Jonathan Ferr recria canções do Charlie Brown Jr. em “Livre”, seu novo EP

24/09/2024

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Erick Bonder

Por: Erick Bonder

Fotos: Victor Corrêa e Julian Sena/ Divulgação

24/09/2024

O pianista, cantor, compositor e arranjador carioca Jonathan Ferr lançou, em 30 de agosto, seu novo EP, Livre, no qual relê canções do Charlie Brown Jr. a partir da sua própria linguagem. O artista transformou os clássicos “Lugar ao Sol” e “Céu Azul” em músicas de jazz contemporâneo e progressivo. As canções foram gravadas acompanhadas pela Orquestra Ouro Preto, e lançam mão de recursos tecnológicos, como o vocoder e o autotune.


Longe do cover, Jonathan propõe a tradução de uma linguagem musical para outra. A liberdade vai dos arranjos, completamente diferentes dos originais, até modificações nas letras ou seleção de trechos específicos para interpretação. A identificação do carioca com os santistas se dá no âmbito da liberdade e da noção de apropriação da própria vida.

Conversamos com Jonathan sobre Livre, Charlie Brown Jr. e sua carreira. Confira abaixo.

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Tem várias coisas do Charlie Brown Jr. que são icônicas. A banda continua influente, mesmo depois da morte do Chorão, em 2013. Qual o papel do grupo na tua formação musical?

Nunca tive a oportunidade de ir a um show deles até a morte do Chorão. A nossa ideia era lançar algo no ano passado, dez anos do seu falecimento, mas muitas coisas aconteceram. O Charlie Brown Jr. é uma banda com a qual eu me identificava pela forma irreverente e desconstruída, brinco que é o Nirvana brasileiro. Se você olhar para o rock nacional, ele tem uma certa “forma” estabelecida. Sempre gostei de estudar a história por trás das músicas, dos álbuns e do cenário musical de determinadas épocas. Quando você olha para o rock norte-americano, por exemplo, na década de 1990, tinha o Guns N’ Roses, bandas de caras bonitos, com maquiagem, roupas apertadas… De repente, vem o Nirvana, com calças rasgadas, tocando guitarras sujas, sem solos perfeitos. Foi uma novidade, porque aquilo que existia já estava saturado.

Como você enxerga os paralelos entre eles? 

O Charlie Brown Jr. trouxe um pouco disso no Brasil. Era uma banda irreverente de Santos, do skate, com um som misturando rock com a cultura hip hop. Isso me chamou a atenção. Quando eu quero criar algo novo, sempre penso em como posso inovar. Cada material que lanço, sempre busco algo que eu ainda não fiz. É como reformar uma casa: você quebra tudo e reconstrói. Então, trabalhar com o som da banda foi uma forma de experimentar. Peguei duas músicas que me tocaram muito: “Lugar ao Sol” e “Céu Azul.” Ambas falam de um lugar espiritual. Peguei apenas as partes que realmente me tocam, porque quando faço tributos, gosto de trabalhar com aquilo que ressoa comigo. Não tenho apego ao original. Eu mudei algumas coisas, e algumas pessoas perguntaram se os fãs de Charlie Brown iriam ficar chateados. Eu disse: “Mano, eu também sou fã de Charlie Brown.” Então, peguei “Lugar ao Sol,” que fala sobre liberdade, algo que tem sido um tema recorrente no meu trabalho, e adaptei. 

De que maneira o EP se conecta com o resto da sua obra?

Desde o meu último álbum, Liberdade (2023), venho explorando o tema da emancipação, de ser livre. Tem uma frase do Nietzsche que diz: “Nunca é alto o preço a se pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo.” Liberdade é quando você percebe que pertence a você, não a outra pessoa, nem a um parceiro, amigos ou familiares. E também tem outra frase que me marcou: “Quem não se movimenta, não percebe as correntes que o aprisionam.” A liberdade é paz em movimento, e é assim que vejo a paz — não como algo estático, mas como algo em constante evolução. Quando pensei em “Lugar ao Sol” foi sobre ser livre. A liberdade é uma busca constante, e essa música fala disso. A frase “o amor é assim, a paz de Deus em sua casa” me remete a ideia de que Deus está dentro de nós. Todos nós temos essa divindade interna, e estar em paz consigo mesmo é essencial para performar no mundo de acordo com suas próprias convicções. Foi por isso que decidi regravar Charlie Brown, porque acho que ele traz esse conceito de liberdade.

Você falou sobre “reformar a casa”, pegando partes das canções e fazendo um processo de tradução, de releitura para a sua linguagem musical. Dentro disso, você utilizou recursos tecnológicos, alterou a voz, diminuiu velocidades, criou novos arranjos. Como foi o processo de fazer essa “reforma”?

Foi um desafio, mas algo muito gostoso de fazer. Acho fascinante o processo de reinvenção. Gosto quando um artista faz um tributo e coloca sua própria marca. Fico até frustrado quando vejo um tributo que é exatamente igual ao original. Para mim, isso não é uma releitura, é um cover. Gosto de ver como um artista vai interpretar algo de um jeito diferente. Eu me coloco nesse lugar criativo e as pessoas que tocam comigo também são muito criativas. Eu trago as ideias e eles ajudam a desenvolver. Além disso, tenho minhas próprias pesquisas, especialmente em termos de timbre e tecnologia. Sou fascinado por tecnologia. Quem me acompanha sabe que sou meio futurólogo — gosto de pensar em como o mundo estará daqui a 50 anos, considerando geopolítica, indústria musical, cinema, inteligência artificial… Todo esse novo mundo que está se desenhando. Nesse processo, eu fico pensando em como criar uma música que ainda faça sentido em 2050, 2070, e hoje.


Quais foram as referências para a construção dos novos arranjos?

Durante esse período, eu ouvi o álbum Sunlight, do Herbie Hancock, de 1978, e fiquei impressionado como ele estava à frente do tempo. Ele já usava vocoder, algo que me inspirou muito. Incorporar o vocoder na minha música virou uma linguagem própria para mim. Nos meus shows, esse é um elemento que eu comecei a usar mais e, neste álbum, eu usei de forma mais consolidada. Esse é o primeiro álbum em que utilizo o vocoder, e estou muito empolgado para usá-lo em futuros projetos. Tenho explorado muito também o uso do auto-tune, algo que muitas pessoas amam ou odeiam. Eu gosto dessa controvérsia. Comecei a estudar essa ferramenta e consegui um auto-tune analógico, que traz um timbre diferente. O auto-tune é uma linguagem atual, então decidi incorporá-lo ao jazz, algo que ainda não tinha sido feito no Brasil. Além disso, combinar o uso de orquestra com a banda trouxe uma nova camada para o projeto. A banda tem uma pegada psicodélica, cheia de delays e efeitos, enquanto a orquestra traz essa tradição clássica, que se remete à música européia, antiga, com uma pompa. Houve uma conexão com o manager da orquestra e ele adorou a ideia. Escrevemos os arranjos e o resultado é o que vocês podem ouvir.

O disco tem muitos contrastes. A própria escolha do Charlie Brown Jr., por parte de um artista do jazz, o uso do autotune em músicas com orquestra, o popular relacionado com que é considerado erudito. Fale mais sobre isso, por favor.

Há algo muito interessante acontecendo com a nova geração de músicos no mundo todo — mas vamos falar especificamente do Brasil. Com o Spotify, o YouTube, estamos todos muito mais próximos. Não existe mais “a música do mundo”, agora é quase como se fosse “a música do vizinho”. Isso cria muitas misturas, muitas possibilidades e a galera aproveita muito bem essas oportunidades. Ano passado, eu fiz uma turnê, e é sempre interessante porque, no início, o público pode chegar com uma expectativa diferente, especialmente pessoas que não conhecem o meu trabalho. Às vezes, no começo do show, o pessoal fica meio perdido: “O que está acontecendo aqui?.” Porque eles não têm uma referência imediata e vão lá procurar um show de jazz. Lembro de uma vez que fiz um show lotado e, depois, uma menina veio falar comigo. Ela disse: “No começo, eu estava meio perdida, não estava entendendo o que estava acontecendo. Mas, depois, tudo começou a fazer sentido, como se tudo se encaixasse”. Achei isso bonito, porque é exatamente a ideia — levar as pessoas a um lugar inesperado e, aos poucos, fazer tudo se conectar.


Como você avalia a importância da experimentação no seu trabalho? 

Nós precisamos experimentar porque queremos contar uma história e não porque estamos preocupados com o que o mercado espera. Sempre digo que o mercado não faz o artista, mas sim o artista é quem acaba moldando o mercado. Se eu estivesse me preocupado apenas com o mercado, talvez não teria feito esse álbum da forma como fiz, mas eu queria contar uma história e foi isso que me guiou. Vejo que cada vez mais artistas no Brasil estão se permitindo experimentar. Temos exemplos incríveis, como a Bebé Salvego e muitos outros, que estão ousando bastante. Acho que estamos vivendo um momento em que a experimentação está ganhando espaço – e isso é ótimo para a música brasileira.

Voltando ao tema da liberdade, como isso ressoa na sua obra e como está conectado com a obra do Chorão?

Viemos para esse mundo viver. Isso parece tão óbvio, mas ao mesmo tempo muitas pessoas não percebem isso. Estamos aqui existindo, eu estou existindo como pessoa, como pensador, como criador. E as revoluções que acontecem em mim refletem no mundo, porque o mundo somos nós. Uma vez perguntaram qual era o sentido da vida e uma amiga filósofa respondeu: “O sentido da vida é a própria vida”. Ela faz sentido por si só, mas somos nós que damos propósito. Se eu quero ser algo, viajar o mundo, viver de certa forma, eu vou moldando minha vida a partir dessas escolhas. Ser livre é um desafio. Muitas pessoas acabam trocando uma prisão por outra. Viver a vida a partir de sua própria orientação exige coragem. É como o Chorão dizia: “O privilégio de pertencer a si mesmo.” Ele viveu intensamente como ele quis, sem ligar para o que os outros pensavam. Isso é algo que admiro nele. Ele foi autêntico, verdadeiro consigo mesmo. Isso não é sobre estar certo ou errado, mas sim sobre ser fiel a quem você é. Quando comecei a estudar a obra do Charlie Brown Jr., especialmente as músicas que escolhi trabalhar, eu mergulhei profundamente. Fiz terapia, me provoquei, revisitei traumas, porque sempre que mergulho em um projeto assim, eu trago questões pessoais à tona. Para mim, arte é um ponto de partida para a cura. A arte provoca, nos faz enxergar algo que não víamos antes, nos ajuda a entender traumas e a curá-los.


Como essas canções reverberam em você? 

Dividi “Céu Azul” em dois atos. No primeiro, com piano, voz e orquestra, falo algo muito forte: “Fica comigo, segura a minha mão.” O Chorão não dizia isso exatamente, ele falava “não me abandona”, mas eu quis transformar para algo mais positivo, mais potente. Eu não queria focar no negativo, então preferi “segura a minha mão”, como se estivesse com um amigo passando por um momento difícil. Esse processo de criação me levou a lugares muito pessoais. Perdi meu pai no ano passado e essa música, enquanto eu a escrevia e gravava, me tocou profundamente. Falar sobre “fica comigo” ganhou um significado ainda mais forte para mim. E depois vem o segundo ato, com “tão natural quanto a luz do dia, mas que preguiça boa,” que tem uma leveza, uma afetividade, mas também fala sobre onde queremos gastar nossa energia. Essa filosofia de liberdade e de ser fiel a si mesmo, que o Chorão e o Charlie Brown Jr. traziam, ressoa muito comigo. Eu me vejo como um artista fora da caixa, subversivo em alguns aspectos. Tenho experimentado isso, não só musicalmente, mas em várias áreas da vida. Trazer tudo isso para uma obra que ficou tão profunda e concisa é um presente para mim. E eu espero que as pessoas se conectem e que isso as leve a refletir e repensar suas próprias vidas.

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24/09/2024

Erick Bonder

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