“Nós somos a pré-história dessa história”, disse Caetano Veloso ao lado de Gal Costa na entrega do prêmio de melhor videoclipe no VMB de 1997. Uma cena que ainda pode ser encontrada no YouTube, mas com baixíssima qualidade de vídeo e áudio. É o caso de milhares de outros momentos marcantes da história da antiga MTV Brasil, arquivados aleatoriamente pela Internet em qualidades muitas vezes duvidosas, e geralmente digitalizados a partir de gravações caseiras. Isso quando o registro existe e está ao nosso alcance.
Em outubro de 2020, completam-se 30 anos da entrada da MTV no Brasil, a terceira versão da emissora no mundo e a primeira a ser disponibilizada em sinal aberto. Pertencente ao Grupo Abril, a MTV se manteve no ar durante 23 anos por aqui, encerrando suas atividades em 2013, quando foi substituída por uma nova MTV, operada pela empresa norte-americana Viacom como uma TV paga, e com uma programação já não mais voltada à música ao comportamento do jovem contemporâneo.
No Brasil, ela foi a emissora de TV que mandou a gente desligar a TV e ler um livro. O canal que colocou o jovem como protagonista e ser pensante em um canal aberto e que abriu espaço para discussões sinceras sobre música, sexo, estilo, AIDS, humor e política. Sem papas na língua e com sotaque e visual jovem.
A fase entre 1990 e 2013, conhecida como Antiga MTV, é hoje uma lembrança nostálgica de VJs, programas, clipes e comerciais que fizeram história na TV brasileira e desempenharam papel fundamental no comportamento de algumas gerações de jovens.
Raramente alguém com mais de 30 anos não lembra dos VMBs, onde o Caetano xingou geral ao vivo por uma falha no microfone ao lado do David Byrne, dos clipes e mais clipes, do Disk MTV, do Rockgol, da série Acústico MTV, do João Gordo, do Hermes & Renato, da Penélope, do Cazé, do Gastão, do Leo Madeira, da Person, do Thunderbird, da Parlatore, do Massari, do Kid Vinil… e a lista ainda vai longe.
Inclusive, pra refrescar a memória e saber com mais detalhes sobre essa história toda, recomendamos o documentário “A Imagem da Música – Os anos de influência da MTV Brasil”, dirigido por Lucas Tomaz Neves e assinado pela Crua Produções, disponível no YouTube desde 2017. O filme traz entrevistas com ex-vjs, músicos e ainda imagens de arquivo geniais para ilustrar, assista aqui:
Hoje em dia, esse legado é celebrado e mantido vivo nas redes sociais especialmente por quatro páginas no Instagram que resolveram se unir forças por uma causa que começa a ganhar notoriedade: a recuperação, digitalização e disponibilização do catálogo da Antiga MTV, uma ampla memória da cultura brasileira dos anos 90 e 2000 que segue guardada nas dependências do Grupo Abril e fora do alcance do público. Segundo o Estadão, cerca de 40 mil fitas seguem guardadas no antigo prédio da MTV Brasil, na Avenida Professor Alfonso Bovero, 52.
Para o apelo ganhar voz, os administradores das páginas @amtvquedeucerto, @mtvbrasilmemorias, @mtvtop20 e @mtvbrasilabril criaram um abaixo-assinado – que você acessa clicando aqui – pedindo a liberação e digitalização desses arquivos para acesso do público. Uma ação que pode ser entendida como muito além de uma possibilidade das pessoas acessarem imagens que trazem à tona memórias afetivas, mas de acessarem e reproduzirem documentos históricos da música e da cultura brasileira de uma época. Registros que ganham ainda mais importância em um país que já perdeu tanto de sua memória cultural, vide misteriosos incêndios em arquivos de emissoras de TV nos anos 60.
Pra falar um pouco mais da iniciativa de recuperação desse material, conversamos com Leandro, Felipe e Guilherme, os responsáveis por três das quatro páginas que criaram o abaixo-assinado que pretende comover os detentores dos arquivos da MTV Brasil, confira:
Falem um pouco sobre quem são as pessoas que administram as páginas @mtvbrasilmemorias, @mtvtop20 e @mtvbrasilabril.
Leandro: Me chamo Leandro, tenho 32 anos, acompanho a MTV desde 1998 e sou o administrador da página @mtvtop20. Cresci assistindo a MTV no canal 29 UHF em Curitiba, assistia todos os programas, até os que eu não gostava assistia também (risos). A ideia da página surgiu no ano passado com o retorno do programa na atual MTV, que hoje não se chama Top 20 Brasil e sim MTV Top 20. Assim como a fanpage dedicada ao De Férias Com o Ex Brasil, que usa o @ com o nome do programa e não tem vínculo com a MTV, aproveitei a deixa e criei o @mtvtop20.
Felipe: Me chamo Felipe, sou do Ceará, tenho 24 anos e sou adm da página @mtvbrasilmemorias. Assim como meus parceiros de instagram, sou um grande fã da MTV que resolveu criar um veículo de memórias da emissora.
Guilherme: Me chamo Guilherme, tenho 33 anos e sou de Ribeirão Preto – SP. Eu administro o perfil @mtvbrasilabril no Instagram. Acompanho a MTV desde 99, passava horas na frente da TV sempre na MTV. Adorava os programas, os VJs, a criatividade e inovação que a emissora sempre levou ao seu público. Participo da administração da página MTV Brasil Abril no Facebook desde 2013 e resolvi criar em 2017 um perfil no Instagram também para manter viva a memória da emissora.
Como vocês avaliam a importância histórica e cultural de se disponibilizar o acervo da MTV Brasil?
O acervo da MTV Brasil concentra registros históricos da história da música e da televisão. Para a música, muitas bandas que hoje são estouradas nas rádios pelo Brasil, como Jota Quest, Skank, Pitty, Raimundos, têm suas primeiras entrevistas registradas nos arquivos da MTV, quando as bandas tinham poucos anos ou até mesmo poucos meses de vida. Já para a televisão muitos nomes conhecidos e grandes profissionais (diretores, produtores, redatores e até estagiários) que estão em grandes emissoras de TV, como Astrid (Fontenelle) e Didi Wagner que estão no GNT, Marcos Mion na Record, Zeca Camargo que ficou 24 anos na Globo, André Vasco que foi estagiário e VJ na MTV e passou por emissoras como Band e SBT. Além das pessoas, muitas das coisas que vemos por aí hoje no audiovisual tiveram influência da MTV na questão de edição, trilhas sonoras, design gráfico, etc. Além de contribuir com a história da música nacional e da televisão, a MTV teve uma importância histórica na formação do público que cresceu com ela. Ela orientava sobre os riscos das DSTs e principalmente da AIDS que era muito forte nos anos 90, questões de como lidar com a violência, como votar direito, como lidar com os desafios da vida adulta, relacionamentos, emprego, meio ambiente… Ela conversava com o jovem de igual para igual.
Vocês já fizeram contato com o Grupo Abril (detentor do acervo da MTV Brasil) pra falar sobre o assunto? Eles já se posicionaram a respeito?
Não, as únicas informações que temos são de matérias publicadas em jornais como o Estadão, por exemplo, que fez uma reportagem sobre o acervo no ano passado. Até onde sabíamos é que o material estava sendo cuidado e que seria iniciado um processo de digitalização.
Como vocês acham que o material deve ser disponibilizado ao público? Youtube? Alguma espécie de museu virtual ou até mesmo físico?
Deveria ser disponibilizado via alguma plataforma de streaming para assistirmos os programas, aos acústicos, aos VMBs e aos clipes que nem no YouTube você encontra.
Vocês estariam dispostos a realizar esse trabalho de digitalização e organização do acervo?
Leandro: Particularmente sim, estaria disposto a realizar esse trabalho, lidar com algo que foi tão importante na minha formação intelectual. Porém, me faltam equipamentos e recursos para tal trabalho, mas se as empresas envolvidas com o acervo (Abril e Viacom) me convidarem, estaria disposto a ajudar de alguma forma.
Felipe: Acredito que pela distância não seria possível realizar esse trabalho, mas o que eu não faria pela MTV (risos)? Sei que estou disposto a fazer o possível pelo acervo.
Guilherme: Não possuo equipamentos e nem recursos para a digitalização, mas como fã da MTV gostaria de ajudar de alguma forma.