Converso com Karen Jonz após cair uma tempestade em São Paulo. Mesmo diante das intempéries, ela não para: conta que estava presa no trânsito da Marginal Tietê, em São Paulo, a caminho de casa, quando a chuva caiu. O tempo abriu, ela seguiu em frente. De certa forma, essa trivialidade também funciona como metáfora para o conceito de GUIZMO (2025), o segundo álbum da cantora e compositora. É um disco sobre aprender a seguir em frente, a partir de seu próprio olhar de mundo.
Karen é multitasking. Como outras mulheres, desdobra-se em muitas: na criação artística, na produção musical (junto ao companheiro, Lucas Silveira), no skate, na maternidade da pequena Sky. Todas essas vivências são, também, combustível inspiracional para suas composições. Diferente de Papel de Carta (2022), o álbum de estreia que trazia uma pegada mais doce, quase delicada, este segundo disco mergulha em emoções mais densas: fala sobre luto, traumas da adolescência, sobre deixar o passado para trás e também deixar-se ser levada pela mão, sem que isso pareça uma confissão de vulnerabilidade, mas pelo contrário, demonstração de coragem.
Sonoramente, o álbum tem uma pegada ainda mais rock’n’roll, flertando com o emo em algumas passagens. Tem um quê de Olivia Rodrigo nos vocais e Sleater-Kinney com toques de Hole nas músicas mais agitadas, como “Descartável” e “Traço Tóxico”, já na reta final do disco. As influências femininas, inclusive, não são arbitrárias: “As mulheres me influenciam… Eu absolutamente amo a música feita por mulheres. Quase tudo o que eu escuto no dia a dia, todas minhas referências, até no skate, são de mulheres”, conta Karen.
As paixões — pela música e o skate — se misturam no processo criativo da artista. Muitas das metáforas que impulsionaram sua criatividade fazem relação com o universo do esporte — “Quando eu cair, promete que vai segurar”, ela canta na terceira faixa. “Ando de skate toda semana. Tenho uma playlist chamada Skate Radical [risos]. O skate e a música, para mim, são ferramentas divinas. Poder trabalhar com essas duas coisas é uma delícia”, diz.
Mas ela vai além. Como toda pessoa com signos de água fortes no mapa, ela se apega a ideias mais profundas, como as simbologias de um oráculo chinês. “Tem uma que acho muito marcante”, ela conta, “a da raposa atravessando o rio. A raposa é um animal pequeno, mas com uma cauda longa. E, ao cruzar o rio, ela precisa tomar muito cuidado para não molhar essa cauda antes de chegar na outra margem. Se a cauda molhar no meio do caminho, ela pesa e pode arrastá-la para trás, fazendo com que a raposa se afogue. Acho que isso diz muito sobre como a gente precisa atravessar certas fases da vida. Tem momentos em que tudo parece instável, mas a gente precisa de clareza e atenção pra não se deixar levar pelo peso do que ainda não foi resolvido. É sobre seguir em frente com consciência, sem deixar que o passado nos puxe de volta”, reflete, ao falar sobre “Acidental”, uma das músicas novas que já ganhou os fãs, e figura entre as mais ouvidas de seu Spotify.
Dessa forma, Karen nos abre o universo criativo que ronda o seu segundo álbum. Confira Guizmo faixa a faixa:
“Playlist de Velório”: Num primeiro momento, parece uma música que fala sobre morte. Mas o refrão é sobre fuga da realidade. Sabe, hoje eu estava andando de skate, e tava chovendo muito. Só que eu ando em uma linha reta, coberta. Não caiu um pingo em mim e, do meu lado, tudo molhado. Eu logo pensei que estava numa bolha… como se, para mim, estivesse “tudo bem”, mas tem um mundo caindo lá fora, sabe? Não está tudo bem. Então, essa música tem também um pouco desse significado que acabei de dar pra ela [risos]. Acho que fala sobre alguns sentimentos que são mais difíceis de processar, como o próprio luto, a morte.
Escrevi essa quando perdi meu avô e meu primo no mesmo ano. Eu estava competindo, não consegui voltar nem para o velório. Então, demorei para entender, para vivenciar esse luto que veio tardiamente. Essa faixa me ajudou a lidar com isso.
“Superficial”: Essa fala sobre a dificuldade de ter essa interação social mais rápida e rasa, que pode gerar uma impressão que você é uma pessoa superficial — mas é justamente intencional, por ser o contrário. Eu sou libriana e tenho essa coisa de conseguir falar rapidinho com todo mundo, mas, ao mesmo tempo, tenho ascendente em Peixes e lua em Câncer, então, minhas conversas acabam sendo meio profundas. E aí, a minha bateria social acaba muito rápido.
Acho que ela traz uma coisa da adolescência, também. Eu tinha uma relação muito ruim com meu corpo, com comida, tinha compulsão alimentar e bulimia. Comecei a andar skate com 17, e foi muito importante pra mim para lidar com todas essas questões. O universo do skate tem essa coisa de se entender diferente, da autenticidade. Talvez, em algum momento, eu tenha valorizado isso até demais, essa coisa de gostar de ser diferente, até isso me levar para extremos, de querer me afastar do que seria “comum”. Fazendo isso, eu acabei virando exatamente o que criticava.
“Quando Eu Cair”: É uma música sobre a necessidade de ter pessoas para te ajudar quando você está no seu pior momento. Outra música que fala bastante sobre a cultura do skate, porque tem esse apoio, né? Essa solidariedade emocional, mesmo literal, de ter alguém que segura sua mão quando você cai. Eu lido muito com a queda, por causa do skate. Então, a construção de resiliência, de “começar com um passo pequeno, para poder recomeçar”, está inerente ao que faço. Às vezes, a gente quer dar um passo maior que a perna e fazer uma coisa que é muito grande. Então, eu aprendi a quebrar as coisas em pedacinhos e fazer o mínimo que eu consigo.
Porque é melhor conseguir fazer um pouco do que não conseguir fazer nada. É o meu ponto de vista sendo uma mulher skatista, com uma necessidade de se provar capaz o tempo todo. Por ser uma mulher no esporte masculinizado, a gente não tinha campeonato antigamente, éramos muito excluídas. Por décadas, precisamos buscar reconhecimento mesmo. E se a gente não tivesse feito nada, provavelmente essa geração de hoje teria muito mais dificuldades. Eu precisava buscar algo e me provar o tempo inteiro, mesmo que isso tivesse um preço alto. Por isso, proponho essa inversão.
“Acidental”: Fala sobre aprender a não controlar tudo, mas mesmo assim navegar pelo caos. Passar por experiências que às vezes são inarrumáveis e mesmo assim, seguir adiante. Eu não sei, talvez ela seja a música que mais representa o álbum. Escrevi pensando em alguns momentos desconfortáveis, de transições difíceis como lidar com a bulimia, a coisa da exposição, ou de passar por uma gravidez sendo esportista. Acho que ela é meio que um portal desses momentos que são às vezes difíceis, mas transformadores. Tem essa metáfora da raposa, que eu falei… de apenas seguir em frente. De tipo: “eu sei que é tenebroso, mas eu faria de novo”. Então, ela tem essa coisa de você estar numa posição desfavorável, mas, se você ficar atento e conseguir não cair nesse perigo, você aprende a navegar pelo caos.
“Sessão de Horror”: É aquele momento que a gente para conseguir analisar os traumas e ver se vamos conseguir seguir em frente. É encarar os fantasmas do passado. Uma curiosidade: ela ia chamar “Seleção de Horror”, porque a escrevi quando tava tentando a classificatória para as Olimpíadas e, enfim, não consegui. Então, foi uma seleção de horror [risos].
Mas eu acho que é um momento de conseguir olhar para isso, de tentar lidar com as sombras. E, ao mesmo tempo, se fechar para expectativa externa para conseguir analisar o todo. Tem até uma frase que eu canto: “Fecha a porta e não abre até terminar o show”.
“Meu Fôlego”: É um respiro no meio do disco. É também um chegar na vida adulta, de aprender a ver o que é essencial e o quê de pressão externa eu posso descartar. Essa música fala sobre uma necessidade de clareza de propósito antes de conseguir se envolver em algo. Ela vem na sequência de “Sessão de Horror” – essa ordem é bem proposital porque essa fala sobre preparar o terreno. Tipo: tenho que limpar meus medos para ver o que vai acontecer.
“Descartável”: Essa tem muito da coisa do skate e do meu momento de vida: adulta, mãe, já campeã. Com uma nova geração vindo, em muitos momentos que eu me senti descartável, sabe? No mundo que exige novidade constante, coisa rápida, as coisas são muito efêmeras. Então, tanto no skate quanto na vida pessoal, eu acho que ela fala sobre um desafio de ressignificar o que é duradouro.
“Traço tóxico”: Eu escrevi essa música sobre um relacionamento antigo que tive, com muitos padrões tóxicos. Todos os meus amigos viam e só eu não conseguia perceber, e tudo foi muito difícil. Então, fala sobre esses padrões perigosos. No nosso caso, de mulheres, pode ter a ver com pressão estética, a competitividade, autocrítica, essa necessidade de provar valor constantemente… É uma reflexão sobre como essas coisas podem se transformar em aprendizado de alguma maneira, pra depois deixá-las pra trás. Fala sobre padrão tóxico e mecanismo de defesa, basicamente.
“Silêncio”: Aqui, eu trago o silêncio não como ausência, mas como um espaço para se ouvir sem ter que se justificar, só se reconectando com o que realmente importa. É uma pausa, um momento contemplativo para abraçar o que vem depois – que eu ainda não sei.