Arranjos inspirados nos cânticos de religiões de matriz africana, uma voz que ressoa em um desejo, uma oração. Este é o clima do álbum Prece (2024), lançado por Luiza Brina em abril, pelo selo Dobra Discos.
A mineira há muito se destaca na cena independente de Belo Horizonte. Primeiro, com a banda Graveola, lá nos anos 2010, da geração de músicos que reaviveu a cena local, no mesmo embalo do renascimento do carnaval de rua da cidade. Desde então, investiu na carreira solo com os álbuns Tão Tá (2017), Tenho Saudade Mas Já Passou (2019) e A Toada Vem É Pelo Vento (2022), carregando o lirismo de influências como o Clube da Esquina.
Neste 2024, Prece chega como um trabalho gestado individualmente, construído coletivamente e que ganha o mundo após ser concebido. Enquanto vivia crises de pânico, por volta de 2010, Luiza começou a escrever versos, que ela chamou de “orações “. São cantos carregados de sentimento como amor, esperança, sorte. Aos poucos, as canções-orações ganharam mais temas: versam sobre a felicidade dos encontros, sobre o Brasil, sobre a natureza.
A natureza é, aliás, ponto forte no cancioneiro de Prece. Do início ao fim do disco, as canções parecem correr como um rio, que nasce tímido e vai tomando corpo, correndo, até o encontro com o mar, que atinge seu ápice na última faixa, “Oração 10 (oração ao porto)”.
Ao longo do álbum, que conta com processamentos eletrônicos conduzidos por Charles Tixier, os tambores galopam em uma sonoridade barroca, encantada. Aceleram e retraem, como em um ritual. As parcerias da mexicana Silvana Estrada — com quem canta o belo pedido “não creia na reza mas torça por mim, ore por mim, por favor” em “Oração 2” —, dos conterrâneos Maurício Tizumba e Sérgio Pererê, com quem exalta as religiões de matriz africana, assim como o canto com Rainha Isabel Casimira, e das parcerias com Julia Branco, Luizga, Thiago Amud e Vovô Bebê, encorpam o álbum. Destaque também para o dueto com Iara Rennó, com uma bela “Oração 19 (oração para Oxum)” exaltando a feminilidade e força das águas.
Mas é a orquestra com 19 instrumentistas mulheres, com arranjos assinados pela própria Luiza, que a sonoridade do disco brilha. Cada canção-oração ressoa grandiosa, o que fez com que este álbum chegasse, merecidamente, nos lugares mais distantes. É o caso da cantora norte-americana Esperanza Spalding, sempre atenta à nossa música, que afirmou a um jornal australiano que Prece (2024) é “das coisas mais empolgantes que ouviu ultimanente”
Confira o bate-papo com Luiza Brina sobre o Prece abaixo:
Luiza, primeiro queria parabenizar pelo Prece! É um disco lindo, com canções
bem arranjadas e costuradas, faz jus ao reconhecimento que vem recebendo (como a
recomendação da Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA e as indicações no Womens Music Event – WME).
Muito obrigada pelo carinho e pelas palavras!
Fiquei pensando no processo de feitura do álbum, nas primeiras “orações” que você escreveu, quando passava por momentos difíceis. Como é para você ver uma obra que sai de dentro, num processo tão íntimo, de ferida aberta, se materializando num disco que toque outras pessoas? Esse processo já é natural para você?
Esse reconhecimento tem sido muito especial e reafirma a importância que esse trabalho tem para mim. Teve até a loucura da Esperanza Spalding recomendando o disco! É muito emocionante mesmo ver que após muitos anos de trabalho e dedicação carinhosa, que o disco esteja tocando outras pessoas de maneira genuína.
Comecei a criar essas “orações” num momento em que tive intensas crises de pânico. No começo, quando elas surgiram, as temáticas giravam em torno da busca por uma crença, por acreditar na própria vida. Depois, com o tempo, foram surgindo orações com outras temáticas — sobre relações amorosas, sobre um deus terreno, homenagens a orixás, até orações para o Brasil, como na Oração 15, parceria com o Thiago Amud, que é um pedido para que a Cobra Grande (da lenda da cobra boiúna) proteja os rios.
Esse processo ainda não é muito natural, mas, aos poucos, vou me abrindo mais pra isso.
Entendo que “prece” vai além de um aspecto religioso, mas temos essa questão religiosa muito forte em Minas Gerais – das festas católicas ao congado (com todo seu aspecto musical, os tambores…) passando pelas igrejas barrocas, a própria literatura… Como a religião influencia na formação? Seria mais uma influência cultural/como manifestação artística mesmo?
Com certeza, a religiosidade em Minas Gerais vai muito além do aspecto litúrgico; ela é quase um tecido que costura nossa cultura, nosso jeito de viver e expressar. Crescer nesse cenário é estar sempre em contato com essas manifestações, seja através da música, da arquitetura, das festas populares ou da literatura. Não tem como não ser atravessada por isso.
A música em contextos religiosos sempre me tocou, genuinamente — seja nos nos toques dos terreiros ou nas missas de Bach… Porém, o Prece não é exatamente um disco religioso. Eu nunca tive religião, na verdade. Com o tempo fui entendendo que a música foi tomando em mim esse lugar de religião e de conexão com a vida.
Você trabalhou com uma orquestra neste álbum. Queria entender como foi para você o processo de mergulhar na pesquisa de orquestração e, claro, que comentasse sobre a escolha de priorizar instrumentistas mulheres.
Trabalhar com uma orquestra no Prece foi uma experiência transformadora. Sempre tive um interesse por formações inusitadas. Quando eu era adolescente fazia arranjos para a minha primeira banda, na qual havia violoncelo, sanfona, flauta, percussão. Já tinha ali um sopro, uma corda friccionada acompanhando as canções que eu fazia no violão e na voz. Depois, para a gravação dos meus dois primeiros discos, fui acompanhada por um grupo que batizei de O Liquidificador, que tinha uma instrumentação maior ainda, com adição de quarteto de sopros.
Paralelamente aos discos, eu me formava em composição na Unirio, tomava aulas com o Itiberê Zwarg (baixista do Hermeto Pascoal), e com o percussionista chileno José Izquierdo. Foi o José que me apresentou ao universo do Batá (tambores da Santería cubana) e da percussão baiana, entre outras manifestações das nossas matrizes africanas, e que estão presentes em grande parte da minha produção.
Ter, no Prece, a presença dessa orquestra, com madeiras, metais, cordas e percussão sinfônica, além das percussões populares, gravadas pelo José Izquierdo — foi a realização de um sonho.
Eu também queria que as canções ganhassem essa textura orquestral misturada aos eletrônicos (processamentos feitos pelo Charles Tixier) e as percussões do José, dialogando com o espírito das “orações”, numa ambiência quase ritualística, algo que potencializasse a força emocional do disco. Esse estudo exigiu um olhar atento para os timbres, as dinâmicas e os silêncios — tudo muito pensado para dar espaço à mensagem das músicas.
Escrever arranjos para uma orquestra só de mulheres trouxe uma sensibilidade única para o projeto, porque havia uma troca muito forte e acolhedora entre todas nós. O ambiente da música é, em geral, muito machista, mas eu quis mostrar que tem muitas instrumentistas mulheres incríveis. Foi maravilhoso ouvir relatos de como era intenso estar em um estúdio só com mulheres e elas serem dirigidas por uma mulher.
Tinha mulheres ali que acompanho há anos nas orquestras, integrantes da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e Orquestra Ouro Preto. É importante citar nomes: Aline Gonçalves (clarinete, clarone e flauta); Alma Maria (trompa); Ana Calina (viola); Ana Cecilia (trompete); Camila Rocha (contrabaixo); Catherine Carignan (fagote); Elise Pittenger (violoncelo); Joanna Bello (violino 1); Jovana Trifunovic (violino 2); Kamila Druzd (viola); Karina Neves (flauta, flautim e flauta baixo); Laura Von Atzingen (violino 1); Lauriza Anastacio (violoncelo); Natália Mitre (percussão); Natália Porto Coimbra (trombone e eufônio); Rosana Guedes (oboé); Taís Gomes contrabaixo) e Tatiana Martins (violino 2).
No embalo dessa pergunta (risos): Você vem de uma família que tem música é muito presente, as avós pianistas. Como foi crescer com essa referência musical, através das mulheres da sua família? Há algo do que elas ouviam ou tocavam que ainda te impacta ou você toma como referência?
Sim, foi muito importante pra mim ter essas duas avós pianistas. Foi através dessas duas mulheres que descobri a música, a possibilidade de tocar!
Na geração delas, em Minas Gerais, o instrumento que era normalmente permitido às mulheres era o piano — porque ele fica fixo na sala de casa, né? Uma avó era professora de piano mesmo, dava aula para crianças, dava aula de música e a outra avó tocava piano. Lembro que as primeiras aulas eram ali depois do almoço de domingo mesmo. Foi curioso que uma era mais metódica, mais técnica, enquanto a outra avó gostava mais de brincar de improvisar. Crescer com essas referências musicais influenciou muito quem eu sou hoje, pois gosto de estudar a teoria da música, mas também gosto muito desse lado mais lúdico, mais do improviso.
Além disso, gosto de pensar que, de alguma maneira, ao levar minha música pro mundo, carrego um pouco do que aprendi com elas, quando era criança.
Como foi a escolha das participações do disco, como Silvana Estrada, Iara Rennó,
e os mineiros Sérgio Pererê, Tizumba…?
Gosto muito como as participações do Prece mostram um panorama em escalas que vai de um ponto mais local (Minas Gerais, Brasil) e um ponto mais plural (América Latina). Sou apaixonada pela música brasileira e tem todo esse debate sobre o Brasil estar um pouco descolado da América Latina por conta do idioma, só que sou muito apaixonada pela música da América Latina (para além do Brasil) e faz tempo que tenho uma vontade de um diálogo verdadeiro com artistas desses países. Foi uma alegria imensa contar com a participação da Silvana Estrada, que é mexicana, e com a LvRod (que é argentina), sinto que me conectar com o trabalho delas é uma forma de aproximar mais (em alguma medida) meu circuito da música brasileira com o circuito delas. Mas acima de tudo, elas estão no disco por afinidades musicais que temos, muito mais do que pela geografia da certidão. São artistas que tem um olhar pra canção que encontra meu pensamento musical também.
Na escala local, foi um privilégio contar com a participação de mestres de Minas Gerais: sou fã do [Maurício] Tizumba e do Sérgio Pererê há muito tempo! Eles são artistas de uma geração acima da minha e são referências na canção afro-mineira. Outra participação que fiquei muito feliz foi a Rainha Belinha, Rainha Conga de Minas Gerais e Rainha das Guardas de Moçambique e Congo 13 de Maio. Além disso, ter a Iara Rennó no disco enriqueceu ainda mais o Prece. Iara é uma grande amiga, ela também é do meu selo (Dobra Discos) e é uma grande referência, com uma carreira muito linda.
O projeto gráfico do álbum trabalha com a ideia da água, do rio. E, ao ouvi-lo, parece que somos mesmo guiados pelas águas de um rio que nasce, cresce e desemboca no mar (na última faixa, “oração ao porto”). Essa construção imagética da música é importante no seu processo criativo?
Demais! Isso é algo importante pra mim, desde o início. No meu segundo disco, por exemplo, o Tão Tá, eu incorporei um astronauta junto da minha banda da época, o Liquidificador. Fizemos fotos e vídeos lindos, junto das artistas Sara Lana e Flávia Mafra, onde eu e a banda circulamos vestidos de astronautas em cenários de Belo Horizonte.
No Prece, conversando com a minha empresária, Julianna Sá, que pensou muito o projeto comigo e assina a direção artística, imaginamos um personagem escafandrista, desbravador de águas doces, que busca orações no fundo dos rios, das cachoeiras, dos lagos, enfim, das águas dos interiores, deste Brasil de dentro.
Conversando com a Sara Lana, que é uma super artista e também engenheira-cientista, entendi que hoje em dia se sabe muito mais sobre o céu do que sobre as águas. Diante do contexto das orações, então, eu e a Ju [Sá], pensamos nesse escafandrista buscando orações, mistérios, buscando o desconhecido, nessas águas – porque, no fim das contas, as orações revelam esse desconhecido de mim e do mundo, e trazem à tona.
Chamamos uma artista visual incrível para fazer as fotos do disco, a Daniela Paoliello, artista super premiada com um olhar artístico muito singular, e que trouxe todo um universo para o Prece. Nas primeiras fotos do disco, convidamos o artista Sillas H, e inserimos alguns elementos dessas águas nas fotos, como meu cabelo tramando uma rede, ou areia e água, propriamente. Depois, a Daniela aprofundou esse universo, dando contorno a ele.
Essa construção imagética é muito importante para trazer esse universo do trabalho, ele é canção, mas é também tudo isso que ajuda a revelar essa música ao mundo.
Para fechar: a quem você dedica a sua prece?
Dedico minha prece a tudo e a todos que me conectam com a vida, com o sentido de estar aqui. Dedico às minhas raízes, às mulheres que vieram antes de mim e me ensinaram a força da criação e da entrega. Dedico também aos encontros – aos que me ajudaram a compor esse disco e aos que ele ainda me proporciona, cada vez que alguém o escuta e se sente tocado.
Mais do que isso, dedico minha prece a essa busca por algo maior, por algo que não se explica, mas se sente. É uma homenagem à fragilidade humana, à esperança, à força que surge mesmo nos momentos mais difíceis. Acho que, no fundo, minha prece é uma tentativa de abraçar o mundo – e espero que ela possa ser um pouco disso para quem a ouve também.
Dedico o Prece a todos aqueles que encontram uma fé na canção.
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