enquanto opera preta, porque trazer o contexto dos três discos ainda é necessário. Muita gente já sacou as conexões, mas tem gente que ainda não sacou e eu acho que é uma oportunidade muito grande para eu desdobrar outras expressões artísticas, seja o audiovisual, a escrita, a pintura. Não sei qual vai ser a forma que eu trazer isso, mas eu quero revelar a cola dos três álbuns. Mas é isso, eu vou me espalhar em outras áreas de atuação que também são importantes pra mim. Estou desenhando para algumas marcas, desenho para alguns artistas. E vou trabalhar com produção também, dirigir disco de artistas. Então vocês vão ver meu nome em outros lugares. Claro que também na música, que é meu cerne, meu tronco, mas eu vou viver, cara. Vou viver a possibilidade que a vida tá me dando de também deixar aquilo que eu tenho de melhor a serviço da arte de outras pessoas. 

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19/12/2023

Erick Bonder

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