Há músicas que encantam pela delicadeza, outras por seu poder de entreter, já o som da Nã é daqueles que pegam você pelas vísceras. Lançamos com exclusividade o vídeo da faixa inédita “Bíceps, Fígado, Pulmão”, composição do guitarrista Michel de Moura e Renato Ribeiro que deve sair no próximo disco da banda (assista abaixo).
Pouco após ter lançado seu disco de estreia, Farpa (2016), a banda paulista fez sua primeira viagem para fora do estado natal algumas semanas atrás, quando veio ao Rio Grande do Sul a convite do produtor Bruno Barros. “Ficamos uma semana e realizamos três shows, um em Porto Alegre com a Trabalhos Espaciais Manuais (TEM), outro em Caxias do Sul e o último em Novo Hamburgo com o Pedro Dom”, lembra Michel, responsável pela maior parte das composições do grupo. Durante essa viagem, uma trama de relações afetivas levou a Nã a conhecer um pouco da Serra Gaúcha, onde acabou gravando o vídeo de “Bíceps, Fígado, Pulmão”:
– O Bruno mora com o Tomás Piccinini [saxofonista da TEM], músico fera que nos convidou para passar dois dias em um casarão na cidade de Santa Tereza que era um antigo hospital, propriedade de sua família. Como o irmão do Tomás, Martino Piccinini, trabalha com audiovisual, surgiu a oportunidade de fazer um filme e decidimos gravar uma música nova, que é esse samba visceral “Bíceps, Fígado, Pulmão”. Convidamos o próprio Tomás e também o Ettore Sanfelice, baixista da TEM, para gravarem com a gente – explica Michel.
O resultado do vídeo, que foi filmado pelo Martino e teve o áudio captado por Daniel Roitman (da banda Fratura Exposta), é um esforço de experimentação, tanto por parte dos músicos quanto pela equipe de filmagem. “Arranjamos [a música] na hora e ficou lindo”, diz Michel, “e o Martino fez a filmagem em um plano-sequência bem Cinema Novo, achei sensível e preciso seu enfoque, tem a cena final da igreja que parece a capa do primeiro disco do Black Sabbath, adorei”. Assista abaixo seguido de uma entrevista com o vocalista Bjanka Vyunas e Michel de Moura.
O disco foi gravado entre agosto e novembro de 2015, correto? Quanto tempo levou desde o surgimento do grupo até a hora de gravar o álbum e como foi esse processo?
Bjanka: Isso mesmo. A gente começou os ensaios pro disco mais ou menos em maio ou abril de 2015, se não me engano. Mas o Michel de Moura e o Thiago Pereira já tinham se encontrado antes e estavam criando umas bases pras canções compostas pelo Michel, que meio que organizou o time. O grupo foi se formando, na verdade. Michel, Thiago e eu tocávamos juntxs na Projeto da Mata e, no final de 2014, Michel comentou que estava compondo para um novo projeto e já tinha me convidado pra cantar. Babalu veio pra bateria; a Fernanda Broggi a gente conheceu da USP, fazia Ciências Sociais com a gente, assim como o Rafael Noleto, que também gravou o disco cantando. E o Renato Ribeiro violonista/guitarrista veio ajudar na liga, indicado pelo Babalu, o Julio Dreads não gravou com a gente, mas hoje já é parte, nas percussas, o conhecemos desde a Projeto da Mata. O processo começou no antigo estúdio do Babalu, mas logo migrou pro estúdio que Renato Mantinha no Jaçanã, que foi o berçário e onde gravamos a maior parte do disco. Michel trouxe as canções meio cruas e a gente começou a arranjar de forma coletiva, criar interpretações e ter ideias. Cada um foi trazendo seu acúmulo e fomos montando a história toda.
Não é simples montar um power trio, que dirá um grupo grande como a Nã. O que une todos vocês? O que é a liga que mantém o grupo junto?
Bjanka: De fato, não é tarefa simples, não. Acho que a gente se apaixonou pela ideia. Ficamos muito tempo juntxs trabalhando nas canções, fomos meio que alimentando a filha, como gosto de chamar o disco, a filha Farpa, até que foi parida. O que mantém a gente, imagino, é a gana de tocar as canções mesmo, cada um tem um pouco de si nos arranjos e gostamos muito de como soa o disco. Não que não tenhamos intrigas ou dificuldades, sempre rolam em todo grupo, mas fazer esse tipo de som, nesse esquema em que todxs tem liberdade para ajudar na produção, com as suas ideias, é algo bem legal que temos e, talvez, seja o que mantenha o grupo junto.
As sonoridades do afrobeat, do punk, do jazz, do indie rock e do samba parecem se encontrar de um jeito caótico (mas harmônico) no Farpa. Como vocês (des)construíram o som da banda? Como as composições se dividem entre os membros do grupo?
Bjanka: Então, cada um que compõe a banda tem uma experiência diferente com música ou mesmo com canção. Acho que isso foi fundante dessa onda mesclada de influências que povoa o disco. Como a gente fez os arranjos nos ensaios, coletivamente, todo mundo trouxe um pouco das suas referências para o disco. Michel é o compositor que chamou o disco. Mas a canção “Nada ficou”, por exemplo, tem a letra composta pelo Thiago Pereira. A gente vai compondo os arranjos de maneira coletiva.
O disco destaca a força da religiosidade afro-brasileira enquanto ferramenta de luta pela igualdade de direitos dos negros (“Xangô), também fala de vários povos que foram marginalizados por processos histórico-econômicos (“Unhas e Dentes”), bem como sobre a violência do machismo institucionalizado (“Cara de Tanga”). Na visão de vocês, como a música pode ajudar em pautas sociais?
Bjanka: Então esses temas são muito caros pra gente, na nossa vida, acredito. Conheci o Michel nos corredores da Ciências Sociais e a gente fazia juntos uma disciplina chamada Do Afro ao Brasileiro e era justamente sobre as religiões de matriz africana, numa análise da antropologia. Então, era um interesse que a gente tinha em comum naquele tempo. A gente está sempre discutindo esses temas, vamos aos atos, fazemos apoios individuais à causas sociais. Eu sou militante feminista radical e acho extremamente importante falar de temas que promovam reflexão, inclusive a minha própria. Acho que a música não pode ajudar em nada em pautas sociais, sinceramente. Ainda mais tendo sido apropriada pelo mercado, que vende coisas e pessoas. Quem tem que transformar as coisas são as pessoas, os movimentos sociais. Na verdade, acho que o que cabe a nós, enquanto artistas, é falar do que está na nossa cabeça, do que nos povoa. No nosso caso, discutir esses temas é super importante, falamos disso sempre. Não falar disso nas composições seria um descaso com o que a gente pensa. Se as pessoas forem ouvir e se despertarem para pensar política, entenderem como crítica social, vai ser massa. Eu acredito que a arte tem que refletir seu lugar, seu tempo, mas as vezes ela é só uma expressão do que está na cabeça de um compositor, de um grupo de pessoas.
Nesse sentido, vocês afirmam que a modernidade não cumpriu o seu papel. Qual seria esse papel e o que poderia ser feito nesse sentido?
Bjanka: Essa é uma discussão bem antiga, na verdade, que povoa a boca da galera acadêmica, intelectual. Na verdade a gente coloca em xeque a ideia de modernidade que é defendida, desenvolvimentista. A canção critica tudo que ainda não se modificou, para alcançar uma sociedade Moderna. No Brasil, há os pensadores que dizem não existir modernidade ou as ideias modernas ainda estarem muito pouco claras, em relação a uma ideia de não desenvolvimento atribuída aos países ex-colônias como o nosso.
Nessa viagem ao RS, vocês ministraram uma vivência rítmica corporal para educandos assistidos pela Aldeia da Fraternidade. Como foi essa experiência? Fazer oficinas e/ou atividades como essas é uma das prioridades do NÃ ou foi um acaso feliz?
Michel: Novamente, foi Bruno Barros quem nos colocou nessa. Foi uma das melhores experiências da viagem. Passamos uma tarde com mais de trinta guris da periferia de Porto Alegre, trocamos ideia, tocamos, jogamos e, principalmente, ouvimos. Não sei se podemos falar em prioridade, quer dizer, nossa prioridade é fazer o maior número de shows possível e quando pinta um lance legal assim é gratificante.
Considerando que a trajetória da banda está apenas começando, quais são os próximos passos daqui pra frente? Um segundo disco já está em andamento?
Michel: Esse ano ainda lançaremos mais um vídeo – um clipe da música “Nada Ficou” – e já estamos trabalhando no segundo disco, que deve sair logo após o carnaval.