“Ruge como um animal selvagem”, “idealmente feito para tocar em um estádio” e “timbre cristalino”. Essas são algumas das frases usadas para descrever a sonoridade potente do amplificador valvulado Tremendão, lançado pela Giannini em 1966. Sua popularidade pode ser explicada por alguns motivos. Um dos principais fatores está na época em que foi criado.
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O Brasil vivia a Ditadura Militar e havia uma série de medidas econômicas que dificultava a compra de importados, contexto que só seria revertido na Era Collor. Se embarcar em um avião com guitarras e amplificadores é difícil hoje em dia, imagina no passado? Por um lado, isso complicava a vida de quem queria adquirir equipamentos de áudio, mas por outro resultou em uma oportunidade de crescimento para a empresa brasileira criada em 1900 pelo imigrante italiano Tranquillo Giannini – até porque foi também a partir dos anos 1960 que a guitarra elétrica passou a ser popularizada na música nacional.
Mas a segunda e essencial razão do Tremendão ter se tornado uma lenda tem a ver com os seus atributos técnicos: seu circuito valvulado garante uma potência sonora descomunal e, ao mesmo tempo, a opção de trabalhar com um timbre limpo e “cristalino”. Ele possuía dois canais, o que permitia ligar duas guitarras ou uma guitarra e um baixo ao mesmo tempo, e também contava com controles de volume, graves e agudos independentes, sendo que um dos canais possuía opção de usar os efeitos de reverb e de tremolo. Não havia nenhum outro amplificador assim no mercado nacional.
O encontro entre o público sedento por música alta e um produto disruptivo foi a chave para a sua popularidade. Definitivamente, ele não foi feito para ser tímido e chega a ser difícil de usar em ensaio. Se a sua banda conseguisse chegar no volume 9, tenha certeza de que o som seria ensurdecedor. “A gente ensaiava em um quarto pequeno, de molecada. No volume 1 e 2 já tomava proporções descabíveis”, lembra o músico Danilo Sevali, da banda Hierofante Púrpura. A justificativa para tamanha eficácia tem a ver com o ainda em desenvolvimento sistema de som PA. O que vibrava do palco precisava ser forte e – até então – não era.
Estimado pelo fãs, há quem julgue como o melhor no Brasil, inclusive, comparável aos modelos da inglesas Vox e Marshall e da americana Fender. Suas qualidades sonoras atraíram nomes como o guitarrista Edgard Scandurra: “Ele esteve presente em toda a minha vida. Quando falavam sobre amplificadores, eu respondia que o melhor era o Tremendão. Tinha uma mística em torno da marca. Colocava pau a pau [com os gringos]”.
A primeira lembrança do músico com o amplificador valvulado vem na infância, pois costumava acompanhar os ensaios do irmão mais velho. Na época, aos oito, lembra que tinha a altura do equipamento. Já a primeira vez em que ligou sua guitarra em um foi nos anos 1980, mas lembra que deixou de ver o modelo nas casas de show na década seguinte. Ao longo de sua vida, a paixão pelo Tremendão permaneceu intacta, como conta em entrevista à NOIZE: “Ele tem um timbre fiel a sua madeira. Um reverb de mola que cria vida própria, tem uma vibração sensível. O tremolo vintage traz a lembrança dos os anos 60 – Beatles, Jimi Hendrix, rock progressivo”.
A admiração da infância se tornou real nos anos 2000. Após os anos de namoro, Scandurra, finalmente, conseguiu ter um para chamar de seu – um dos 19 confeccionados especialmente para a reedição de 2006 – presente da Giannini. A ocasião também marcou o seu reencontro com Carlos Alberto Sossego (1938-2020), o engenheiro de som e criador do amplificador. Eles se encontravam com certa frequência no início dos anos 1990, mas perderam o contato.
“Sabia do carinho que ele sentia por mim. A forma como nos conhecemos é divertida. Estava ensaiando, quando ele escutou a minha voz de dentro do estúdio, pensou que era o Roberto Carlos. Ao entrar na sala, me viu com a [guitarra] Supersonic, então perguntou se a Giannini sabia disso”, lembra Scandurra. Sossego o levou até a fábrica da marca para conhecer a família dos donos, ele desejava entender a razão por que eles não estavam fazendo nada pelo músico da banda Ira!. “Era uma pessoa muito sincera – e talentosa”, garante o artista sobre o amigo.
Rapsódia brasileira
Segundo contou na entrevista ao canal Custom Shop, uma das poucas que disponíveis na internet, Sossego começou a trabalhar com eletrônica aos 15 anos, montando rádios. Em 1957, assumiu um programa de música com guitarra na rádio, ao mesmo tempo em que continuava investigando os eletrônicos. Atuando como DJ, passou a receber cartas elogiando a escolha das faixas de bandas como The Shadows e The String-A-Longs. Chegou até mesmo a colocar grupos para tocar ao vivo durante seu horário, das onze à meia noite. “Amigão”, é como Erasmo Carlos define Sossego em entrevista à NOIZE. “Nos conhecemos na rádio. Era um pioneiro do rock’n’roll. A gente conversava sobre música e trocava discos – ele tinha muitas raridades”, lembra Erasmo sobre o início da amizade com ele.
Paralelamente ao sucesso com os ouvintes, começou sua trajetória como engenheiro de som. Um dia, um amigo ligou pedindo ajuda para ele com um amplificador que havia quebrado, ele abriu o equipamento e tentou copiar o esquema de circuitos, mas não conseguiu. Decidiu então pedir para um outro amigo, que era professor de inglês, escrever uma carta para a Fender pedindo informações sobre seus aparelhos. Depois de um mês, recebeu um envelope recheado de esqueletos de guitarras e amplificadores da marca americana.
Tendo em mãos esse material precioso, Sossego começou a desenvolver suas invenções. Não demorou muito para seu nome chegar na Giannini, que o chamou para conversar sobre uma possível linha de instrumentos. O negócio deu certo e a sua primeira criação lançada pela marca foi a guitarra Supersonic, que possui o escudo do modelo Jazzmaster e os captadores da Stratocaster (dois clássicos da Fender). Uma raridade hoje em dia. O modelo foi fabricado por muitos anos e conquistou fãs desde os anos 1960, como a banda Os Incríveis, até os dias atuais, como o próprio Scandurra. Para se ter uma ideia, um exemplar dos anos 1960 em boas condições chega a ser vendido no Mercado Livre por até R$3.400, já as do anos 1980 ficam na casa dos R$1.000.
Desde os anos 1950, a Giannini já fabricava violões elétricos, captadores e amplificadores, porém seu amplificador Turuna, de 1954, por exemplo, possuía apenas 12 watts de potência. O modelos Amplificador Nº 1 e Nº2, do começo dos anos 1960, possuíam 6 e 10 watts respectivamente. E Sossego queria muito mais. Reza a lenda que ele viajou aos Estados Unidos e fez espionagem industrial nas principais fábricas americanas – Gretsch, Gibson e Fender – antes de criar suas versões brasileiras. Então, fez a Giannini comprar máquinas de linha de produção e colocou as mãos na massa.
O Tremendão, na verdade, é uma versão nacional do modelo Twin Reverb, da Fender. Porém, havia uma particularidade tupiniquim nele, pois, nos anos 60, não era possível encontrar exatamente os mesmos componentes do original. “Ele não é uma réplica: tem um som próprio. Ele foi concebido com um circuito já existente [da Fender], mas a tentativa de se fazer uma receita com os ingredientes que se achava por aqui o transformou em um amplificador com uma sonoridade única e particular”, explica Renato Moikano, luthier e proprietário da marca Major Tone Guitars.
Logo que chegou, na metade dos anos 1960, Sossego criou dois amplificadores: o Thunder Sound, com 30W, e o Tremendão, com 50W. Ambos possuíam circuitos internos importados da Fender. O nome, uma homenagem a Erasmo Carlos, partiu do próprio Giorgio Giannini (1933-2018) graças a sua robustez sonora. O presidente da fabricante na época decidiu apelidar o novo amplificador valvulado graças a sua potência de 50W, algo completamente inovador para o Brasil de então.
Quem conta essa história é o próprio criador da obra: “Giorgio falou: ‘Erasmo, quero usar seu nome’. Ele respondeu que daria a permissão por escrito”, conta Carlos Alberto no vídeo publicado pelo canal do Custom Shop Brasil. Sossego ainda se lembrou do dia de seu lançamento: foi na festa de aniversário de Roberto Carlos, em 1966. O evento aconteceu durante uma gravação da Jovem Guarda no Cine Universo, em São Paulo. Sossego afirma que levou dois Tremendões, um para baixo e um para a guitarra, e, assim, começou a fama desse que foi um dos seus maiores sucessos.
Erasmo Carlos explica que nunca recebeu um centavo sobre as vendas dos equipamentos batizados com seu apelido. Ele cedeu o nome gentilmente a pedido da marca, sem nunca voltar atrás, pois sempre manteve boas relações com a empresa. A marca equipava a Jovem Guarda em seu auge, afinal, estar na televisão era – e continua sendo – um ótimo negócio. Inclusive, chegou a lançar uma linha de guitarras que eram as Tremendinhas – hoje em dia, outra raridade.
Ao longo das décadas, saíram várias versões da criação de Sossego. Teve o primeiro de todos, depois veio o Tremendão II, o Super Tremendão, o Tremendão Compacto, o Tremendão Special Line (de 1971, que tinha 100W), o Tremendão III (de 1973, com 87W). “O amplificador valvulado foi produzido até meados de década de 1980, em suas várias versões. Não localizamos em nossos arquivos antigos a informação de quantos Tremendões foram fabricados durante esses 20 anos em linha, mas baseado em relatos da época, e sabendo que ainda existem muitos em funcionamento, tudo indica que foram produzidos milhares de peças”, afirma Paulo Eduardo, engenheiro e diretor de produtos da Giannini.
– O amplificador Tremendão representa uma era musical brasileira, entre as décadas de 1960, 70 e 80, pois muitas bandas e músicos utilizaram o Tremendão, e ainda hoje muitos guitarristas preservam o Tremendão como parte do seu timbre característico de guitarra. Em 1985, a Giannini estava se preparando para renovar e intensificar a fabricação de amplificadores transistorizados de baixa potência para instrumentos musicais, com um custo menor e processo de fabricação mais rápido, mas o Tremendão era um amplificador valvulado muito caro, com um processo de fabricação mais artesanal, e como a procura já não era mais a mesma, nesse período ele saiu de linha – explica o representante da marca.
Bem antes disso, Sossego já havia saído da Giannini. Ao mesmo tempo que era genial, o técnico possuía o temperamento de “ame ou odeie”. Ainda nos anos 1970, ele se desentendeu com a direção da fabricante e saiu. Decidiu lançar a própria empresa, a Palmer, que começou a produzir versões de modelos da Marshall com 120W e 200W. Viajava para a Inglaterra a cada seis meses para comprar as válvulas mais potentes do mundo.
Mas a lenda do Tremendão perdurou. Tanto que, em 2006, surgiu o projeto de reeditá-lo. O escolhido para a empreitada foi o técnico de eletrônica carioca Augusto Pedrone, hoje dono da marca de valvulados Pedrone Amplificadores. O projeto de relançamento surgiu no encontro da Giannini com Pedrone, que começou a carreira arrumando amplificadores no Rio de Janeiro. No passado, era difícil encontrar válvulas, mas, nos anos 2000, o acesso a elas ficou menos complicado, aquecendo o nicho de custom made.
Chegou um ponto em que o técnico estava com vários Tremendões parados sua na oficina com o mesmo problema: válvulas e capacitores exauridos, quase todos originais. Em uma noite de domingo, decidiu mandar um e-mail para a marca e enviou diretamente para presidência: desejava saber o motivo da ausência da Giannini no mercado de valvulados e se disponibilizou para ajudar. Na segunda de manhã, recebeu uma ligação do próprio Giorgio Giannini o convidando para uma conversa: desejavam reeditar o Tremendão. Ele topou na hora.
O lançamento da nova versão aconteceu na feira Expomusic de 2006. Para isso, o técnico carioca passou várias semanas abrigado na fábrica da empresa em Salto, interior de São Paulo. Ao todo, produziram 19 peças com conjunto de cabeçote valvulado e caixa de alto-falantes 4×12. Para conseguir recriar fielmente o original, Pedrone fez engenharia reversa, sacrificou uma unidade para entender o funcionamento de seu circuito.
A reedição tem os mesmos recursos, potência e sonoridade com pequenas alterações, que melhoraram o seu desempenho. Segundo o representante da Giannini, a versão de 2006 manteve os dois canais, porém o primeiro passou a ter um timbre mais agressivo, com predominância dos médios e maior facilidade para se obter um som com overdrive natural. Sendo que o segundo manteve-se como o original, com graves e agudos predominantes, sonoridade “clean” e com os efeitos originais de reverb e tremolo, agora acionados por footswitch único.
A procura foi baixa devido o seu preço salgado, R$8 mil reais, valor difícil de competir no mercado quando um amplificador de entrada custa em torno de mil reais. O nicho dos valvulados acaba sendo para não profissionais e para apaixonados. Para Pedrone, que também produz amplificadores valvulados em sua marca, a Pedrone Amplificadores, é possível traçar paralelos com carros antigos.”Eu compararia ao Opala. Meu pai teve um, a sensação era diferente. Mas a verdade tem que ser dita: ele gasta muito combustível, é grande, antigo, fora de moda”, explica.
Essa reedição de 2006 foi a última linha de amps produzidos no país na história da empresa. Eles passaram a apostar nos chineses, em pequenos transistorizados e em um valvulado de 20W até 2015. Desde então, decidiram optar exclusivamente pela linha de instrumentos e fabricação de cordas.
“Memória vibrante”
Conforme os amigos próximos contam, Carlos Alberto Lopes continuou trabalhando com os eletrônicos até a visão não o permitir mais. Inclusive, talvez o seu último projeto grande significou um retorno a sua “casa”. Em 2015 foi convidado para participar de uma relançamento da guitarra Supersonic, que não vingou. “Houve um estreitamento da relação, pois o Sr. Sossego participou como consultor, mas devido às condições do mercado, o projeto não teve andamento”, conta Paulo Eduardo, representante da Giannini.
Sossego faleceu no dia 28 de fevereiro de 2020, deixando um legado imenso para a música brasileira, e vários “alunos” espalhados pelo país. Como no caso do carioca Augusto Pedrone, que se mudou para a capital paulista depois do relançamento do Tremendão, estreitando os laços com a lenda. O mestre dividiu diversos ensinamentos, além de fornecedores, que tornaram possível a Pedrone Amplificadores. “Ele chancelou a minha qualidade”, garante Pedrone.
Uma entre suas clientes é a produtora e multi-instrumentista gaúcha, Desirée Marantes, que comprou um Tremendão em 2006 com seu primeiro salário. Ela achou o equipamento em um fórum online, mas esqueceram de avisá-la um detalhe: ele veio pelado e sem nenhuma válvula. Ao longo de quatro anos, encomendou peças por correio, até buscá-lo na oficina em 2010. Ficou apaixonada de cara. “Ele tem um som lindo, de chorar. A única questão é que é muito alto. Idealmente, seria bom para usar em um estádio, não em casa”, conta a artista.
A criação de Sossego atravessou gerações e continua presente na história de músicos das mais diferentes idades. “É versátil, limpo, bonito, fala bem com fuzz. A maioria das pessoas da minha época, que teve ou tem banda, já tiveram algum tipo de relação com esse amplificador”, avalia o músico Luccas Villela, que atualmente toca baixo na banda paulistana E a terra nunca me pareceu tão distante, mas começou a carreira, há mais de uma década, na cultuada Jennifer Lo-Fi.
O problema de se criar mitologias sobre qualquer coisa é a probabilidade de se decepcionar, caso a fantasia não chegue às expectativas. Ao longo das décadas, as peças originais acabaram se exaurindo e modelos frankenstein passaram a pipocar por aí. Renato Moikano, luthier e proprietário da Major Tone Guitars, que também toca na banda de metal Ursal, teve uma história triste em sua primeira experiência com o Tremendão.
Descobriu que uma loja na rua Teodoro Sampaio estava vendendo um, decidiu dar uma olhadinha para ver se o deixavam testar o equipamento. Achou decepcionante. Era fraco. A surpresa veio depois: “Descobri que não era ele, mas uma réplica recondicionado. Eles não tinham usado o trafo adequado, que é a fonte de alimentação”. A carcaça era parecida mas não era um. Depois de um tempo, conseguiu fazer um teste mais apurado em um estúdio de ensaio. Dessa segunda vez, não deixou a desejar em nada.
“Era tudo aquilo o que eu esperava e mais um pouco. Ele faz jus ao nome, é potente, monstruoso. Como ele ruge, de fato, é um animal selvagem”, compara Moikano. Antes de se tornar luthier e ocupar metade do Estúdio Aurora, em São Paulo, trabalhou como repórter musical. Descobriu a lenda de Tremendão ao entrevistar Edgar Scandurra para uma matéria: nunca tinha escutado ninguém falar com tão carinho sobre um aplificador nacional. Desde então, se tornou o seu “Santo Graal”.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 99 da revista NOIZE, lançada com o vinil de Little Electric Chicken Heart, da Ana Frango Elétrico, em 2020.
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