Fui ver a interpretação de Karina Buhr e banda para o clássico disco homônimo do Secos & Molhados sem ter ouvido as versões feitas para o projeto 73 Rotações, que convidou artistas como Céu, Cidadão Instigado e Fred Zero Quatro a reinventarem grandes discos lançados em 1973. Sabia que Karina hesitara antes de aceitar o convite, mas que a proposta deu tão certo que rendeu novos frutos, como a visita a Porto Alegre. Com abertura dos locais Chimi Churris e Bibiana Petek, a noite no Bar Opinião teve público significativamente maior do que a passagem anterior de Karina por Porto Alegre, em 2012. Na plateia, expectativa e comentários como “pô, tomara que ela também toque algumas autorais”.
Posso imaginar o impacto da arte performática e transformista dos Secos naquela sociedade careta, que vivia uma ditadura cretina no início dos anos 1970. De fato, o disco transformou o rock nacional e a subversão contida na voz feminina de Ney Matogrosso deixava todo mundo meio mexido. Posso ver as semelhanças entre o som progressivo dos Secos e a contemporaneidade de Karina, e muito da liberdade e da sensualidade de Ney quando a própria Karina sobe ao palco e se transforma em uma super-heroína futurista. Cada vez mais me pergunto se é por estar com os pés tão fincados no presente que Karina parece à frente do seu tempo: como ouvi na plateia e li na legenda de uma foto no Instagram, vê-la nos dá a sensação de estar vendo a história da música brasileira acontecer.
Por conta desse frescor, quando começaram as primeiras notas e as primeiras chacoalhadas de pandeiro de “Sangue Latino” percebi que tentar comparar seria equivocado. O tom era de tesão: dava uma certeza confiante de que a banda (e que banda!) realmente pira no disco. Ao longo da noite, cada surpresa nos arranjos fazia crescer a certeza de que aquela reinterpretação era respeitosa. A grandiosidade da nova roupagem dada às canções estava justamente em uma certa consciência da grandiosidade eterna dos Secos & Molhados. O equilíbrio entre o autoral e a fidelidade no desenvolvimento criou uma tensão hipnotizante que me manteve de olhos fixos e pernas bambas.
O disco foi tocado na íntegra e respeitando quase totalmente a ordem das faixas. “Amor”, “Primavera nos Dentes” e “Mulher Barriguda” ficaram no final. Às vezes Karina era só voz (com um microfone que podia ser arma ou fonte de carinho, ferir ou acariciar), às vezes assumia a percussão, como em “O patrão nosso de cada dia”. Quando o trompete semimelancólico de Guizado substituía a flauta das versões originais, confundindo a expectativa inconsciente de quem já ouviu o disco um milhão de vezes, os pêlos do meu braço se arrepiavam. Quando a guitarra de Fernando Catatau, já um tipo de novo clássico da música brasileira contemporânea, dava sua malemolência a algum solo de John Flavin, ou substituía o órgão de Emilio Carrera, como em “Fala”, as pessoas ficavam em êxtase, soltavam até gritinhos. Sempre que passa por aqui, seja com Arnaldo, com Otto, com Cidadão ou com Karina, percebo a maneira como Catatau toca: como quem conheceu aquela guitarra ontem e está mais apaixonado que um adolescente.
Quando Karina, perto do público, cantou “Rosa de Hiroshima” com uma potência destemida que preencheu o Opinião e reduziu o barulho dos cochichos e conversas na plateia, todo mundo lembrou do que se trata o poema de Vinícius de Moraes. Quando o show começou a terminar com “Nassíria e Najaf” eu lembrei da Rosa de minutos antes, em como o disco dos Secos & Molhados é fundamental e nunca vai envelhecer, em como Karina consegue ser uma artista tão presente no tempo presente, tão bonita e tão política. Foi maravilhoso poder curtir, também, as autorais “Eu menti pra você” e “Cara Palavra”, e ver ela apresentar a banda enquanto continuava interpretando a canção que fechou a noite. “Dorme logo antes que você morra”.
Sabe quando a gente tem vontade de sair em silêncio, pra não sobrepor a experiência com nenhum som? Saí tão apaixonada por Karina que refleti sobre quem era aquela criatura. A Karina que homenageia os Secos, a Karina que canta, dança e derrete no palco pra escorrer na plateia é, também, a Karina atriz. Mas a verdade de Karina, mesmo se Karina for personagem, é extremamente excitante, como a subversão dos Secos ao vestirem saias e pintarem a cara. Não por acaso Karina Buhr é Karina Buhr: soma de todas essas coisas, multiplicadas por uma banda que provoca uma erupção, faz com que ela e som preencham espaços como lava vulcânica.
E por ser mulher, Karina leva o feminino dos Secos & Molhados a novos lugares. Não apenas seus posicionamentos e sua consciência são políticos. Só de ser tão sensual em um mundo que limita a sexualidade feminina ao consumo masculino, Karina já inspira outras mulheres. Não chamem Karina de supermulher. Ela é uma artista mulher.